O Princípio Fundamental da Sociedade
Abster-se reciprocamente de ofensas, da violência, da exploração, adaptar a sua própria vontade à de outro: tal coisa pode, num certo sentido tosco, tornar-se bom costume entre indivíduos, se existirem condições para tal (a saber, semelhança efectiva entre as suas quantidades de força e entre as suas escalas de valores e a homogeneidade dos mesmos dentro de um só organismo). Logo que, porém, se quisesse alargar este princípio, concebendo-o até como príncipio fundamental da sociedade, revelar-se-ia imediatamente como aquilo que é: vontade de negação da vida, princípio de dissolução e de decadência. Aqui é preciso pensar-se bem profundamente e defender-se de toda a fraqueza sentimentalista: a própria vida é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição daquilo que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e pelo menos, na melhor das hipóteses, exploração, – mas para que empregar palavras a que, desde há muito, se deu uma intenção difamadora?
Também aquele organismo dentro do qual conforme acima se admitiu, os indivíduos se tratam como iguais – e tal se dá em toda a aristocracia sã -, tem de fazer, no caso de ser um organismo vivo e não moribundo, ao enfrentar outros organismos, tudo o que os indivíduos dentro dele se abstêm de fazer entre si: terá de ser a vontade de poder personificada,
Textos sobre Costumes
90 resultadosAs Máscaras e a Guerra
… A minha casa ficou entre os dois sectores… De um lado avançavam mouros e italianos… Do outro lado avançavam, retrocediam ou aguentavam-se os defensores de Madrid… Pelas paredes tinham entrado as granadas da artilharia… As janelas desfizeram-se em estilhaços… Encontrei restos de chumbo no chão, entre os meus livros… Mas as minhas máscaras tinham desaparecido… As minhas máscaras trazidas do Sião, de Bali, de Samatra, do arquipélago malaio, de Bandung. Douradas, cinzentas, cor de tomate, com sobrancelhas prateadas ou azuis, infernais, ensimesmadas, as minhas máscaras eram a única lembrança daquele primeiro Oriente aonde cheguei solitário e que me tinha acolhido com o seu odor de chá, de esterco, de ópio, de suor, de jasmins intensos, de frangipana, de fruta podre pelas ruas… Aquelas máscaras, memória de puríssimas danças, dos bailes defronte do templo… Gotas de madeira coloridas pelos mitos, restos daquela floral mitologia que traçava no ar sonhos, costumes, demóniosi mistérios incompatíveis com a minha natureza americana… E então… Talvez os militantes tenham assomado às janelas da minha casa com as máscaras postas, talvez tenham assustado os mouros entre dois disparos… Muitas deles ficaram em estilhas e sangrentas, ali mesmo… Outras teriam rolado desde o meu quinto andar, arrancadas por um tiro…
Com os Costumes andam os Aforismos
Com os costumes andam os aforismos. Assim, eis que eles tomam um carácter mais criticador e vibrante, isto na linguagem de Karl Kraus, homem sagaz e ventríloquo de certas causas que a sociedade não confia à voz pública.
Ele diz, por exemplo: «As mulheres, no Oriente, têm maior liberdade. Podem ser amadas». Ou então: «A vida de família é um ataque à vida privada». Ou ainda: «A democracia divide os homens em trabalhadores e preguiçosos. Não está destinada para aqueles que não têm tempo para trabalhar». Tudo isto, como axioma, lembra Bernard Shaw, esse inglês azedo e endiabrado cujo Manual do Revolucionário fez o encanto da nossa adolescência.
Todavia, o aforimo do homem de letras, se impressiona, quase nunca comove ninguém. O autêntico aforismo não é uma arte – é uma espécie de pastorícia cultural. Não está destinado a divertir nem a chocar as pessoas, mas, acima de tudo, propõe-se transmitir uma orientação. É uma lição, e não o pretexto para uma pirueta.
Os aforismos e paradoxos de Karl Kraus têm esse sabor irreverente que se diferencia da sabedoria, porque há algo de precipitado na sua confissão. Precisam de ser situados num estado de espírito, para serem aceites e compreendidos;
A Vida em Conformidade com Princípios mais Elevados
Se a pessoa der ouvidos às subtis mas constantes sugestões do seu espírito, sem dúvida autênticas, não vê a que extremos, e até loucura, ele pode levá-la; contudo, por aí envereda o seu caminho à medida que cresce em resolução e fé. A mais leve objecção segura que um homem sadio fizer, com o tempo prevalecerá sobre os argumentos e costumes da humanidade. Nenhum homem jamais seguiu a sua índole a ponto de esta o extraviar. Embora o resultado fosse fraqueza física, ainda assim talvez ninguém pudesse dizer que as consequências eram lamentáveis, já que representariam a vida em conformidade com princípios mais elevados. Se o dia e a noite são de tal natureza que vós os saudais com alegria, se a vida emite uma fragrância de flores e ervas aromáticas e se torna mais elástica, mais cintilante e mais imortal – aí está o vosso êxito.
A natureza inteira é a vossa congratulação e tendes motivos terrenos para bendizer-vos. Os maiores lucros e valores estão ainda mais longe de serem apreciados. Chegamos facilmente a duvidar de que existam. Logo os esquecemos. Constituem, entretanto, a realidade mais elevada.
Talvez os factos mais estarrecedores e verdadeiros nunca sejam comunicados de homem a homem.
O Prazer no Costume
Uma importante variedade do prazer e, com isso, fonte da moralidade, provém do hábito. O usual faz-se mais facilmente, melhor, portanto, com mais agrado, sente-se nisso um prazer e sabe-se, por experiência, que o habitual deu bom resultado, daí é útil; um costume, com o qual se pode viver, está provado que é salutar, proveitoso, ao contrário de todas as tentativas novas, ainda não comprovadas. O costume é, por conseguinte, a união do agradável e do útil; além disso, não exige reflexão. Assim que o homem pode exercer coacção, exerce-a para impor e introduzir os seus costumes, pois para ele, eles são a comprovada sabedoria prática. De igual modo, uma comunidade de indivíduos obriga cada um deles ao mesmo costume.
Aqui está a conclusão errada: porque uma pessoa se sente bem com um costume ou, pelo menos, porque por intermédio do mesmo assegura a sua existência, então esse costume é necessário, pois passa por ser a única possibilidade de uma pessoa se conseguir sentir bem; o agrado da vida parece emanar exclusivamente dele. Esta concepção do habitual como uma condição da existência é aplicada até aos mais pequenos pormenores do costume: dado que o conhecimento da verdadeira causalidade é muito escasso entre os povos e as civilizações que se encontram a um nível baixo,
Moralidade e Felicidade
A felicidade é o estado em que se encontra no mundo um ser racional para quem, em toda a sua existência, tudo decorre conforme o seu desejo e a sua vontade; pressupõe, por consequência, o acordo da natureza com todo o conjunto dos fins deste ser, e simultaneamente com o fundamento essencial de determinação da sua vontade. Ora a lei moral, como lei da liberdade, obriga por meio de fundamentos de determinação, que devem ser inteiramente independentes da natureza e do acordo dela com a nossa faculdade de desejar (como motor). Porém, o ser agente racional que actua no mundo não é simultaneamente causa do mundo e da própria natureza. Assim, pois, na lei moral não há o menor fundamento para uma conexão necessária entre a moralidade e a felicidade, com ela proporcionada, num ser que, fazendo parte do mundo, dele depende; este ser, precisamente por isso, não pode ser voluntariamente a causa desta natureza nem, no que à felicidade respeita, fazer com que, pelas suas próprias forças, coincida perfeitamente com os seus próprios princípios práticos.
E, todavia, no problema prático que a razão pura nos prescreve, isto é, na prossecução do soberano bem, tal acordo é postulado como necessário: devemos procurar realizar o soberano bem,
Moral Vazia
O que nós chamamos a moral não passa de um empreendimento desesperado dos nossos semelhantes contra a ordem universal, que é a luta, a carnificina e o jogo cego de forças contrárias.
(…) Cada época tem a sua moral dominante, que não resulta nem da religião nem da filosofia, mas do hábito, única força capaz de reunir os homens num mesmo sentimento, pois tudo o que é sujeito ao raciocínio divide-os; e a humanidade só subsiste com a condição de não reflectir sobre aquilo que é essencial para a sua existência.
(…) A moral é a ciência dos costumes, e com eles muda. Ela difere de país para país e em nenhum lugar permanece a mesma no espaço de dez anos.
Regras Essenciais para uma Boa Amizade
Os homens assemelham-se às crianças, que adquirem maus costumes quando mimadas; por isso, não se deve ser muito condescendente e amável com ninguém. Do mesmo modo como, via de regra, não se perderá um amigo por lhe negar um empréstimo, mas muito facilmente por lhe conceder, também não se perderá nenhum amigo por conta de um tratamento orgulhoso e um pouco negligente, mas amiúde em virtude de excessiva amabilidade e solicitude, que fazem com que ele se torne insuportável, o que então produz a ruptura. Mas é sobretudo o pensamento de que precisamos das pessoas que lhes é absolutamente insuportável: petulância e presunção são as consequências inevitáveis.
Em algumas, tal pensamento origina-se em certo grau já pelo facto de nos relacionarmos ou conversarmos frequentemente com elas de uma maneira confidencial; de imediato, pensarão que nós também devemos ter paciência com eles e tentarão ampliar os limites da polidez. Eis porque tão poucos indivíduos se prestam a uma convivência íntima; desse modo, temos de evitar qualquer familiaridade com naturezas de nível inferior.Contudo, se esse indivíduo imaginar que é mais necessário a nós do que nós a ele, terá como sensação imediata a impressão de que lhe roubamos algo.
A Castração da Personalidade
O homem é um animal gregário. Político, dizia Aristóteles, ou seja, membro da cidade. Mas não só da cidade – de todas as greis espontâneas ou artificiais, estáveis ou precárias, onde quer que se encontre. Não pode suportar a ideia de estar só, consigo – quer ser unidade e não individualidade. Tem necessidade de se sentir cotovelo com cotovelo, pele com pele, no calor de uma multidão, ligado, seguro, uniforme, conforme. Se o leão anda só, em nós predomina o instinto ovino, do rebanho – os próprios individualistas, para afirmar o seu individualismo, congregam-se: sempre segundo a prática ovina.
O homem, quando só, sente-se incompleto – tem medo. Opor-se à grei significa separar-se, permanecer só, morrer. Os conceitos do bem e do mal nascem da necessidade de convivência. É bem o que aproveita ao grupo, mal o que o prejudica ou não beneficia. O rebanho não quer que cada ovelha pense demasiado em si, e como a privilegiada é a que obtém a boa opinião das outras, vê-se forçada, ainda que contra os seus gostos e interesses, a agir no sentido do bem supremo do rebanho. Há que pagar, com a castração da personalidade, a segurança contra o medo.
A Má Consciência como Inibição dos Instintos
A má consciência é para mim o estado mórbido em que devia ter caído o homem quando sofreu a transformação mais radical que alguma vez houve, a que nele se produziu quando se viu acorrentado à argola da sociedade e da paz. À maneira dos peixes obrigados a adaptarem-se a viver em terra, estes semianimais, acostumados à vida selvagem, à guerra, às correrias e aventuras, viram-se obrigados de repente a renunciar a todos os seus nobres instintos. Forçavam-nos a irem pelo seu pé, a «levarem-se a si mesmos», quando até então os havia levado a água: esmagava-os um peso enorme. Sentiam-se inaptos para as funções mais simples; neste mundo novo e desconhecido não tinham os seus antigos guias estes instintos reguladores, inconscientemente falíveis; viam-se reduzidos a pensar, a deduzir, a calcular, a combinar causas e efeitos. Infelizes! Viam-se reduzidos à sua «consciência», ao seu órgão mais fraco e mais coxo! Creio que nunca houve na terra desgraça tão grande, mal-estar tão horrível!
Acrescente-se a isto que os antigos instintos não haviam renunciado de vez às suas exigências. Mas era difícil e amiúde impossível satisfazê-las; era preciso procurar satisfações novas e subterrâneas. Os instintos sob a enorme força repressiva, volvem para dentro,
A Leitura é a Mais Nobre das Distracções
Se o gosto pelos livros aumenta com a inteligência, os perigos, como vimos, diminuem com ela. Um espírito original sabe subordinar a leitura à actividade pessoal. Ela é para ele apenas a mais nobre das distrações, sobretudo a mais enobrecedora, pois, só a leitura e o saber conferem «as boas maneiras» do espírito. O poder da nossa sensibilidade e da nossa inteligência, só o podemos desenvolver dentro de nós próprios, nas profundezas da nossa vida espiritual. Mas é nesse contacto com os outros espíritos que a leitura é, que se faz a educação das “maneiras” do espírito. Os letrados permanecem, apesar de tudo, como as pessoas notáveis da inteligência, e ignorar um determinado livro, uma determinada particularidade da ciência literária, será sempre, mesmo num homem de génio, uma marca de grosseria intelectual. A distinção e a nobreza consistem na ordem do pensamento também, numa espécie de franco-maçonaria de costumes, e numa herança de tradições.
Que Significado Tem a Felicidade?
Deve-se neste momento – relacionando-a com certas informações do dicionário – formular ainda a pergunta: o que são afinal os bens da vida humana? Quem nos diz que um determinado bem é superior ou inferior? Há lacunas desagradáveis nos dicionários, até nos mais conhecidos. Pode-se demonstrar que há pessoas para quem DM 2,5 são um bem muito superior a qualquer outra vida humana, com excepção da deles, e há até outros que, por amor a um bocado de chouriço de sangue, que conseguem ou não apanhar, arriscam sem hesitação os bens das mulheres e dos filhos, como, por exemplo: uma vida familiar alegre e a presença de um pai ao menos uma vez radiante. E que significado tem esse bem, que louvamos sob o nome de F.(Felicidade)? Que diabo, este está bem perto da F., se consegue juntar as três ou quatro beatas que chegam para ele fazer outro cigarro ou se pode beber o resto de Vermute de uma garrafa que se deitou fora, aquele precisa para ser feliz durante cerca de dez minutos – pelo menos segundo o costume ocidental de amor a ritmo acelerado-, mais precisamente: para estar ràpidamente com a pessoa que naquele momento deseja, precisa de um avião a jacto particular,
A Vida Raramente depende da Inciativa dos Homens
Poucas pessoas saberão, a meio da vida, como chegaram a ser o que são, aos seus prazeres, à sua visão do mundo, à sua mulher, ao seu carácter, à sua profissão e aos seus êxitos; mas sentem que a partir daí as coisas já não irão mudar muito. Poderia mesmo afirmar-se que foram enganadas, porque não se consegue descobrir em lugar nenhum a razão suficiente para que tudo tenha acontecido como aconteceu, quando teria sido perfeitamente possível ter acontecido de outra forma. O que acontece, aliás, raramente depende da iniciativa dos homens, mas quase sempre das mais variadas circunstâncias, dos caprichos, da vida e da morte de outras pessoas, e, de certo modo, limita-se a vir ter connosco naquele preciso momento. Na juventude, a vida está ainda à nossa frente como uma manhã inesgotável, plena de possibilidades e de vazio; mas logo ao meio-dia algo se anuncia que reclama ser a nossa própria vida, mas que é tão surpreendente como uma pessoa com quem nos correspondemos durante vinte anos sem a conhecer, e que um belo dia, de repente, temos diante de nós e constatamos que é completamente diferente do que havíamos imaginado.
Mas o mais estranho é que a maior parte das pessoas nem dêem por isso;
As Três Realidades Sociais
Há três realidades sociais – o indivíduo, a Nação, a Humanidade. Tudo mais é fictício. São ficções a Família, a Religião, a Classe. É ficção o Estado. É ficção a Civilização.
O indivíduo, a Nação, a Humanidade são realidades porque são perfeitamente definidos. Têm contorno e forma. O indivíduo é a realidade suprema porque tem um contorno material e mental — é um corpo vivo e uma alma viva.
A Nação é também uma realidade, pois a definem o território, ou o idioma, ou a continuidade histórica — um desses elementos, ou todos. O contorno da nação é contudo mais esbatido, mais contingente, quer geograficamente, porque nem sempre as fronteiras são as que deviam ser; quer linguisticamente, porque largas distâncias no espaço separam países de igual idioma e que naturalmente deveriam formar uma só nação; quer historicamente, porque, por uma parte, critérios diferentes do passado nacional quebram, ou tendem para o quebrar, o vasículo nacional, e, por outra, a continuidade histórica opera diferentemente sobre camadas da população, diferentes por índole, costumes ou cultura.
A Humanidade é outra realidade social, tão forte como o indivíduo, mais forte ainda que a Nação, porque mais definida do que ela. O indivíduo é,
A Ilusão da Consistência da Obra do Escritor
O homem não é permanentemente igual a si mesmo. A velha concepção dos carácteres rectilíneos e das mentalidades cristalizadas em sistemas imutáveis abriu falência. Tudo muda, no espaço e no tempo. Para um organismo vivo, existir – mesmo no ponto de vista somático – é transformar-se. Quando começamos cedo e envelhecemos na actividade das letras, não há um nós apenas um escritor; há, ou houve, escritores sucessivos, múltiplos e diversos, representando estados de evolução da mesma mentalidade incessantemente renovada. Ao chegar a altura da vida em que a estabilização se opera, olhamos para trás, e muitas das nossas próprias obras parecem-nos escritas por um estranho, tão longe se encontram já, não apenas dos nossos processos literários, mas do nosso espírito, das nossas tendências, da nossa orientação, dos nossos pontos de vista éticos e estéticos.
Nesse exame retrospectivo, por vezes doloroso, se de algumas coisas temos de louvar-nos – obras a que a nossa mocidade comunicou a chama viva do entusiasmo e da paixão -, de outras somos forçados a reconhecer a pobreza da concepção, os vícios da linguagem, as carências da técnica, e tantas vezes (poenitet me!) as audácias, as incoerências, as injustiças, as demasias, a licença de certas pinturas de costumes e o erro de certas atitudes morais.
Falar à Humanidade é Demagogia
Esquece-se demasiadamente que todo o autêntico dizer não só diz algo, como diz alguém a alguém. Em todo o dizer há um emissor e um receptor, os quais não são indiferentes ao significado das palavras. Este varia quando aquelas variam. Duo si idem dicunt non est idem. Todo o vocábulo é ocasional. A linguagem é por essência diálogo, e todas as outras formas do falar destituem a sua eficácia. Por isso eu creio que um livro só é bom na medida em que nos traz um diálogo latente, em que sentimos que o autor sabe imaginar concretamente o seu leitor e este percebe como se de entre as linhas saísse uma mão ectoplástica que tacteia a sua pessoa, que quer acariciá-la – ou bem, mui cortesmente, dar-lhe um murro.
Abusou-se da palavra e por isso ela caiu em desgraça. Como em tantas outras coisas, o abuso aqui consistiu no uso sem preocupação, sem consciência da limitação do instrumento. Há quase dois séculos que se acredita que falar era falar urbi et orbi, isto é, a todos e a ninguém. Eu detesto essa maneira de falar e sofro quando não sei concretamente a quem falo.
Contam, sem insistir demasiado sobre a realidade do facto,
A Inconstância das Nossas Acções
Os que se exercitam a prescrutar as acções humanas, em coisa alguma se acham tão embaraçados como em conjugar umas com as outras e mostrá-las à mesma luz, pois comummente elas se contradizem entre si de modo tão estranho que parece impossível terem todas saído da mesma loja.
(…) Alguma razão parece haver no julgar um homem pelas mais comuns acções da sua vida, mas, atendendo à natural instabilidade dos nossos costumes e opiniões, amiúde se me tem afigurado que mesmo os bons autores erram ao obstinarem-se a conceberem-nos como um todo coerente e constante. Escolhem uma imagem global, segundo a qual classificam e interpretam todas as acções da personagem, e quando não as conseguem conformar a ela, atribuem-nas à dissimulação.
(…) O nosso procedimento habitual é seguir as inclinações do nosso desejo, para a esquerda, para a direita, para cima e para baixo, para onde quer que nos empurrem os ventos das circunstâncias. Não pensamos no que queremos senão no instante em que o queremos, e mudamos como o animal que adquire a cor do local onde o pousam. O que agora mesmo acabámos de projectar, em breve o viremos a alterar, e, pouco mais tarde, voltaremos sobre os nossos passos: tudo não é senão oscilação e inconstância.
Quando você chegar a uma cidade, siga os seus costumes.
O Nobre Patriotismo dos Patriotas
Há em primeiro lugar o nobre patriotismo dos patriotas: esses amam a pátria, não dedicando-lhe estrofes, mas com a serenidade grave e profunda dos corações fortes. Respeitam a tradição, mas o seu esforço vai todo para a nação viva, a que em torno deles trabalha, produz, pensa e sofre: e, deixando para trás as glórias que ganhámos nas Molucas, ocupam-se da pátria contemporânea, cujo coração bate ao mesmo tempo que o seu, procurando perceber-lhe as aspirações, dirigir-lhe as forças, torná-la mais livre, mais forte, mais culta, mais sábia, mais próspera, e por todas estas nobres qualidades elevá-la entre as nações. Nada do que pertence à pátria lhes é estranho: admiram decerto Afonso Henriques, mas não ficam para todo o sempre petrificados nessa admiração: vão por entre o povo, educando-o e melhorando-o, procurando-lhe mais trabalho e organizando-lhe mais instrução, promovendo sem descanso os dois bens supremos – ciência e justiça.
Põem a pátria acima do interesse, da ambição, da gloríola; e se têm por vezes um fanatismo estreito, a sua mesma paixão diviniza-os. Tudo o que é seu o dão à pátria: sacrificam-lhe vida, trabalho, saúde, força, o melhor de si mesmo. Dão-lhe sobretudo o que as nações necessitam mais,
A Fragilidade dos Valores
Todas as coisas «boas» foram noutro tempo más; todo o pecado original veio a ser virtude original. O casamento, por exemplo, era tido como um atentado contra a sociedade e pagava-se uma multa, por ter tido a imprudência de se apropriar de uma mulher (ainda hoje no Cambodja o sacerdote, guarda dos velhos costumes, conserva o jus primae noctis). Os sentimentos doces, benévolos, conciliadores, compassivos, mais tarde vieram a ser os «valores por excelência»; por muito tempo se atraiu o desprezo e se envergonhava cada qual da brandura, como agora da dureza.
A submissão ao direito: oh! que revolução de consciência em todas as raças aristocráticas quando tiveram de renunciar à vingança para se submeterem ao direito! O «direito» foi por muito tempo um vetitum, uma inovação, um crime; foi instituído com violência e opróbio.
Cada passo que o homem deu sobre a Terra custou-lhe muitos suplícios intelectuais e corporais; tudo passou adiante e atrasou todo o movimento, em troca teve inumeráveis mártires; por estranho que isto hoje nos pareça, já o demonstrei na Aurora, aforismo 18: «Nada custou mais caro do que esta migalha de razão e de liberdade, que hoje nos envaidece». Esta mesma vaidade nos impede de considerar os períodos imensos da «moralização dos costumes» que precederam a história capital e foram a verdadeira história,