Tu És em Mim Profunda Primavera
O sabor da tua boca e a cor da tua pele,
pele, boca, fruta minha destes dias velozes,
diz-me, sempre estiveram contigo
por anos e viagens e por luas e sóis
e terra e pranto e chuva e alegria,
ou só agora, só agora
brotam das tuas raízes
como a água que à terra seca traz
germinações de mim desconhecidas
ou aos lábios do cântaro esquecido
na água chega o sabor da terra?Não sei, não mo digas, tu não sabes.
Ninguém sabe estas coisas.
Mas, aproximando os meus sentidos todos
da luz da tua pele, desapareces,
fundes-te como o ácido
aroma dum fruto
e o calor dum caminho,
o cheiro do milho debulhado,
a madressilva da tarde pura,
os nomes da terra poeirenta,
o infinito perfume da pátria:
magnólia e matagal, sangue e farinha,
galope de cavalos,
a lua poeirenta das aldeias,
o pão recém-nascido:
ai, tudo o que há na tua pele volta à minha boca,
volta ao meu coração, volta ao meu corpo,
e volto a ser contigo a terra que tu és:
tu és em mim profunda primavera:
volto a saber em ti como germino.
Passagens sobre Água
843 resultadosPedra de Canto
Ainda terás alento e pedra de canto,
Mito de Pégaso, patada de sangue da mentira,
Para cantar em sílabas ásperas o canto,
De rima em -anto, o pranto,
O amor, o apego, o sossego, a rima interna
Das almas calmas, isto e aquilo, o canto
Do pranto em pedra aparelhada a corpo e escopro,
O estupro de outrora, a triste vida dela, o canto,
Buraco onde te metes, duplamente: com falo,
Falas, fá-la chorar e ganir, com falo o canto
No buraco de grilo onde anoiteces,
No buraco de falso eremita onde conheces
Teu nada, o dela, o buraco dela, o canto
De pedra, sim, canteiro por cantares e aparelhares
Com ela em rua e cama o falo fá-la cheia,
Canteiro porque o falo a julga flores, o canto
Áspero do canteiro de pedra e sémen que tu és
(No buraco do falo falaste),
Tu, falazão de amor, que a amas e conheces.
Amas a quem? Conheces quem? Pobre Hipocrene,
Apolo de pataco, Camões binocular, poeta de merda,Embora isso em sangue dessa pobre alma em ferida:
A dela,
A Leitora
A leitora abre o espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.
Fomos feitos para a dor. As lágrimas são para o nosso coração o que é a água para os peixes.
Precisamos de aprender a pensar com qualidade. Os que agem sem pensar provocam confusão no ambiente, os que pensam excessivamente desgastam-se muito e, algumas vezes, caem nas raias da omissão. Pensar e agir devem rimar na mesma poesia. Ninguém pode acalmar as águas da emoção se não aprender a controlar a agitação dos seus pensamentos.
Ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez. Pois quando isso acontece, já não se é o mesmo; assim como as águas, que já serão outras.
Natal à Beira-Rio
É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado…
É noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia…
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?
Visionários
Armam batalhas pelo mundo adiante
Os que vagam no mundos visionários,
Abrindo as áureas portas de sacrários
Do Mistério soturno e palpitante.O coração flameja a cada instante
Com brilho estranho, com fervores vários,
Sente a febre dos bons missionários
Da ardente catequese fecundante.Os visionários vão buscar frescura
De água celeste na cisterna pura
Da Esperança, por horas nebulosas…Buscam frescura, um outro novo encanto…
E livres, belos através do pranto,
Falam baixo com as almas misteriosas!
A glória é como o círculo na água; nunca cessa de se dilatar até que, à força de se expandir, se perde no nada.
Erguia-se para uma nova manhã, docemente viva. E sua felicidade era pura como o reflexo do sol na água. Trecho do livro Perto do coração selvagem)
Eu Caio em Ti
Eu caio em ti como uma bruta pedra
na água, no amor não me dissolvo, o amor
não me absolve, estou (quem nos governa,
quem nos arrasta à guerra ou ao repouso)
colada a quê, um copo sobre a mesa,
menos que o copo, o fundo desse copo,
e, não obstante, para sempre presa,
pois o que basta é tudo o que não posso,
pois o que basta é tudo o que me exige
uma violentação do que, por dentro,
é o meu mundo, essa coisa indefinível
e tão concreta, mas que não conheço,
e às vezes temo que me paralise.
Viver é submeter-se, eu me submeto.
Quem nunca altera a sua opinião é como a água parada e começa a criar répteis no espírito.
Os Antigos
Os antigos invocavam as Musas.
Nós invocamo-nos a nós mesmos.
Não sei se as Musas apareciam —
Seria sem dúvida conforme o invocado e a invocação. —
Mas sei que nós não aparecemos.
Quantas vezes me tenho debruçado
Sobre o poço que me suponho
E balido “Ah!” para ouvir um eco,
E não tenho ouvido mais que o visto —
O vago alvor escuro com que a água resplandece
Lá na inutilidade do fundo…
Nenhum eco para mim…
Só vagamente uma cara,
Que deve ser a minha, por não poder ser de outro.
E uma coisa quase invisível,
Exceto como luminosamente vejo
Lá no fundo…
No silêncio e na luz falsa do fundo…Que Musa!…
Grande Amor
Grande amor, grande amor, grande mistério
Que as nossas almas trêmulas enlaça…
Céu que nos beija, céu que nos abraça
Num abismo de luz profundo e sério.Eterno espasmo de um desejo etéreo
E bálsamo dos bálsamos da graça,
Chama secreta que nas almas passa
E deixa nelas um clarão sidéreo.Cântico de anjos e de arcanjos vagos
Junto às águas sonâmbulas de lagos,
Sob as claras estrelas desprendido…Selo perpétuo, puro e peregrino
Que prende as almas num igual destino,
Num beijo fecundado num gemido.
Setentrional
Talvez já te não lembres, triste Helena,
Dos passeios que dávamos sozinhos,
À tardinha, naquela terra amena,
No tempo da colheita dos bons vinhos.Talvez já te não lembres, pesarosa,
Da casinha caiada em que moramos,
Nem do adro da ermida silenciosa,
Onde nós tantas vezes conversamos.Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regamos com prantos uma acácia.Talvez já te não lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a Lua sorria no teu rosto
E nas lajes campais do cemitério.Talvez já se apagassem as miragens
Do tempo em que eu vivia nos teus seios,
Quando as aves cantando entre as ramagens
O teu nome diziam nos gorjeios.Quando, à brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas dum acanto,
Um Calculador de Improbabilidades
O poeta é
um calculador de improbabilidades limita
a informação quantitativa fornecendo
reforçada informação estésica.
É uma máquina eta-erótica em que as discrepâncias
são a fulgurância da máquina.
A crueldade elegante da máquina resulta da
competição pirotécnica da circulação íntima
e fulgurante do seu maquinismo erótico.
A psicologia do maquinal sabe que basta
que se crie um pólo positivo para que o pólo
negativo surja
ou vice-versa
e as evoluções telecinéticas pela força
das catástrofes desenvolvem suas faculdades
latentes ou absorvem-nas como a esponja absorve
as águas variáveis dos humores
que transforma em polaridade.
O maquinal eta-erótico está em astrogação
curso hipnótico dos polímeros.
Digo com precisão fenomenológica: o maquinal
circula em sua hiperesfera da maneira mais
excêntrica.
Digo e garanto:
o maquinal absolutamente absorve suas águas
variáveis e isso é o seu amplexo.
O maquinal eta-erótico é tu-eu.
O maquinal tu-eu
cuja tarefa árdua não é
definir a verdade está no meio da profusão
dos objectos
e considera o consumo a verdade deslocada
deslocação de grande tonelagem
laboriosa alfaiataria de eros
constante moribunda
e esse opróbrio dispersivo e vexável
indifere a vida esponjosa.
Último Vestígio
Tu deves te lembrar: aquela casa antiga
entre o verde bambual e a frondosa mangueira,
– a varanda, a esconder-se sob a trepadeira,
e o riacho a marulhar sua velha cantiga…As flores… o jardim… a estrada, uma alva esteira
onde nós a sonhar andamos sem fadiga
olhando para o céu – tudo isto, minha amiga,
mudou… A nossa vida é mesmo passageira…As paisagens de outrora, estranhos transformaram:
– o jardim… o bambual… a estrada, e até nem sei
se as águas do regato os anos não pararam…Uma cousa, porém, existe, eu vi depois:
– é aquele coração com os nomes que gravei
no tronco da mangueira a relembrar nós dois!…
Prólogo
Cavo a cova como um cavalo os cascos cava
se no cavá-lo invoca a fúria de ferir
E tanto mais se cava que a alma não se lava
e as águas já me levam léguas a fingirCava costura cavo à cava enviesada
e o talhe tinge a sombra em descaída pena
Nessa escritura a sina foge desgarrada
e o corte torce a mão e a garra do poemaE dono não sou mais senão o torto artífice
dessas linhas traçadas a dois e por um
E assim me assino esse uno e esse outro Majnun
que por louca paixão da noite é seu partícipemesmo sem Laila veste a dor e se vislumbra
nos lobos do deserto donos da penumbra
Cultivar a Felicidade
Desde os primórdios da humanidade, que o ser humano procura a felicidade como a terra seca clama pela água. É fácil conquistá-la? Nem sempre! Os poetas homenagearam-na, os romancistas descreveram-na, os filósofos contemplaram-na, mas grande parte deles saudaram-na apenas de longe.
Os reis tentaram dominá-la, mas ela não se submeteu ao poder deles. Os ricos tentaram comprá-la, mas ela não se deixou vender. Os intelectuais tentaram compreendê-la, mas ela confundiu-os. Os famosos tentaram fasciná-la, mas ela contou-lhes que preferia o anonimato. Os jovens disseram que ela lhes pertencia, mas ela disse-lhes que não se encontrava no prazer imediato, nem se deixava encontrar pelos que não pensavam nas consequências dos seus atos.
Alguns acreditaram que poderiam cultivá-la em laboratório. Isolaram-se do mundo e dos problemas da vida, mas a felicidade enviou um claro recado a dizer que ela apreciava o cheiro das pessoas e crescia no meio das dificuldades.
Outros tentaram cultivá-la com os avanços da ciência e da tecnologia, mas eis que a ciência e a tecnologia se multiplicaram e a tristeza e as mazelas da alma se expandiram.Desesperados, muitos tentaram encontrar a felicidade em todos os cantos do mundo. Mas no espaço ela não estava,
SMS
Ela caminha já a tarde vai alta pelo passeio que segue paralelo ao mar, por cima das praias. Em baixo, a areia estende-se vazia até à água, acabando numa espuma branca, das ondas que rebentam com o fragor dos dias de Inverno. Vai sozinha. Cruza-se com jovens a passo de corrida, outros que deslizam em patins, um casal com o filho pequeno feliz na sua bicicleta de rodinhas, acompanhado por um cãozinho saltitante que corre para a frente e para trás em redor dele.
Leva na mão o telemóvel e nos olhos castanhos brilhantes uma esperança. Vai pensativa e sem horas, caminhando sem pressa, reparando nas pessoas, no mar desabrido que se atira à praia, no ar fresco que respira, no vento que se levanta com uma promessa de tempestade. Cruza o casaco grosso, azul-escuro, à frente do peito, sem apertar os botões. Cruza os braços. Uma folha de jornal passa por ela a esvoaçar, notícias antigas, pensa divertida, logo se concentrando no navio de carga iluminado que vem de Lisboa e ruma ao mar aberto com o vagar de quem tem um destino certo num dia certo.Acaba por apertar os botões do casaco e levantar a gola para se sentir mais protegida do vento,