Um Ser Humano nĂŁo Ă© Grande Coisa
NĂŁo tenhamos ilusões: um ser humano nĂŁo Ă© grande coisa. De facto, há tantos que os governos nĂŁo sabem o que fazer com eles. Seis mil milhões de humanos Ă face da Terra e apenas seis ou sete mil tigres de Bengala – ora digam lá qual das espĂ©cies necessita de mais proteção, de cuidados especiais. Sim, escolham vocĂŞs mesmos. Um negro, um chinĂŞs, um escocĂŞs, ou um belo tigre que cai vĂtima de um caçador. Um tigre, com a sua pelagem listrada de cores incomparáveis e os seus olhos coruscantes, Ă© bastante mais belo do que um velhote cheio de varizes como eu. Que diferença de porte. Comparem a agilidade de um com a inĂ©pcia do outro. Vejam como se movem. Metam-nos em jaulas do jardim zoolĂłgico, lado a lado. Diante da jaula do velho concentram-se as crianças que riem ao vĂŞ-lo catar-se e pĂ´r-se de cĂłcoras para defecar; diante da do tigre, arregalam os olhos de admiração. Acabou essa ilusĂŁo segundo a qual o homem Ă© o centro do universo. É verdade que no animal humano distinguimos os gestos, os rostos e as vozes, o que estimula a nossa empatia, mas tambĂ©m distinguimos caracterĂsticas particulares, que associamos a sentimentos,
Passagens sobre Negros
338 resultadosConversa Sentimental
No velho parque deserto e gelado
Duas formas passaram há bocado.Com os olhos mortos e os lábios moles,
Mal se ouvem, a custo, as suas vozes.No velho parque deserto e gelado
Dois espectros evocaram o passado.— Recordas-te do nosso êxtase antigo?
— Por que razão acha que ainda consigo?— Bate, ao ouvires meu nome, o coração?
VĂŞs ainda a minha alma em sonhos? — NĂŁo.— Ah! bons tempos de prazer indizĂvel
Unindo as nossas bocas! — É possĂvel.— Como era azul, o cĂ©u, e grande a esperança!
— Mas é prò negro céu que hoje se lança.Lá caminhavam plas aveias loucas
E só a noite ouviu as suas bocas.Tradução de Fernando Pinto do Amaral
NĂŁo importa se vocĂŞ Ă© negro, branco, se tem olhos azuis, ou verdes ou escuros… O importante Ă© vocĂŞ ter Deus… e Ele nĂŁo cria nada em vĂŁo, pois Ele vem em forma de natureza…
Meu Pai
A Eloy
Desce, meu Pai, a noite baixou mansa.
Nem uma nuvem se vê mais no céu:
Aninharam-se aqui no peito meu,
Onde, chorando, a negra dor descansa.Quando morreste eu era bem criança,
Balbuciava, sim, o nome teu,
Mas d’este rosto santo que morreu
Já nĂŁo conservo a mĂnima lembrança.A noite Ă© clara; e eu, aqui sentada,
Tenho medo da lua embalsamada,
Corta-me o frio a alma comovida.Se lá no Céu teu coração padece,
Vem comigo rezar a mesma prece:
Tua bênção, meu pai, me dará vida!
Setentrional
Talvez já te não lembres, triste Helena,
Dos passeios que dávamos sozinhos,
Ă€ tardinha, naquela terra amena,
No tempo da colheita dos bons vinhos.Talvez já te não lembres, pesarosa,
Da casinha caiada em que moramos,
Nem do adro da ermida silenciosa,
Onde nós tantas vezes conversamos.Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo sĂł comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nĂłs dois, do mesmo fel,
E regamos com prantos uma acácia.Talvez já te não lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a Lua sorria no teu rosto
E nas lajes campais do cemitério.Talvez já se apagassem as miragens
Do tempo em que eu vivia nos teus seios,
Quando as aves cantando entre as ramagens
O teu nome diziam nos gorjeios.Quando, à brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas dum acanto,
VĂtima Do Dualismo
Ser miserável dentre os miseráveis
– Carrego em minhas cĂ©lulas sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiosincrasias!Muito mais cedo do que o imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada Ă s bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E Ă gula negra das antinomias!PsiquĂŞ biforme, o CĂ©u e o Inferno absorvo…
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!
O Homem Superior
O maior triunfo do homem Ă© quando se convence de que o ridĂculo Ă© uma cousa sua que existe sĂł para os outros, e, mesmo, sempre que outros queiram. Ele entĂŁo deixa de importar-se com o ridĂculo, que, como nĂŁo está em si, ele nĂŁo pode matar.
Três cousas tem o homem superior que ensinar-se a esquecer para que possa gozar no perfeito silencio a sua superioridade — o ridiculo, o trabalho e a dedicação.
Como nĂŁo se dedica a ninguĂ©m, tambĂ©m nada exige da dedicação alheia. SĂłbrio, casto, frugal, tocando o menos possĂvel na vida, tanto para nĂŁo se incomodar como para nĂŁo approximar as cousas de mais, a ponto de destruir nelas a capacidade de serem sonhadas, ele isola-se por conveniĂŞncia do orgulho e da desillusĂŁo. Aprende a sentir tudo sem o sentir directamente; porque sentir directamente Ă© submeter-se — submeter-se Ă acção da cousa sentida.
Vive nas dores e nas alegrias alheias, Whitman olĂmpico, Proteu da compreensĂŁo, sem partilhar de vivĂŞ-las realmente. Pode, a seu talante, embarcar ou ficar nas partidas de navios — e pode ficar e embarcar ao mesmo tempo, porque nĂŁo embarca nem fica. Esteve com todos em todas as sensações de todas as horas da sua vida.
Noite Fechada
L.
Lembras-te tu do sábado passado,
Do passeio que demos, devagar,
Entre um saudoso gás amarelado
E as carĂcias leitosas do luar?Bem me lembro das altas ruazinhas,
Que ambos nĂłs percorremos de mĂŁos dadas:
Ă€s janelas palravam as vizinhas;
Tinham lĂvidas luzes as fachadas.NĂŁo me esqueço das cousas que disseste,
Ante um pesado tempo com recortes;
E os cemitérios ricos, e o cipreste
Que vive de gorduras e de mortes!NĂłs saĂramos prĂłximo ao sol-posto,
Mas seguĂamos cheios de demoras;
NĂŁo me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.Como uma mitra a cĂşpula da igreja
Cobria parte do ventoso largo;
E essa boca viçosa de cereja
Torcia risos com sabor amargo.A Lua dava trĂŞmulas brancuras,
Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com árvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!E para te seguir entrei contigo
Num pátio velho que era dum canteiro,
Mais Valera…
Baldadas, as tuas orações fervorosas,
vĂŁs, as tuas vigĂlias sem cansaço,
inúteis, as tuas rugas que foram lágrimas, Mãe!
E sĂŁo brancos os teus cabelos por ser negra a minha vida…Todos os amparos pedidos para os meus passos,
todas as claridades imploradas para os meus caminhos,
todas as fontes solicitadas para as minhas sedes,
todos os vergéis requeridos para as minhas fomes,
todas as pedras com musgo seco rogadas para o meu descanso,
— tudo foi trocado para a felicidade doutra Mãe
que nĂŁo orou, talvez, fervorosamente,
nem vigiou noites e noites um berço, como estrela,
nem, MĂŁe, chorou as lágrimas que deixaram no teu rosto essa tristeza.Para mim veio este destino errante de poeta…
Comigo, a incerteza e frouxidĂŁo contĂnua de passos,
a escuridão em todos os caminhos inevitáveis,
a sede para que só há fontes secas,
a fome que nenhum fruto satisfaz,
as pedras ásperas onde o corpo nĂŁo pode estender-se…MĂŁe, porque nĂŁo me levaram os ciganos?
Em que Emprego o Meu Tempo?
Em que emprego o meu tempo? Vou e venho,
Sem dar conta de mim nem dos pastores,
Que deixam de cantar os seus amores,
Quando passo e lhes mostro a dor que tenho.É de tristezas o torrão que amanho,
Amasso o negro pĂŁo com dissabores,
Em ribeiros de pranto pesco dores,
E guardo de saudades um rebanho.Meu coração à doce paz resiste,
E, embora fiqueis crendo que motejo,
Alegre vivo por viver tĂŁo triste!Amor se mostra nesta dor que abrigo:
Quero triste viver, pois vos nĂŁo vejo,
Nem sequer muito ao longe vos lobrigo.
A Timidez
A verdade é que vivi muitos dos meus primeiros anos, e talvez os segundos e os terceiros, como uma espécie de surdo-mudo.
Ritualmente vestido de negro desde muito novinho, tal como se vestiam os verdadeiros poetas do sĂ©culo passado, tinha uma vaga impressĂŁo de nĂŁo me apresentar muito mal. Mas, em vez de me aproximar das raparigas, ciente de que gaguejaria ou coraria diante delas, preferia passar de lado e afastar-me, ostentando um desinteresse que estava longe de sentir. Todas eram, para mim, um grande mistĂ©rio. Preferiria morrer queimado naquela fogueira secreta, afogar-me naquele poço de enigmática profundidade, mas nĂŁo me atrevia a atirar-me ao fogo ou à água. Ora, como nĂŁo encontrava ninguĂ©m que me desse um empurrĂŁo, passava pelas margens dessas fascinações sem olhar sequer e muito menos sorrir.Acontecia outro tanto com os adultos, gente mĂnima, funcionários de caminho-de-ferro e de correios e suas «senhoras esposas», assim intituladas porque a pequena burguesia se escandaliza, intimidada, diante da palavra mulher. Eu escutava as conversas Ă mesa do meu pai. Mas, no dia seguinte, se esbarrava na rua com quem tinha comido na noite anterior em minha casa, nĂŁo me atrevia a cumprimentar e atĂ© mudava de rumo para evitar o mau bocado.
Serpente De Cabelos
A tua trança negra e desmanchada
Por sobre o corpo nu, torso inteiriço,
Claro, radiante de esplendor e viço,
Ah! lembra a noite de astros apagada.LuxĂşria deslumbrante e aveludada
Através desse mármore maciço
Da carne, o meu olhar nela espreguiço
Felinamente, nessa trance ondeada.E fico absorto, num torpor de coma,
Na sensação narcótica do aroma,
Dentre a vertigem túrbida dos zeros.És a origem do Mal, és a nervosa
Serpente tentadora e tenebrosa,
Tenebrosa serpente de cabelos!…
A escravidão do negro é a mutilação da liberdade do branco.
Irradiações
Às crianças
Qual da amplidão fantástica e serena
Ă€ luz vermelha e rĂştila da aurora
Cai, gota a gota, o orvalho que avigora
A imaculada e cândida açucena.Como na cruz, da triste Madalena
Aos pés de Cristo, a lágrima sonora
Caia, rolou, qual bálsamo que irrora
A negra mágoa, a indefinida pena…Caia por vĂłs, esplĂŞndidas crianças
Bando feliz de castas esperanças,
Sonhos da estrela no infinito imersas;Caia por vĂłs, as mĂşsicas formosas,
Como um dilĂşvio matinal de rosas,
Todo o luar benéfico dos versos!
… e a noite com o seu negro mistĂ©rio roto de astros.
No Dia que para Sempre Separámos do Corpo
No dia que para sempre separámos do corpo,
havia nesse dia sobre o livro de gravuras
um insecto com os breves sinais de uma aranha.Esperávamos um recado que se fez esperar e
tinha as mĂŁos no rosto e fora meu.
A medo a dor para onde nĂŁo sei bem levava a dor
o rosto.Havia tudo um pouco misturado. Antigas cartas
velhos poemas.
AtĂ© do outro lado da janela vĂamos tristes
tristes rapazes jogando a bola,corpo jogado sob o vento de abril e o de
março.Dentro do quadro via a camisola de lã branca
e o que de loiro havia do recente sol
via a dor o recado desejado no negro azul
das aves.Sobre o céu, o mar, esse tinha-lo agora nos novos
olhos.
A Minha DĂ´r
Tua morte feriu-me no mais fundo,
Remoto da minh’alma que eu julgava
Já fóra desta vida e deste mundo!E vejo agora quanto me enganava,
Imaginando possuir em mim
Alma que fĂ´sse livre e nĂŁo escrava!Meu espirito Ă© treva e dĂ´r sem fim.
Todo eu sou dĂ´r e morte. Sou franquĂŞsa.
Sou o enviado da Sombra. Ao mundo vimPrégar a noite, a lagrima, a incertêsa,
A luz que, para sempre, anoiteceu…
Esta envolvente, essencial tristĂŞsa,TristĂŞsa original donde nasceu
O sol caindo em lagrimas de luz,
Chôro de oiro inundando terra e céu!Sou o enviado da Sombra. Em negra cruz,
Meu ilusorio sĂŞr crucificado
Lembra um morto phantasma de Jesus…E aos pĂ©s da minha cruz, no chĂŁo maguado,
A tua Ausencia Ă© a Virgem Dolorosa,
Com tenebroso olhar no meu pregado.Ah! quanto a minha vida religiosa,
Depois que te perdeste no sol-pĂ´sto,
Se fez incerta, fragil e enganosa!Em meu sĂŞr desenhou-se um novo rĂ´sto.
Sou outro agora; e vejo com pavor
Minha máscara interna de desgôsto.
Cenas De EscravidĂŁo
Acabara o castigo… áspero, cavo,
Cheio de angĂşstia um grito lancinante
Estala atroz na boca hirta, arquejante;
Na boca negra, esquálida do escravo…O seu algoz… oh! nĂŁo — Ăntimo travo
O seu olhar espelha — rubro, iriante…
É um escravo também, brônzeo, possante;
Arfa-lhe em dor o peito largo e bravo!Cumprira as ordens do Senhor… tremente,
Fita o infeliz, calcado ao chĂŁo, dolente,
Velado o olhar num dolorido brilho…Fita-o… depois, num Ămpeto sublime
Ergue-o; no peito cálido o comprime,
Cinge-o a chorar — Meu filho! pobre filho!
Amor Ă© achar bonito uma bota, amor Ă© gostar da cor rara de um homem que nĂŁo Ă© negro, amor Ă© rir de amor a um anel que brilha.
Os Amantes
Amor, Ă© falso o que dizes;
Teu bom rosto Ă© contrafeito;
Busca novos infelizes
Que eu inda trago no peito
Mui frescas as cicatrizes;O teu meu Ă© mel azedo,
NĂŁo creio em teu gasalhado,
Mostras-me em vĂŁo rosto ledo;
Já estou muito escaldado,
Já d’águas frias hei medo.Teus prĂ©mios sĂŁo pranto e dor;
Choro os mal gastados anos
Em que servi tal senhor,
Mas tirei dos teus enganos
O sair bom pregador.Fartei-te assaz a vontade;
Em vĂŁos suspiros e queixas
Me levaste a mocidade,
E nem ao menos me deixas
Os restos da curta idade?És como os cães esfaimados
Que, comendo os troncos quentes
Por destro negro esfolados,
Levam nos ávidos dentes
Os ossos ensanguentados.Bem vejo a aljava dourada
Os ombros nus adornar-te;
Amigo, muda de estrada,
Põe a mira em outra parte
Que daqui nĂŁo tiras nada.Busca algum fofo morgado
Que, solto já dos tutores,
Ao domingo penteado,
Vá dizendo à toa amores
Pelas pias encostado;