VisĂŁo
(A J. M. Eça de Queiroz)
Eu vi o Amor — mas nos seus olhos baços
Nada sorria já: só fixo e lento
Morava agora ali um pensamento
De dor sem trĂ©gua e de Ăntimos cansaços.Pairava, como espectro, nos espaços,
Todo envolto n’um nimbo pardacento…
Na atitude convulsa do tormento,
Torcia e retorcia os magros braços…E arrancava das asas destroçadas
A uma e uma as penas maculadas,
Soltando a espaços um soluço fundo,Soluço de Ăłdio e raiva impenitentes…
E do fantasma as lágrimas ardentes
CaĂam lentamente sobre o mundo!
Sonetos sobre Espaço
83 resultadosAnseio
Nessas paragens desoladas, onde
O silĂŞncio campeia soberano
Morreram notas do bulĂcio humano,
Nem vibra a corda que a saudade esconde.Anseios d’alma aqui se perdem. Donde
Fluiu outrora a luz dum doce engano,
Hoje Ă© trevas, Ă© dor, Ă© desengano,
E eu ergo preces que ninguém responde.Triste criança virginal, quem dera
Voar est’alma a ti, longe dos laços
Dessa jaula de carne que a encarcera!Ah! Que unidos assim, lá nos espaços,
Cantarias do amor a primavera,
Tendo a minh’alma presa nos teus braços!
CrĂtica da Poesia
Que a frenética poesia me perdoe
se a um baço rumor levanto o laço,
pois que verso não há onde não soe
a música discreta doutro espaço.Horizonte do verso é a dureza:
já mansidão não cabe neste olhar
que se pousa na faca sobre a mesa
e aprende nela o fio do seu cantar.Mas se olhar nela pousa, como corta?
E se as palavras sabemos retomar,
quem nos devolve a chave dessa porta
onde a herança está por encerrar?Tão longe está de nós a poesia
como nuvem nos rouba a luz do dia.
Ó Máquinas Febris
Ó máquinas febris! eu sinto a cada passo,
nos silvos que soltais, aquele canto imenso,
que a nova geração nos lábios traz suspenso
como a estância viril duma epopeia d’aço!Enquanto o velho mundo arfando de cansaço
prostrado cai na luta; em fumo negro e denso
levanta-se a espiral desse moderno incenso
que ofusca os deuses vãos, anuviando o espaço!Vós sois as criações fulgentes, fabulosas,
que, vibrantes, cruéis, de lavas sequiosas,
mordeis o pedestal da velha Majestade!E as grandes combustões que sempre vos consomem
começam, num cadinho, a refundir o homem
fazendo ressurgir mais larga a Humanidade!
Harpas Eternas
Hordas de Anjos titânicos e altivos,
Serenos, colossais, flamipotentes,
De grandes asas vĂvidas, frementes,
De formas e de aspectos expressivos.Passam, nos sĂłis da GlĂłria redivivos,
Vibrando as de ouro e de Marfim dolentes,
Finas harpas celestes, refulgentes,
Da luz nos altos resplendores vivosE as harpas enchem todo o imenso espaço
De um cântico pagão, lascivo, lasso,
Original, pecaminoso e brando…E fica no ar, eterna, perpetuada
A lânguida harmonia delicada
Das harpas, todo o espaço avassalando.
DelĂrio Do Som
O Boabdil mais doce que um carinho,
O teu piano ebúrneo soluçava,
E cada nota, amor, que ele vibrava,
Era-me n’alma um sol desfeito em vinho.Me parecia a mĂşsica do arminho,
O perfume do lĂrio que cantava,
A estrela-d’alva que nos cĂ©us entoava
Uma canção dulcĂssima baixinho.Incomparável, teu piano — e eu cria
Ver-te no espaço, em fluidos de harmonia,
Bela, serena, vaporosa e nua;Como as visões olĂmpicas do Reno,
Cantando ao ar um delicioso treno
Vago e dolente, com uns tons de lua.
A MĂŁe e o Filho
Teu sĂŞr tragicamente enternecido,
Em desespero de alma transformado,
Vae através do espaço escurecido
E pousa no seu tumulo sagrado.E ele acorda, sentindo-o; e, comovido,
Chora ao vĂŞr teu espirito adorado,
Assim tĂŁo sĂł na noite e arrefecido
E todo de ĂŞrmas lagrimas molhado!E eis que ele diz: “Ă“ MĂŁe, nĂŁo chores mais!
Em vez dos teus suspiros, dos teus ais,
Quero que venha a mim tua alegria!”E sĂł nas horas em que a MĂŁe descança,
É que ele inclina a fronte de creança
E dorme ao pé de ti, Virgem Maria!
Vésper
Do seu fastĂgio azul, serena e fria,
Desce a noite outonal, augusta e bela;
VĂ©sper fulgura alĂ©m… VĂ©sper! SĂł ela
Todo o céu, doce e pálida, alumia.De um mosteiro na cúpula irradia
Com frouxa luz… Em sua humilde cela,
Contemplativa e lânguida à janela,
Triste freira, fitando-a, se extasia…VĂ©sper, envolta em deslumbrante alvura,
Ó nuvens, que ides pelo espaço afora!
A quem tĂŁo longo olhar volve da altura?Que olhar, irmĂŁo do seu, procura agora
Na terra o astro do amor? O olhar procura
Da solitária freira que o namora.
Emissário de um Rei Desconhecido
Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anĂ´malo sentido…Inconscientemente me divido
Entre mim e a missĂŁo que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me desdém
Por este humano povo entre quem lido…NĂŁo sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou…Mas há! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser…
Já viram Deus as minhas sensações…
Irineu
Num dia turvo assim foi que partiste
Cheio de dor e de tristeza cheio.
Eu fiquei a chorar num doido anseio
Olhando o espaço merencório, triste.Não sei se mágoa mais profunda existe
Que esta saudade que me oprime o seio,
Pois a amargura que ferir-me veio
Naquele dia, Ăł meu irmĂŁo! persiste.Os anos que se foram! Entanto, eu cismo
A todo o instante, no profundo abismo
Que veio a morte entre nĂłs dois abrir.Mas cada noite, n’asa de uma prece,
Ou num raio de sol quando amanhece,
Vejo tu’alma para o cĂ©u subir…
O Corpo
Ante as portas desgarradas, paradoxal
Ă© a morte: impossĂvel, feito realidade,
acaso predito. Corpo, deus imortal,
para sempre cego e mudo, abandona-te ao livrear. Que te transformes e assemelhes Ă noite.
Tempestade final das sombras, foste, corpo,
respiração com voz, área que habitaste,
vária e discordante, a cada movimento.E agora que a luz desfalece e não a tocas,
nem por ela és tocado, a palavra deixou
de ser a tua pátria e não mais esfoliaso espaço. Agora, que já nada mudará,
nenhuma eternidade te rescende. A morte
petrifica o frágil espaço que foi teu.
Mais Alto
Mais alto, sim! Mais alto, mais além
Do sonho, onde morar a dor da vida,
Até sair de mim! Ser a Perdida,
A que se não encontra! Aquela a quemO mundo não conhece por Alguém!
Ser orgulho, ser águia na subida,
Até chegar a ser, entontecida,
Aquela que sonhou o meu desdĂ©m!Mais alto, sim! Mais alto! A IntangĂvel
Turris Eburnea erguida nos espaços,
Ă€ rutilante luz dum impossĂvel!Mais alto, sim! Mais alto! Onde couber
O mal da vida dentro dos meus braços,
Dos meus divinos braços de Mulher!
Inverno
Já na quarta estação final da vida
Estou, do triste Inverno rigoroso.
Fustigado do tempo borrascoso,
Co’a saraiva das asas sacudida.Gelada tenho a fronte encanecida,
O sangue frio, pálido e soroso.
Compresso está o fĂsico nervoso
E a máquina de todo enfraquecida.Nesta quadra da fúnebre tristeza,
Que alegria terei na sombra escura,
Se enlutada se vĂŞ a Natureza?SĂł, c’os frutos da má agricultura,
Vago triste no espaço da incerteza
De que a Morte me dĂŞ melhor ventura.
Criação
Há no amor um momento de grandeza,
que Ă© de inconsciĂŞncia e de ĂŞxtase bendito:
os dois corpos sĂŁo toda a Natureza,
as duas almas são todo o Infinito.É um mistério de força e de surpresa!
Estala o coração da terra aflito;
rasga-se em luz fecunda a esfera acesa,
e de todos os astros rompe um grito.Deus transmite o seu hálito aos amantes:
cada beijo é a sanção dos Sete Dias,
e a Gênese fulgura em cada abraço;Porque, entre as duas bocas soluçantes,
rola todo o Universo, em harmonias
e em florificações, enchendo o espaço!
Falo de Ti Ă s Pedras das Estradas
Falo de ti Ă s pedras das estradas,
E ao sol que e louro como o teu olhar,
Falo ao rio, que desdobra a faiscar,
Vestidos de princesas e de fadas;Falo Ă s gaivotas de asas desdobradas,
Lembrando lenços brancos a acenar,
E aos mastros que apunhalam o luar
Na solidĂŁo das noites consteladas;Digo os anseios, os sonhos, os desejos
Donde a tua alma, tonta de vitĂłria,
Levanta ao céu a torre dos meus beijos!E os meus gritos de amor, cruzando o espaço,
Sobre os brocados fĂşlgidos da glĂłria,
São astros que me tombam do regaço!
A Dor
Torva Babel das lágrimas, dos gritos,
Dos soluços, dos ais, dos longos brados,
A Dor galgou os mundos ignorados,
Os mais remotos, vagos infinitos.Lembrando as religiões, lembrando os ritos,
Avassalara os povos condenados,
Pela treva, no horror, desesperados,
Na convulsão de Tântalos aflitos.Por buzinas e trompas assoprando
As gerações vão todas proclamando
A grande Dor aos frĂgidos espaços…E assim parecem, pelos tempos mudos,
Raças de Prometeus titânios, rudos,
Brutos e colossais, torcendo os braços!
Alçando O Livro Colossal Ardente
Alçando o livro colossal ardente
Traças no crânio um sulco luminoso,
E vais seguindo o remontar garboso
Do sol fagueiro lá no espaço ingente!Ergues a fronte juvenil potente
Já como herói ou lutador famoso
E c’uma forma de pensar honroso
Fazes-te esperança da brasĂlea gente!Seis vezes astro de maior grandeza
Enfim lá surges nos exames belos
Enfim triunfas na brilhante empresa!Seis vezes quebras da ignorância os elos,
Seis vezes vives com mais sĂŁ firmeza,
Gemem seis vezes a louvar-te os prelos!…
Luar
Ao longo das lourĂssimas searas
Caiu a noite taciturna e fria…
Cessou no espaço a lĂmpida harmonia
Das infinitas perspectivas claras.As estrelas no céu, puras e raras,
Como um cristal que nĂtido radia,
Abrem da noite na mudez sombria
O cofre ideal de pedrarias caras.Mas uma luz aos poucos vai subindo
Como do largo mar ao firmamento — abrindo
Largo clarĂŁo em flocos d’escomilha.Vai subindo, subindo o firmamento!
E branca e doce e nĂvea, lento e lento,
A lua cheia pelos campos brilha…
Celeste
Vi-te crescer! tu eras a criança
Mais linda, mais gentil, mais delicada:
Tinhas no rosto as cores da alvorada
E o sol disperso pela loira trança.Asas tinhas tambĂ©m, as da esperança…
E de tal sorte eras sutil e alada
Que parecias ave arrebatada
Na luz do Espaço onde a razão descansa!Depois, então, fizeste-te menina,
VisĂŁo de amor, purĂssima, divina,
Perante a qual ainda hoje me ajoelho.Cresceste mais! És bela e moça agora…
Mas eu, que acompanhei toda essa aurora,
Sinto bem quanto estou ficando velho.
Soneto Com Pássaro E Avião
Uma coisa é um pássaro que voa.
Outra um aviĂŁo. Assim, quem o prefere
Não sabe às vezes como o espaço fere
Aquele, um vi morrer, voando Ă toaUm dia em Christ Church Meadows, numa antiga
Tarde, reminiscente de Wordsworth…
E tudo o que ficou daquela morte
Foi um baque de plumas, e a cantigaInterrompida a meio: espasmo? espanto?
NĂŁo sei. tomei-o leve em minha mĂŁo
TĂŁo pequeno, tĂŁo cálido, tĂŁo lassoEm minha mĂŁo… NĂŁo tinha o peito de amianto.
NĂŁo voaria mais, como o aviĂŁo
Nos longos tĂşneis de cristal do espaço…