Disponibilidade Vazia
O cigano foi-se confessar; mas o padre, precavido, começou por interrogá-lo sobre os mandamentos de Deus. Ao que o cigano respondeu: «Olhe, senhor padre, eu ia aprender isso, mas depois ouvi um zum-zum de que tinha perdido o valor». (…) Todo o mundo – nações, indivíduos – está desmoralizado. Durante uma temporada, esta desmoralização diverte e até vagamente ilude. Os inferiores pensam que lhes tiraram um peso de cima. Os decálogos conservam do tempo em que eram inscritos sobre pedra ou bronze oseu carácter de pesadume. A etimologia de mandar significa carregar, pôr em alguém algo nas mãos. Quem manda é, sem remissão, quem tem o encargo. Os inferiores do mundo inteiro já estão fartos de que os encarreguem e sobrecarreguem, e aproveitam com ar festivo este tempo de pesados imperativos. Mas a festa dura pouco. Sem mandamentos que nos obriguem a viver de um certo modo, fica a nossa vida em pura disponibilidade. Esta é a horrível situação íntima em que se encontram já as melhores juventudes do mundo. De puro sentir-se livres, isentas de entraves, sentem-se vazias. Uma vida em disponibilidade é maior negação que a morte. Porque viver é ter que fazer algo determinado – é cumprir um encargo –,
Textos sobre Mundo
835 resultadosSapiência Diversificada
Entre outras vantagens, a sabedoria também tem isto de bom: só se pode ser ultrapassado por outro durante a fase de ascenção. Quando se chega ao cume, não mais subsistem diferenças: a sabedoria é um estado constante, não passível de qualquer incremento. Acaso o Sol pode aumentar de tamanho ou a Lua sair da sua órbita? Os oceanos também não crescem; o mundo conserva sempre a sua forma e as suas medidas. Todos os seres que atingiram as suas dimensões ideais já não podem aumentar e, por isso, todos os homens que atingirem a sapiência são de valor inteiramente idêntico. De entre eles, cada um terá as suas qualidades próprias: um poderá ser mais afável, outro mais desembaraçado, outro de palavra mais pronta, outro dotado de maior eloquência. Mas o ponto que nos interessa – a sapiência que gera a beatitude – essa será igual em todos eles.
Analisar as Nossas Relações
Nenhuma mudança psíquica sustentável ocorre rapidamente. São necessários o autoconhecimento, a educação, o treino, a utilização de ferramentas e, em especial, a compreensão básica do mais complexo dos universos, a mente humana.
Qualquer mulher gostaria de remover a impaciência, a ansiedade, as fobias, o humor depressivo e a timidez da sua mente. Mas a vontade consciente de mudança ou superação de um conflito, por mais forte e poderosa que seja, não é eficiente. Não basta o Eu querer reorganizar a sua personalidade, é preciso utilizar estratégias adequadas. Até um psicopata gostaria de ser gentil e afetivo em toda a sua agenda psíquica, mas, no calor das crises, os monstros alojados no seu inconsciente devoram-no e magoam os outros.O Eu deve ser equipado, em especial, para ser o Autor da sua história. Porque brilhamos no mundo exterior, mas somos tão opacos no mundo interior? Porque é que as guerras, os homicídios, as discriminações, os distúrbios psíquicos, os conflitos sociais fazem a pauta da nossa história? Por que razão sonham os pais em proporcionar a melhor educação aos seus filhos, mas nem sempre têm êxito? Porque é que casais apaixonados que fazem juras de amor podem acabar inimigos?
Ser Mãe é Aceitar. Tudo.
Ser mãe é receber em si um outro que lhe vem de fora e acolhê-lo em vista de um futuro que pressente mas que, de maneira nenhuma, sabe explicar. Ser mãe é, antes de mais, aceitar. Tudo. Tudo.
É aceitar em si um outro para o qual ela se torna o mundo: gerando-o, alimentando-o, comendo, bebendo e respirando com ele… ele dentro de si, ela em volta dele.
É deixar esse outro ir embora e voltar a recebê-lo em cada dia, quando ele volta, quando ele se revolta e, também, quando ele não volta…
Ser mãe é acolher o que o outro lhe dá. Mas não como quem se alimenta do que lhe vem de fora, transformando-o em vida, que acolhe em si, e devolvendo ao mundo, já morto, aquilo que sobra. Ser é mãe é dar-se como alimento, transformando-se na vida daquele a quem se dá para depois… voltar depois ao mundo, gasta, apenas com o que lhe sobra.
Ser mãe é dar-se. Aceitando sempre qualquer resultado e resposta.Uma mãe, mais do que dar um filho ao mundo, deve dar um mundo ao filho. Um melhor que este, cheio de esperança e sonhos,
Vence a Tua Inércia!
O destino que nos oprime é a inércia do nosso espírito. Através do alargamento e formação da nossa actividade transmutamo-nos, nós próprios, em Destino.
Tudo parece fluir para nós vindo do exterior, porque nós não fluímos para o exterior. Somos negativos, apenas, porque o queremos – quanto mais positivos nos tornarmos, mais negativo será o mundo à nossa volta – até que, por fim, já não haverá negação e nós seremos tudo em tudo.
Deus quer deuses.
Se o nosso corpo, em si mesmo, não é senão um centro de acção comum dos nossos sentidos – se nós possuímos o domínio dos nossos sentidos – se os podemos fazer agir à vontade – se os podemos centrar em comunidade, então não depende senão de nós o darmos a nós próprios o corpo que queremos.
Sim, se os nossos sentidos não são senão modificações do órgão pensante – do elemento absoluto – então poderemos, também, pela dominação deste elemento, modificar e dirigir, como nos agradar, os nossos sentidos.
Cidadão do Mundo
De todas as grandes tiradas da História, em boa verdade, aquela que eu mais depressa aprendera a detestar fora essa do «cidadão do mundo», com que a classe média de Lisboa tanto gostava de encher a boca até que alguém a reconhecesse globetrotter, portadora de cartão de crédito e representante dessa nova burguesia do resort de quatro estrelas e da máquina fotográfica digital. Porque ser de todo o lado, percebi-o eu assim que extravasei os limites da terra-mãe, não podia significar outra coisa senão que não se era de lado nenhum – e não ser de lado nenhum, não ter um lugar, um canto de mundo a que regressar, parecera-me sempre a mais triste de todas as condições. Para ser sincero, e apesar das já quase duas décadas que levava de exílio, eu continuava a voltar à terra como se realmente pudesse acordar ao contrário, contorcendo-me e espreguiçando-me e depois fechando-me em concha, até, enfim, adormecer. E, se de alguém ainda conseguia desdenhar com algum método, assim despertando da letargia que nos últimos anos me deixara impávido perante cada vez mais coisas, perante a dor e o próprio prazer, era daqueles que viviam longe há dez ou vinte ou trinta ou mesmo quarenta anos e,
O Homem não é Mais do que a sua Imagem
O homem não é mais do que a sua imagem. Os filósofos bem podem explicar-nos que a opinião do mundo pouco conta e que só importa aquilo que somos. Mas os filósofos não percebem nada. Enquanto vivermos entre os seres humanos, seremos aquilo que os seres humanos considerarem que somos. Passamos por velhacos ou manhosos quando não paramos de perguntar a nós próprios como nos vêem os outros, quando nos esforçamos por ser o mais simpáticos possível. Mas entre o meu eu e o do outro, existirá algum contacto directo, sem a mediação dos olhos? Será pensável o amor sem uma perseguição angustiada da nossa própria imagem no pensamento da pessoa amada? Quando deixamos de nos preocupar com a maneira como o outro nos vê, deixamos de o amar.
Aos Realistas
Ó seres frios que vos sentis tão couraçados contra a paixão e a quimera e que tanto gostaríeis de fazer da vossa doutrina um adorno e um objecto de orgulho, dais-vos o nome de realistas e dais a entender que o mundo é verdadeiramente tal como vos aparece; que sois os únicos a ver a verdade isenta de véus e que sois vós talvez a melhor parte dessa verdade… ó queridas imagens de Sais! Mas não sereis ainda vós próprios, mesmo no vosso estado mais despojado, seres surpreendentemente obscuros e apaixonados se vos compararmos aos peixes? Não sereis ainda demasiado parecidos com artistas apaixonados? E o que vem a ser a «realidade» aos olhos de um artista apaixonado? Ainda não deixaste de julgar as coisas como fórmulas que têm a sua origem nas paixões e nos complexos amorosos dos séculos passados! A vossa frieza está ainda cheia de uma secreta e inextirpável embriaguez!
O vosso amor pela «realidade», se for necessário escolher-vos um exemplo, que coisa antiga! Que velho «amor»! Não há sentimento, sensação, que não contenham uma certa dose, que não tenham sido, também, trabalhados e alimentados por qualquer exagero da imaginação, por um preconceito, uma sem-razão, uma incerteza,
A Vantagem do Saber
Não existe ocupação tão agradável como o saber; o saber é o meio de nos dar a conhecer, ainda neste mundo, o infinito da matéria, a imensa grandeza da Natureza, os céus, as terras e os mares. O saber ensinou-nos a piedade, a moderação, a grandeza do coração; tira-nos as nossas almas das trevas e mostra-nos todas as coisas, o alto e o baixo, o primeiro, o último e tudo aquilo que se encontra no meio; o saber dá-nos os meios de viver bem e felizmente; ensina-nos a passar as nossas vidas sem descontentamento e sem vexames.
O Valor da Ingenuidade
O maior perigo que corre o ingénuo: o de querer ser esperto. Tão ingénuo que cuida, coitado, de que alguma vez no mundo o conhecimento valeu mais do que a ingenuidade de cada um. A ingenuidade é o legítimo segredo de cada qual, é a sua verdadeira idade, é o seu próprio sentimento livre, é a alma do nosso corpo, é a própria luz de toda a nossa resistência moral.
Mas os ingénuos são os primeiros que ignoram a força criadora da ingenuidade, e na ânsia de crescer compram vantagens imediatas ao preço da sua própria ingenuidade.
Raríssimos foram e são os ingénuos que se comprometeram um dia para consigo próprios a não competir neste mundo senão consigo mesmos. A grande maioria dos ingénuos desanima logo de entrada e prefere tricher no jogo de honra, do mérito e do valor. São eles as próprias vítimas de si mesmos, os suicidas dos seus legítimos poetas, os grotescos espanatalhos da sua própria esperteza saloia.
Bem haja o povo que encontrou para o seu idioma esta denunciante expressão da pessoa que é vítima de si mesma: a esperteza saloia. A esperteza saloia representa bem a lição que sofre aquele que não confiou afinal em si mesmo,
Vivemos numa Paz de Animais Domésticos
Uma cobra de água numa poça do choupal, a gozar o resto destes calores, e umas meninas histéricas aos gritinhos, cheias de saber que o bicho era tão inofensivo como uma folha.
Por fidelidade a um mandato profundo, o nosso instinto, diante de certos factos, ainda quer reagir. Mas logo a razão acode, e o uivo do plasma acaba num cacarejo convencional. Todos os tratados e todos os preceptores nos explicaram já quantas espécies de ofídios existem e o soro que neutraliza a mordedura de cada um. Herdamos um mundo já quase decifrado, e sabemos de cor as ervas que não devemos comer e as feras que nos não podem devorar. Vivemos numa paz de animais domésticos, vacinados, com os dentes caninos a trincar pastéis de nata, tendo aos pés, submissos, os antigos pesadelos da nossa ignorância. Passamos pela terra como espectros, indo aos jardins zoológicos e botânicos ver, pacata e sàbiamente, em jaulas e canteiros, o que já foi perigo e mistério. E, por mais que nos custe, não conseguimos captar a alma do brinquedo esventrado. O homem selvagem, que teve de escolher tudo, de separar o trigo do joio, de mondar dos seus reflexos o que era manso e o que era bravo,
A Originalidade
Eu não acredito na originalidade. É mais um feitiço na nossa época de vertiginoso desmoronamento. Creio na personalidade através de qualquer linguagem, de qualquer forma, de qualquer sentido da criação artística. Mas a originalidade delirante é uma invenção moderna e um vigário eleitoral. Não falta quem queira fazer-se eleger Primeiro Poeta do seu país, da sua língua ou do mundo. Correm, então, em busca de eleitores, insultam quem aparente possibilidades de lhes disputar o ceptro e, desse modo, a poesia transforma-se numa mascarada. No entanto, é essencial conservar a direcção íntima, manter o controlo do crescimento que a natureza, a cultura e a vida social asseguram ao desenvolvimento das excelências do poeta.
O Maior Milagre é a Vida Quotidiana
Se eu procurasse algum milagre no mundo, não seriam os acontecimentos extraordinários que eu chamaria de milagres, mas bem mais o curso normal das estações e a forma invariável das constelações. Se algo pudesse provar que há um deus, seria a ordem e não a desordem, e o retorno constante dos dias e das estações, mais do que o espectáculo de um homem caminhando sobre o mar.
A Decadência da Ciência
Ouve-se dizer que a ciência está actualmente submetida a imperativos de rentabilidade económica; na verdade sempre foi assim. O que é novo é que a economia venha a fazer abertamente guerra aos humanos; já não somente quanto às possibilidades da sua vida, como também às da sua sobrevivência. Foi então que o pensamento cientifico escolheu, contra uma grande parte do seu próprio passado antiesclavagista, servir a dominação espectacular (da sociedade de consumo). Antes de chegar a este ponto, a ciência possuía uma autonomia relativa. Então sabia pensar a sua parcela da realidade e, assim, tinha podido contribuir imensamente para aumentar os meios da economia. Quando a economia toda-poderosa enlouqueceu, e os tempos espectaculares não são mais do que isto, suprimiu os últimos vestígios da autonomia científica, tanto no campo metodológico como no das condições práticas da actividade dos «investigadores».
Já não se pede à ciência que compreenda o mundo ou o melhore nalguma coisa. Pede-se-lhe que justifique instantaneamente tudo o que faz. Tão estúpida neste terreno como em todos os outros, que explora com a mais ruinosa irreflexão, a dominação espectacular promoveu o abate da árvore gigantesca do conhecimento científico com o único fim de dela talhar uma matraca.
O que é Dar a Vida?
Dar a vida é amar. Abdicar de si… em favor de um outro. Vencer egoísmos e medos com a convicção de que dar-se nunca é um excesso nem uma cobardia.
Dar a vida é perder-se para se encontrar. Entregar-se para se receber… É aparecer, sair de si até ao ponto de se poder ver bem diante dos próprios olhos.
Dar a vida é vivê-la tal como ela é na essência: generosa! Ser mais vida na vida de outro alguém. Cuidar da existência do outro com a sua… dar a vida é ser outro. Melhor. Muito.
Dar a vida é ser um sorriso apenas com um olhar. É oferecer lágrimas a quem já perdeu as suas. Ser um silêncio onde há paz… e uma melodia que revela que o melhor do mundo repousa em nós… à espera de nós.Dar a vida é reconhecer a beleza que há neste mundo. No outro e no mundo do outro. É contribuir para o equilíbrio e ficar em harmonia… com tudo e com cada coisa, compreendendo que a verdadeira alegria é a coisa mais séria da vida.
Dar a vida é guardar-se para o momento oportuno,