Cogitação
Ah! mas então tudo será baldado?!
Tudo desfeito e tudo consumido?!
No Ergástulo d’ergástulos perdido
Tanto desejo e sonho soluçado?!Tudo se abismará desesperado,
Do desespero do Viver batido,
Na convulsĂŁo de um Ăşnico Gemido
Nas entranhas da Terra concentrado?!nas espirais tremendas dos suspiros
A alma congelará nos grandes giros,
Ratejará e rugirá rolando?!Ou entre estranhas sensações sombrias,
Melancolias e melancolias,
No eixo da alma de Hamlet irá girando?!
Passagens sobre Terra
1389 resultadosMaria
Maria, há no seu gesto airoso o nobre,
Nos olhos meigos e no andar tĂŁo brando,
Um nĂŁo sei que suave que descobre,
Que lembra um grande pássaro marchando.Quero, às vezes, pedir-lhe que desdobre
As asas, mas não peço, reparando
Que, desdobradas, podem ir voando
Levá-la ao teto azul que a terra cobre.E penso então, e digo então comigo:
“Ao cĂ©u, que vĂŞ passar todas as gentes
Bastem outros primores de valia.Pássaro ou moça, fique o olhar amigo,
O nobre gesto e as graças excelentes
Da nossa cara e lĂ©pida Maria”.
A caridade é o processo de somar alegrias, diminuir males, multiplicar esperanças e dividir a felicidade para que a Terra se realize na condição do esperado Reino de Deus.
A Tranquilidade da Alma não se Alcança em Viagens
Pensas que sĂł a ti isso sucedeu; admiras-te, como se fosse um caso raro, de apĂłs uma tĂŁo grande viagem e uma tĂŁo grande variedade de locais visitados nĂŁo teres conseguido dissipar essa tristeza que te pesa na alma!? Deves Ă© mudar de alma, nĂŁo de clima. Ainda que atravesses a vastidĂŁo do mar, ainda que, como diz o nosso VergĂlio, as costas, as cidades desapareçam no horizonte, os teus vĂcios seguir-te-ĂŁo onde quer que tu vás. Do mesmo se queixou um dia alguĂ©m a SĂłcrates: «PorquĂŞ admirar-te da inutilidade das tuas viagens,» – foi a resposta, – «se para todo o lado levas a mesma disposição? A causa que te aflige Ă© exactamente a mesma que te leva a partir!» De facto, em que pode ajudar a mudança de local, ou o conhecimento de novas paisagens e cidades? Toda essa agitação carece de sentido. Andares de um lado para o outro nĂŁo te ajuda em nada, porque andas sempre na tua prĂłpria companhia. Tens de alijar o peso que tens na alma; antes disso nĂŁo há terra alguma que te possa dar prazer!
Temos de viver com essa convicção: não nascemos destinados a nenhum lugar particular, a nossa pátria é o mundo inteiro!
Uma Mentira
Uma mentira, fina como um cabelo, perturba para sempre a ordem do mundo. Aquilo que sabemos tem muita importância. Tomamos decisões, vamos por aqui ou por ali, consoante aquilo que sabemos. E tudo o que virá a seguir, o futuro até ao fim dos tempos, será diferente se formos por um lado em vez de irmos por outro. Nascem pessoas devido a insignificâncias, morrem pessoas pelo mesmo motivo. Uma pessoa é uma máquina de coisas a acontecer, possibilidades multiplicadas por possibilidades em todos os instantes do seu tempo. Uma mentira, mesmo que transparente, perturba o entendimento que os outros têm da realidade, leva-os a acreditar que é aquilo que não é. Essa poluição vai turvar-lhes a lógica do mundo. As conclusões a que forem capazes de chegar serão calculadas a partir de um dado falso e, desse ponto em diante, todas as contas serão multiplicações de erros. Uma mentira baralha tudo aquilo em que toca, desequilibra o mundo. É por isso que uma mentira precisa sempre de mentiras novas para se suster. O mundo não lhe dá cobertura. Para alcançar coerência, cada mentira requer a criação apressada de um mundo de mentira que a suporte. É assim que a mentira vai avançando pela verdade adentro,
A alegria Ă© a dor que se dissimula – Ă face da Terra sĂł existe a dor.
Uma boa venda faz a terra bem estrumada.
Aqueles que anunciam que lutam a favor de Deus sĂŁo sempre os homens menos pacĂficos da terra. Como crĂŞem receber mensagens celestiais, tĂŞm os ouvidos surdos a qualquer palavra de humanidade.
Vaidades que a terra um dia há de comer
VĂŁo Arrebatamento
Partes um dia das Curiosidades
Do teu ser singular, partes em busca
De alamas irmĂŁs, cujo esplendor ofusca
As celestes, divinas claridades.Rasgas terras e céus, imensidades,
Dos perigos da Vida a vaga brusca,
Queima-te o sol que na AmplidĂŁo corusca
E consola-te a lua das saudades.Andas por toda a parte, em toda a parte
A sedução das almas a falar-te,
Como da Terra luminosos marcos.E a sorrir e a gemer e soluçando
Ah! Sempre em busca de almas vais andando
Mas em vez delas encontrando charcos!
Se você agir sempre com dignidade, pode não melhorar o mundo, mas uma coisa é certa: haverá na Terra um canalha a menos.
Primeira Palavra
Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue
para que eu recolha
os teus inacessĂveis frutos
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestĂgio
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios humedeça
a primeira palavra do teu corpo
Floresce!
Floresce, vive para a Natureza,
Para o Amor imortal, largo e profundo.
O Bem supremo de esquecer o mundo
Reside nessa lĂmpida grandeza.Floresce para a FĂ©, para a Beleza
Da Luz que Ă© como um vasto mar sem fundo,
Amplo, inflamado, mágico, fecundo,
De ondas de resplendor e de pureza.Andas em vĂŁo na Terra, apodrecendo
Ă€ toa pelas trevas, esquecendo
A Natureza e os seus aspectos calmos.Diante da luz que a Natureza encerra
Andas a apodrecer por sobre a Terra,
Antes de apodrecer nos sete palmos!
A Génese de um Povo
A refeição chegou muito tempo depois, fumegante, num alguidar de barro de cujo interior provinham diferentes odores a infância e a flores. A sua chegada, a sala inteira pareceu aquecer-se. Como em criança, José Artur pegou numa fatia do pão doce cortado à sua frente e colocou-a no fundo do prato, derramando sobre ela sucessivas conchas do caldo em que a carne mergulhava. Depois ergueu gravemente um dos pedaços dessa carne e passou-o para o prato também.
Levou o garfo Ă boca e fechou os olhos, a manteiga e o cravo-da-Ăndia e o toucinho de fumo diluindo-se e recombinando-se numa afluĂŞncia de sabores que se metamorfoseava. Ganhavam, perdiam e recuperavam cambiantes, Ă medida que entravam em acção novos ingredientes ainda, o vinho e a pimenta da Jamaica e a cebola e a banha de porco e de novo a carne, magnĂfica, derretendo-se-lhe na boca e fundindo-se com ela, como se ele tivesse, finalmente, atingido terra firme.
Comeu até ao fim, numa voragem antiga, e depois pegou nos últimos pedacinhos do pão doce e pôs-se a ensopar o resto do molho, comendo-os também.
«Massa sovada», lembrou-se. «Massa sovada!» Sabia-lhe a terramotos e a redenção.
Chegou-se para trás.
Com os Costumes andam os Aforismos
Com os costumes andam os aforismos. Assim, eis que eles tomam um carácter mais criticador e vibrante, isto na linguagem de Karl Kraus, homem sagaz e ventrĂloquo de certas causas que a sociedade nĂŁo confia Ă voz pĂşblica.
Ele diz, por exemplo: «As mulheres, no Oriente, tĂŞm maior liberdade. Podem ser amadas». Ou entĂŁo: «A vida de famĂlia Ă© um ataque Ă vida privada». Ou ainda: «A democracia divide os homens em trabalhadores e preguiçosos. NĂŁo está destinada para aqueles que nĂŁo tĂŞm tempo para trabalhar». Tudo isto, como axioma, lembra Bernard Shaw, esse inglĂŞs azedo e endiabrado cujo Manual do Revolucionário fez o encanto da nossa adolescĂŞncia.
Todavia, o aforimo do homem de letras, se impressiona, quase nunca comove ninguĂ©m. O autĂŞntico aforismo nĂŁo Ă© uma arte – Ă© uma espĂ©cie de pastorĂcia cultural. NĂŁo está destinado a divertir nem a chocar as pessoas, mas, acima de tudo, propõe-se transmitir uma orientação. É uma lição, e nĂŁo o pretexto para uma pirueta.
Os aforismos e paradoxos de Karl Kraus tĂŞm esse sabor irreverente que se diferencia da sabedoria, porque há algo de precipitado na sua confissĂŁo. Precisam de ser situados num estado de espĂrito, para serem aceites e compreendidos;
Prece do Natal
Menino Jesus
De novo nascido,
Baixai o sentido
Para a nossa cruz!Vede que os humanos
Erros e cuidados
Nos sĂŁo tĂŁo pesados
Como há dois mil anos.A nossa ignorância
É um fardo que arde.
Como se faz tarde
Para a nossa ânsia!Nós somos da Terra,
Coisa fria e dura.
Olhai a amargura
Que esse olhar encerra.Colai o ouvido
Ă€ alma que sofre;
Abri esse cofre
Do sonho escondido.Pegai nessa mĂŁo
Que treme de medo;
Sondai o segredo
Da minha oração.Esta pobre gente
Que mal Ă© que fez?
NĂłs somos, talvez,
Um povo «inocente»…Menino Jesus
Que andais distraĂdo
Baixai o sentido
Para a nossa cruz!A mais insofrida
De tantas misérias
– Não termos mais férias
Ao longo da vida –Trocai por amenas
ManhĂŁs sem cuidados,
SilĂŞncios banhados
De ideias serenas;Por cantos e flores
Risonhas imagens
Macias paisagens
Felizes amores!
Em leito de penas
não se alcança a fama nem sobre as cobertas;
Quem a vida consome sem a fama,
nĂŁo deixa de si nenhum vestĂgio sobre a terra,
qual fumo no ar e espuma na água.
Os pensamentos mais belos e as ideias mais baixas nĂŁo alteram o aspecto eterno da nossa alma, como os Himalaias ou os precipĂcios nĂŁo modificam, no meio das estrelas do cĂ©u, o aspecto da nossa terra.
Em Louvor das Crianças
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino Ă© o da infância. A esse paĂs inocente, donde se Ă© expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, Ă s vezes, poesia. Essa espĂ©cie de terra mĂtica Ă© habitada por seres de uma tĂŁo grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi Ă s crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o ParaĂso.
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que,
A um Retrato
Amo-te, flor! Se te amo, Deus que o sabe
Que o diga a teus irmãos, que o Céu povoam
E ébrios de glória cânticos entoam
A quem no mar, na Terra e Céus não cabe.Se te amo, flor! que o diga o mar que expele
Quanto Ă© domĂnio, e beija humilde a praia…
Se mal que a Lua lá das ondas saia
Nas rochas me nĂŁo vĂŞ gemer com ele!Amo-te, flor! Se te amo, o Sol que o diga:
Quando lá da montanha aos Céus se eleva,
Se entre os vermes do pĂł, que o vento leva,
Me banha a mim tambĂ©m na luz amiga.Se te amo, flor? Sem ti… que noite escura,
Meu céu, meu campo em flor, meu dia e tudo!
Diga-te a noite minha se te iludo,
Se em vida já sem ti sonhei ventura!O anjo que no berço humilde e escasso
Do Céu me veio alumiar piedoso
E em lágrimas e riso, pranto e gozo,
Desde então me acompanha passo a passo;És tu! Amo-te e muito!