A Noite na Ilha
Dormi contigo toda a noite
junto ao mar, na ilha.
Eras doce e selvagem entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.Os nossos sonos uniram-se
talvez muito tarde
no alto ou no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento agita,
em baixo como vermelhas raízes que se tocam.0 teu sono separou-se
talvez do meu
e andava à minha procura
pelo mar escuro
como dantes,
quando ainda não existias,
quando sem te avistar
naveguei a teu lado
e os teus olhos buscavam
o que agora
— pão, vinho, amor e cólera —
te dou às mãos cheias,
porque tu és a taça
que esperava os dons da minha vida.Dormi contigo
toda a noite enquanto
a terra escura gira
com os vivos e os mortos,
e ao acordar de repente
no meio da sombra
o meu braço cingia a tua cintura.
Nem a noite nem o sono
puderam separar-nos.Dormi contigo
e, ao acordar, tua boca,
Passagens sobre Noite
1300 resultadoso homem que já não sou
não me olhes agora que estou
mais velho e não correspondo em
nada ao homem que
amaste, procura encarar a tristeza
sem me incluíres, seria demasiado
cruel que me usasses para a
dor. para ti
quis trazer as coisas mais belas
e em tudo o que fiz pus o
cuidado meticuloso de quem
ama. não me obrigues a cortar os
pulsos quando fores num minuto ao
jardim com o cãoesta noite, sem notares, sustive a
respiração e quase morri. não deste
por nada. julgaste que voltei a
ressonar e até terás esboçado um
sorriso. e se eu pudesse morrer
enquanto sorris, perguntodeixo para depois, ou talvez
desista. mas não pode ser se
tu me olhares em busca de tudo o que
já não existe. não pode ser, levo a
faca maior para debaixo do meu
travesseiro, juro-te que me
mato se continuares assim
Louvor do Esquecimento
Bom é o esquecimento.
Senão como é que
O filho deixaria a mãe que o amamentou?
Que lhe deu a força dos membros e
O retém para os experimentar.Ou como havia o discípulo de abandonar o mestre
Que lhe deu o saber?
Quando o saber está dado
O discípulo tem de se pôr a caminho.Na velha casa
Entram os novos moradores.
Se os que a construíram ainda lá estivessem
A casa seria pequena de mais.O fogão aquece. O oleiro que o fez
Já ninguém o conhece. O lavrador
Não reconhece a broa de pão.Como se levantaria, sem o esquecimento
Da noite que apaga os rastos, o homem de manhã?
Como é que o que foi espancado seis vezes
Se ergueria do chão à sétima
Pra lavrar o pedregal, pra voar
Ao céu perigoso?A fraqueza da memória dá
Fortaleza aos homens.Tradução de Paulo Quintela
gruas no cais descarregam mercadorias e eu amo-te
gruas no cais descarregam mercadorias e eu amo-te.
homens isolados caminham nas avenidas e eu amo-te.
silêncios eléctricos faíscam dentro das máquinas e eu amo-te.
destruição contra o caos, destruição contra o caos e eu amo-te.
reflexos de corpos desfiguram-se nas montras e eu amo-te.
envelhecem anos no esquecimento dos armazéns e eu amo-te.
toda a cidade se destina à noite e eu amo-te.
O Companheiro de Viagem
A alma da tua mãe flutua adiante.
A alma da tua mãe ajuda a noite a navegar, escolho após escolho.
A alma da tua mãe fustiga os tubarões à tua frente.Esta palavra é a disciplina da tua mãe.
A discípula da tua mãe partilha o teu jazigo, pedra a pedra.
A discípula da tua mãe inclina-se para a migalha de luz.Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno
Dava a Vida para te Apertar Contra o Meu Peito
Nunca te vira tão linda e sedutora ao mesmo tempo como ontem à noite. Dava a vida para te apertar contra o meu peito. Diz-me, era o amor que eu te inspiro que te fazia assim tão bela? Seria a paixão que me abrasa que te tornava tão atraente a meus olhos? Bem viste: não podia deixar de olhar para ti, nem de beijar a candeiazinha de oiro. Quanto tu saíste tive vontade de me prosternar a teus pés e de te adorar como a uma divindade. Ah! Se tu me quisesses metade do que eu te quero! Deste volta à minha pobre cabeça; repara no mal que me fizeste querendo-me como me queres. Às oito, esperar-te-ei numa ansiedade.
A saudade é um morcego cego que falhou o fruto e mordeu a noite.
Uma noite voltou do passeio diário aturdida pela revelação de que não só se podia ser feliz sem amor como também contra o amor.
Visão
Noiva de Satanás, Arte maldita,
Mago Fruto letal e proibido,
Sonâmbula do Além, do Indefinido
Das profundas paixões, Dor infinita.Astro sombrio, luz amarga e aflita,
Das Ilusões tantálico gemido,
Virgem da Noite, do luar dorido,
Com toda a tua Dor oh! sê bendita!Seja bendito esse clarão eterno
De sol, de sangue, de veneno e inferno,
De guerra e amor e ocasos de saudade…Sejam benditas, imortalizadas
As almas castamente amortalhadas
Na tua estranha e branca Majestade!
Névoa
A Albano Nogueira
Abraçada à noite,
a névoa desce sobre a terra.Imprecisamente,
como se a névoa fosse dos meus olhos,
vejo o casario e as luzes da outra margem do rio.
Mais à direita, ao longe,
são já da névoa a praia, o mar.
Ouve-se apenas o ronco do farol
– um som molhado.
Para o lado dos pinhais,
anda a bruma a fazer medo
e a pôr mais pressa nos passos de quem foge.Não há luar, não há estrelas.
De novo, olho para o rio.
Não sei se o vejo:
anda a névoa, já, com ele,
e os meus olhos não dizem o que é bruma, o que é rio.
E ela não pára,
avança ao meu encontro.Cerca-me.
E eu tenho, só,
orvalho nas árvores do jardim,
gotas de água que se partem na alameda,
o ar húmido que me trespassa,
o molhado ronco do farol,
os cabelos encharcados
e pensamentos de névoa…
Gazel da Lembrança de Amor
Tua lembrança não leves.
Deixa-a sozinha em meu peito,tremor de alva cerejeira
no martírio de janeiro.Dos que morreram separa-me
um muro de sonhos maus.Dou pena de lírio fresco
para um coração de gesso.A noite inteira, no horto,
meus olhos, como dois cães.A noite inteira, correndo
os marmelos de veneno.Algumas vezes o vento
uma tulipa é de medo,é uma tulipa enferma
a madrugada de inverno.Um muro de sonhos maus
me afasta dos que morreram.A névoa cobre em silêncio
o vale gris de teu corpo.Pelo arco do encontro
a cicuta está crescendo.Mas deixa tua lembrança,
deixa-a sozinha em meu peito.Tradução de Oscar Mendes
Tinha de Fachos Mil a Noite Ornado
1
Tinha de fachos mil a noite ornado
A argentada Princesa:
De amor, graça e beleza
O campo etéreo Vénus povoado.2
A Terra, com perfume precioso
Em torno recendia;
E plácido dormia
Sobre a dourada areia o pego undoso;3
Quando veio roubar a formosura
De tudo o que é criado,
Márcia, fiel traslado
Da beleza do Céu, sublime e pura;4
Com Lírios, que estendeu, vestiu ufana
A forma divinal;
Em aceso coral
Tingiu, sorrindo, a boca soberana,5
As madeixas tomou das veias de ouro,
Nos olhos pôs safiras,
Que das setas, que atiras,
São, fero Amor, o mais caudal tesouro.6
Todos seus dons lhe pôs o Céu no peito;
Como orna o Régio Sposo,
C’o enfeite mais custoso,
A Princesa, a quem rende a alma, sujeito.7
Eu vi afadigados os Amores,
E as Graças, que cantavam
Enquanto se moldavam
Seus graciosos gestos vencedores.8
Das Sereias o canto deleitoso
Lhe nasceu sem estudo;
Ergo Meus Olhos
Ergo meus olhos vagos, na distância
Da sombra do meu Ser…
Pairam de mim além, e a minha Ânsia
Cansa de me viver.Meus olhos espectrais de comoção,
Olhos da alma, olhando-se a si,
Nimbam de luz a longa escuridão
Da vida que vivi.Auréola de Dor, que finaliza
Na noite do abismo do meu nada;
Silêncio, prece, comunhão sagrada,
Sombra de luz que em Ti me diviniza,
Tortura do meu fim,
Alma ungida
E perdida
Na grandeza de Si. E já sem ver-me,
Maceração crepuscular de Mim,
Agonizo de Ser-me.
Deslumbramentos
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…Em si tudo me atrai como um tesouro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de ouro
E o seu nevado e lúcido perfil!Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
O que a noite tem a ver com o sono?
Morangos
No começo do amor, quando as cidades
nos eram desconhecidas, de que nos serviria
a certeza da morte se podíamos correr
de ponta a ponta a veia eléctrica da noite
e acabar na praia a comer morangos
ao amanhecer? Diziam-nos que tínhamosa vida inteira pela frente. Mas, amigos,
como pudemos pensar que seria assim
para sempre? Ou que a música e o desejo
nos conduziriam de estação em estação
até ao pleno futuro que julgávamosmerecer? Afinal, o futuro era isto.
Não estamos mais sábios, não temos
melhores razões. Na viagem necessária
para o escuro, o amor é um passageiro
ocasional e difícil. E a partir de certa altura
todas as cidades se parecem.
Ao Mundo Esconde O Sol Seus Resplendores
Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,
e a mão da Noite embrulha os horizontes;
não cantam aves, não murmuram fontes,
não fala Pã na boca dos pastores.Atam as Ninfas, em lugar de flores,
mortais ciprestes sobre as tristes frontes;
erram chorando nos desertos montes,
sem arcos, sem aljavas, os Amores.Vênus, Palas e as filhas da Memória,
deixando os grandes templos esquecidos,
não se lembram de altares nem de glória.Andam os elementos confundidos:
ah, Jônia, Jônia, dia de vitória
sempre o mais triste foi para os vencidos!
O Final Do Guarani
(Santos, 15 jul. 1883)
Ceci — é a virgem loira das brancas harmonias,
A doce-flor-azul dos sonhos cor de rosa,
Peri — o índio ousado das bruscas fantasias,
O tigre dos sertões — de alma luminosa.Amam-se com o amor indômito e latente
Que nunca foi traçado nem pode ser descrito.
Com esse amor selvagem que anda no infinito.
E brinca nos juncais, — ao lado da serpente.Porém… no lance extremo, o lance pavoroso,
Assim por entre a morte e os tons de um puro gozo,
Dos leques da palmeira a note musical…Vão ambos a sorrir, às águas arrojados,
Mansos como a luz, tranqüilos, enlaçados
E perdem-se na noite serena do ideal!…
Fui um Leitor Apaixonado
Eu fui um leitor apaixonado. Não havia livros em minha casa, mas costumava ler bastante nas biblioteca públicas, especialmente à noite. Lia indiscriminadamente. Lembro-me de ler a tradução do «Paraíso Perdido» quando tinha 16 anos. Não havia ninguém que me dissesse o que experimentar a seguir. Por isso tive uma educação literária anárquica cheia de lacunas, mas com o tempo consegui organizar uma espécie de visão coerente da literatura, acima de tudo da literatura francesa.
Para cumprirmos nosso destino, não é suficiente simplesmente guardarmo-nos prudentemente contra os acidentes do percurso. Devemos também cobrir, antes do cair da noite, a distância designada para cada um de nós.