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A concentração de poder nas mesmas mãos é precisamente a definição de governo despótico. Não será nenhum alívio que estes poderes sejam exercidos por uma pluralidade de mãos e não por uma única.

Para Além da Curva da Estrada

Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.

Sempre vimos boas leis, que fizeram com que uma pequena república crescesse, transformarem-se depois num peso para ela, depois de grande.

Fala do Velho do Restelo ao Astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.

Um intelectual é alguém que, de hábito, não se distingue exatamente por seu intelecto. Atribui tal qualitativo a si mesmo para compensar a impotência natural que intui em suas capacidades.

Para ele, a música é libertadora: ela o liberta da solidão e da clausura, da poeira das bibliotecas, e lhe abre no corpo as portas por onde a alma pode sair para confraternizar.

Cada novo conhecimento importante que se faz decompõe-nos e volta a compor-nos. Se esse conhecimento for da maior importância, passamos por uma regeneração.

A terra, quando não é lavrada produz abrolhos e espinhos

A terra, quando não é lavrada produz abrolhos e espinhos, muito embora seja fértil; assim sucede com a inteligência do homem.

Sentimento do Tempo

Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer porque deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer porque o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.

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Da Resistência

Cantarei versos de pedras.

Não quero palavras débeis
para falar do combate.
Só peço palavras duras,
uma linguagem que queime.

Pretendo a verdade pura:
a faca que dilacere,
o tiro que nos perfure,
o raio que nos arrase.

Prefiro o punhal ou foice
às palavras arredias.
Não darei a outra face.