Os Sobreviventes
Quando todos imaginavam a vida sem sentido
chegaram de manhã os sobreviventes,
e levantaram suas moradas, estiveram no rio,
procuravam o rebanho disperso, preparavam
o alimento, cantavam, derramavam
o suor nos campos, faziam fogo à noite
rememoravam o corpo de suas mulheres,
despachavam os barcos, pela manhã.
As chuvas eram sempre bem-vindas,
as chuvas levantavam o pó da terra
e enchiam de confiança a face da vida.
As mulheres viam nascer dentro de si
um novo rebento, os seus ventres cresciam.
Nenhum sinal de confiança quando as mulheres
apareciam de ventre crescido.
Os dias eram os mesmos, a esperança
e a desesperança eram as mesmas.
Passagens sobre Manhã
381 resultadosExiste aquele tempo parado. Aquela dor que não tem nome. Todos os dias entramos e saímos por portas, todos os dias respiramos, todos os dias erguemos a memória do mundo: manhãs de sol. Às vezes, duvidamos do tempo. Sabemos rir. Tentamos planos como crianças que dão os primeiros passos.
Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. […] Palavra, palavra (digo exasperado), se me desafias, aceito o combate.
Poesia Depois da Chuva
A Maria Guiomar
Depois da chuva o Sol – a graça.
Oh! a terra molhada iluminada!
E os regos de água atravessando a praça
– luz a fluir, num fluir imperceptível quase.Canta, contente, um pássaro qualquer.
Logo a seguir, nos ramos nus, esvoaça.
O fundo é branco – cal fresquinha no casario da praça.Guizos, rodas rodando, vozes claras no ar.
Tão alegre este Sol! Há Deus. (Tivera-O eu negado
antes do Sol, não duvidava agora.)
Ó Tarde virgem, Senhora Aparecida! Ó Tarde igual
às manhãs do princípio!E tu passaste, flor dos olhos pretos que eu admiro.
Grácil, tão grácil!… Pura imagem da Tarde…
Flor levada nas águas, mansamente…(Fluía a luz, num fluir imperceptível quase…)
Os desatinos da juventude são conspirações contra a velhice; pagam-se caro, ao anoitecer, as loucuras da manhã.
A Esterilidade do Quotidiano
Rara será a existência que actualmente se não deixe balouçar ao sabor das correntes, cada hora impelida a um rumo diferente pela última notícia que se leu ou pela última conversa que se teve. Sem fim a que aponte, a alma da maioria dos homens flutua na vida com a fraca vontade e a gelatinosa consistência das medusas; um dia se sucede a outro dia sem que o viver represente uma conquista, sem que a manhã que renasce seja uma criação do nosso próprio espírito e não o fenómeno exterior que passivamente se aceita e que por hábito nos impele a um determinado número de acções; desfez-se a crença em que o mundo é formado pelo homem, em que o reino de Deus terá de ser obtido, não como uma dádiva dependente do arbítrio de um ente superior, mas como a paciente, firme, contínua construção dos seus futuros habitantes. Daí a facilidade das entregas aos que ainda aparecem com dedos de escultor, daí os desânimos e as indiferenças, daí o supor-se que apenas surgimos no mundo para nos garantirmos, diariamente, um almoço, um jantar e uma casa; perdem-se as almas nas tarefas inferiores do existir, nenhuma grande aspiração de beleza,
Não Desejemos, Lídia, Nesta Hora
Ténue, como se de Éolo a esquecessem,
A brisa da manhã titila o campo,
E há começo do sol.
Não desejemos, Lídia, nesta hora
Mais sol do que ela, nem mais alta brisa
Que a que é pequena e existe.
A única Doença é não Haver Paixão
A única doença é
não haver paixão.Há pessoas que encontram no mundo um mero
local de passagem, pessoas que não sentem o que
vêem, que não tocam o que encontram; há pessoas
que não percebem que tudo o que existe foi criado
para apaixonar, para absolutamente apaixonar.Se não houver paixão
para que serve haver a vida?Há pessoas
e depois existes tu.Tu e a loucura de quereres devorar o que te
rodeia, tu e essa pulsão incontrolável para todos
os segundos serem os finais, para todos os instantes
da vida terem desesperadamente de valer pela vida toda.Se não houver o que tu és
para que serve haver o amor?E depois existo eu. A apaixonada que ensinaste
a apaixonar-se. Antes de ti não havia o tesão, havia
talvez uma ligeira excitação quando algo de muito
grande me acontecia. Antes de ti não sabia a
beleza do medo, a sensação sem igual de um coração nas
mãos. Antes de ti não sabia que um coração ou está
nas mãos ou anda a rastejar pelos chãos.
O Frio Especial
O frio especial das manhãs de viagem,
A angústia da partida, carnal no arrepanhar
Que vai do coração à pele,
Que chora virtualmente embora alegre.
Ah, a Esta Alma Que Não Arde AH, a esta alma que não arde. Não envolve, porque ama, A esperança, ainda que vã, O esquecimento que vive Entre o orvalho da tarde. E o orvalho da manhã
Eu não sou um daqueles escritores que, mal se levantam de manhã, colocam um pedaço de papel na sua máquina de escrever e começam a escrever. Nunca consegui compreender isto.
É um bom exercício para um pesquisador livrar-se de uma hipótese favorita todo dia, antes do café da manhã. Isso o manterá jovem.
Elegia para Santa Rosa
Aurora chega, e permaneces fria
noite, imobilizado, cego e mudo
às coisas das manhãs que amanhecias:
cavalete, jornal, café no bule.O mundo neutro e nu pede a pintura;
a tela virgem, teu pincel tranquilo,
As cores vêm chorando pela rua,
entram no atelier branco e vazio.Quais os murais que irás compor no muro,
entre o que foste e o que serás, erguido,
o indevassável muro eterno e duro?Ai, Santa, pesam sobre nós os dias
desta sobrevivência que te usurpa
o espaço e o tempo que te pertenciam.
Sou Eu!
À minha ilustre camarada Laura haves
Pelos campos em fora, pelos combros,
Pelos montes que embalam a manhã,
Largo os meus rubros sonhos de pagã,
Enquanto as aves poisam nos meus ombros…Em vão me sepultaram entre escombros
De catedrais duma escultura vã!
Olha-me o loiro sol tonto de assombros,
as nuvens, a chorar, chamam-me irmã!Ecos longínquos de ondas… de universos..
Ecos dum Mundo… dum distante Além,
Donde eu trouxe a magia dos meus versos!Sou eu! Sou eu! A que nas mãos ansiosas
Prendeu da vida, assim como ninguém,
Os maus espinhos sem tocar nas rosas!
Carta a Manoel
Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,
Foi Coimbra. Foi esta paysagem triste, triste,
A cuja influencia a minha alma não reziste,
Queres noticias? Queres que os meus nervos fallem?
Vá! dize aos choupos do Mondego que se callem…
E pede ao vento que não uive e gema tanto:
Que, emfim, se soffre abafe as torturas em pranto,
Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas
Quanto isto me faz mal! Peor que as sabbatinas
Dos ursos na aula, peor que beatas correrias
De velhas magras, galopando Ave-Marias,
Peor que um diamante a riscar na vidraça!
Peor eu sei lá, Manoel, peor que uma desgraça!
Hysterisa-me o vento, absorve-me a alma toda,
Tal a menina pelas vesperas da boda,
Atarefada mail-a ama, a arrumar…
O vento afoga o meu espirito n’um mar
Verde, azul, branco, negro, cujos vagalhões
São todos feitos de luar, recordações.
Á noite, quando estou, aqui, na minha toca,
O grande evocador do vento evoca, evoca
Nosso verão magnifico, este anno passado,
(E a um canto bate,
Juventude
Lembras-te, Carlos, quando, ao fim do dia,
Felizes, ambos, íamos nadar
E em nossa boca a espuma persistia
Em dar ao Sol o nome do Luar?Tudo era fácil, melodioso e longo.
Aqui e além, um súbito ditongo
Ecoava em nós certa canção pagã.Contudo o azul do mar não tinha fundo
E o mundo continuava a ser o mundo
Banhado pela aragem da manhã!…
Balada de Lisboa
Em cada esquina te vais
Em cada esquina te vejo
Esta é a cidade que tem
Teu nome escrito no cais
A cidade onde desenho
Teu rosto com sol e TejoCaravelas te levaram
Caravelas te perderam
Esta é a cidade onde chegas
Nas manhãs de tua ausência
Tão perto de mim tão longe
Tão fora de seres presenteEsta e a cidade onde estás
Como quem não volta mais
Tão dentro de mim tão que
Nunca ninguém por ninguém
Em cada dia regressas
Em cada dia te vaisEm cada rua me foges
Em cada rua te vejo
Tão doente da viagem
Teu rosto de sol e Tejo
Esta é a cidade onde moras
Como quem está de passagemÀs vezes pergunto se
Às vezes pergunto quem
Esta é a cidade onde estás
Com quem nunca mais vem
Tão longe de mim tão perto
Ninguém assim por ninguém
Contra a Esperança
É preciso esperar contra a esperança.
Esperar, amar, criar
contra a esperança
e depois desesperar a esperança
mas esperar,
enquanto um fio de água, um remo,
peixes
existem e sobrevivem
no meio dos litígios;
enquanto bater a máquina de coser
e o dia dali sair
como um colete novo.É preciso esperar
por um pouco de vento,
um toque de manhãs.
E não se espera muito.
Só um curto-circuito
na lembrança. Os cabelos,
ninhos de andorinhas
e chuvas. A esperança,
cachorro
a correr sobre o campo
e uma pequena lebre
que a noite em vão esconde.O universo é um telhado
com sua calha tão baixo
e as estrelas, enxame
de abelhas na ponta.É preciso esperar contra a esperança
e ser a mão pousada
no leme de sua lança.E o peito da esperança
é não chegar;
seu rosto é sempre mais.
É preciso desesperar
a esperança
como um balde no mar.Um balde a mais
na esperança.
A Manhã Raia
A manhã raia. Não: a manhã não raia.
A manhã é uma coisa abstracta, está, não é uma coisa.
Começamos a ver o sol, a esta hora, aqui.
Se o sol matutino dando nas árvores é belo,
É tão belo se chamarmos à manhã «Começarmos a ver o sol»
Como o é se lhe chamarmos a manhã,
Por isso se não há vantagem em por nomes errados às coisas,
Devemos nunca lhes por nomes alguns.
Sèvres Partido
A amazona negra era bella como o sol e triste como o luar, e ninguem acredita mas era pastora de galgas. Figura negra muito esguia, cypreste procurando vaga na margem do caminho.
Nas manhãs de Outomno, frias como os degraus do tanque, era Ella quem largava às galgas a lebre cinzenta, e a que a filásse já sabia com quem dormia a sésta. E as galgas já nem dormiam bem noutra almofada.
Sobre a relva, na sombra arrendilhada das folhas amarellecidas dos plátanos onde os repuxos do tanque cuspiam lagryrnas de vidro, a Amazona negra sonhava o seu Principe encantado e a galga do dia dormia quieta, estendido o focinho no ventre d’Ella.
Uma manhã mais turva as galgas todas voltaram tristes, de focinhos pendidos – e nenhuma para dormir a sésta!
Uma flauta triste vinha de viagem pelo caminho; chorava de seguida imensas canções de choros e tinha acompanhamentos funéreos de guisalhádas surdas.
Callou-se a flauta, um cypreste distante gemia baixinho as dôres da tatuagem que lhe iam abrindo no peito. O pastor lembrava ali o nome do seu Bem. Pendia-lhe da cinta uma lebre cinzenta e a funda torcida.