Cantares Bacantes (II)
Canto a lira dissonante:
como custam meus cantares!
os cantochões dos solares
mais remotos que um levante.Tua branca primavera
lança-perfume dos ares
profundo nácar dos pares
mas verdes ramas da hera.A cigarra morta canta
tua tarde de passagem
que a voz do bronze levantalouvores a teu passeio
de gazela: leve aragem
ao coração, meu anseio!
Passagens sobre Canto
343 resultadosPassagem das Horas
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite… Acordo de repente
Yat-iô–ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô … Ghi-…
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)…
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar…
Tempestades em torno ao Guardaful…
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada…
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo…Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei…
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos…
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu,
Elegia dos Amantes Lúcidos
Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
O contorno lunar da noite que te finge!Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exacta dum violino
Que fosse a sensibilidade deste pensamento
Com que a minha sombra vai pensando o meu destinoE não houvesse o sono dum telhado
Entre ter de haver eu e haver o tecto;
E a eternidade não estivesse ao lado
A colocar-nos nas costas as asas dum insectoMeu amor, meu amor, teu gesto nasce
Para partir de ti e ser ao longe
A cor duma cidade que nos pasce
Como a ausência de deus pastando um mongeAh, se uma súbita mão na hora a pique
Tangendo harpas geladas por segredos
Desprendesse uma aragem de repiques
Destes sinos parados pelo medo!Mas só porque vieste fez-se tarde,
Ou é a vida que nasce já tardia
Como uma estrela que se acende e arde
Porque não cabe na rapidez do dia?
Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando, foi justamente num sonho que ele me falou…
Cigarra
Esta não é filha do sol
com pernas e pés de marinheiros
subindo às árvores das herdades.
Esta é preciso ouvi-la dias inteiros
aquém das grades.Esta
não chama para os campos doirados
onde o canto é livre e aquece, morno.
Mas para silêncios hirtos e cerrados
com fardas e armas em torno.Desde o sinal das auroras
até à noite que plange
amortalhando as horas,
seu canto não canta, range…Ó cigarra das torvas claridades!
Seus cantos só pode cantá-los
a boca de pedra e dentes ralos
do ferro nas grades.
Soneto IX
Nessa tua janela, solitário,
entre as grades douradas da gaiola,
teu amigo de exílio, teu canário
canta, e eu sei que esse canto te consola.E, lá na rua, o povo tumultuário
ouvindo o canto que daqui se evola
crê que é o nosso romance extraordinário
que naquela canção se desenrola.Mas, cedo ou tarde, encontrarás, um dia,
calado e frio, na gaiola fria,
o teu canário que cantava tanto.E eu chorarei. Teu pobre confidente
ensinou-me a chorar tão docemente,
que todo mundo pensará que eu canto.
Cidadão do Mundo
De todas as grandes tiradas da História, em boa verdade, aquela que eu mais depressa aprendera a detestar fora essa do «cidadão do mundo», com que a classe média de Lisboa tanto gostava de encher a boca até que alguém a reconhecesse globetrotter, portadora de cartão de crédito e representante dessa nova burguesia do resort de quatro estrelas e da máquina fotográfica digital. Porque ser de todo o lado, percebi-o eu assim que extravasei os limites da terra-mãe, não podia significar outra coisa senão que não se era de lado nenhum – e não ser de lado nenhum, não ter um lugar, um canto de mundo a que regressar, parecera-me sempre a mais triste de todas as condições. Para ser sincero, e apesar das já quase duas décadas que levava de exílio, eu continuava a voltar à terra como se realmente pudesse acordar ao contrário, contorcendo-me e espreguiçando-me e depois fechando-me em concha, até, enfim, adormecer. E, se de alguém ainda conseguia desdenhar com algum método, assim despertando da letargia que nos últimos anos me deixara impávido perante cada vez mais coisas, perante a dor e o próprio prazer, era daqueles que viviam longe há dez ou vinte ou trinta ou mesmo quarenta anos e,
O mestre é o homem que não manda; aconselha e canaliza, apazigua e abranda; não é a palavra que incendeia, é a palavra que faz renascer o canto alegre do pastor depois da tempestade; não o interessa vencer, nem ficar em boa posição; tornar alguém melhor — eis todo o seu programa.
As crianças têm seu canto da manhã, como os pássaros.
O «Ensina-me»
Quando era novo, mandei fazer numa tábua
A canivete e nanquim a figura dum velho
A coçar-se no peito por causa da sarna
Mas de olhar implorativo porque esperava que o ensinassem.
Uma segunda tábua pra o outro canto do quarto,
Que devia representar um moço a ensiná-lo,
Nunca mais foi feita.Quando era novo tinha a esperança
De encontrar um velho que se deixasse ensinar.
Quando for velho, espero
Que se encontre um moço e eu
Me deixe ensinar.Tradução de Paulo Quintela
O senhor não esteve lá. O senhor não escutou, em cada anoitecer, a lugugem do canto da mãe-da-lua. O senhor não pode estabelecer em sua ideia a minha tristeza quinhoã. Até os pássaros, consoante os lugares, vão sendo muito diferentes. Ou são os tempos, travessia da gente?
Quando é Grande o Poderio da Solidão
Quando é grande o poderio
da solidão, ao seu lado
estanca a aura exterior do brilho
que a fica aí preservando.
Às vezes, outra se avizinha. O sítio
da vizinhança contamina o espaço.
E uma como que luz que antecedesse o espírito
remove o vácuo,
de forma a ele se ir constituindo
espera de verbo. Âmbito
a iluminar-se recinto
aonde as solidões, aproximando-
-se a frequência aumentassem do alto poderio
e estancassem ao bordo granítico do canto.
Só no Ato do Amor se Capta a Incógnita do Instante
Quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já. Só no ato do amor — pela límpida abstração de estrela do que se sente — capta-se a incógnita do instante que é duramente cristalina e vibrante no ar e a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si: no amor o instante de impessoal jóia refulge no ar, glória estranha de corpo, matéria sensibilizada pelo arrepio dos instantes — e o que se sente é ao mesmo tempo que imaterial tão objetivo que acontece como fora do corpo, faiscante no alto, alegria, alegria é matéria de tempo e é por excelência o instante. E no instante está o é dele mesmo. Quero captar o meu é. E canto aleluia para o ar assim como faz o pássaro. E meu canto é de ninguém. Mas não há paixão sofrida em dor e amor a que não se siga uma aleluia.
Ansiedade
Quero compor um poema
onde fremente
cante a vida
das florestas das águas e dos ventos.Que o meu canto seja
no meio do temporal
uma chicotada de vento
que estremeça as estrelas
desfaça mitos
e rasgue nevoeiros — escancarando sóis!
Soneto XV
Triste do que em tristeza passa o dia,
Feliz porém, se a passa, e enfim lhe passa,
Mas quem ventura teve tão escassa
Que em nada ache prazer nem alegria.Nos ais, alívio tem quem n’alma os cria,
A quem em trevas vive, a luz dá graça,
Há quem do fogo e Sol se satisfaça,
E quem se satisfaça d’água fria.Restaura o ar, na calma, o fraco alento,
Conforta o cheiro de ua flor suave,
Convida a sombra, a erva a grato assento,Suspende da Ave o canto a pena grave;
Ai que não aliviam meu termento
Ais, luz, Sol, fogo, água, ar, flor, sombra, erva, Ave.
Bolsa de quatro cantos não chega aos paus.
A Coragem da Resignação
A palavra «resignação» não tem boa reputação. Lembra atitude devota, passividade, lágrima ao canto do olho. E todavia, não é isso. Em face dos limites de uma condição, da morte e do nada que vem nela, que outro nome dar à aceitação calma, à fria impassibilidade? A revolta em tal caso pode falar ao nosso orgulho, à imagem de grandeza que queiramos se tenha de nós. Mas é uma imagem ridícula. Ela responde ainda, não ao reconhecimento do que nos espera, mas a uma notícia recente e não assimilada que disso nos dessem. A coragem não está na atitude espectacular, mas na serena e recolhida e modesta aceitação. Temos assim tendência a julgar herói o que enfrenta a morte com atitudes de grandiosidade, não o que a enfrenta no seu recanto, em silêncio e discrição. Mas o espectáculo é ainda uma forma de compensar o desastre da morte — é ainda uma forma de uma parcela de nós se recusar a morrer. Quem morre resignado morre todo por inteiro, nada ele assim recusa do que a morte lhe exige.
O Amor Antigo
O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.Se em toda a parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
XXI
De um ramo desta faia pendurado
Veja o instrumento estar do pastor Fido;
Daquele, que entre os mais era aplaudido,
Se alguma vez nas selvas escutado.Ser eternamente consagrado
Um ai saudoso, um fúnebre gemido;
Enquanto for no monte repetido
O seu nome, o seu canto levantado.Se chegas a este sítio, e te persuade
A algum pesar a sua desventura,
Corresponde em afetos de piedade;Lembra te, caminhante, da ternura
De seu canto suave; e uma saudade
Por obséquio dedica à sepultura.
Cantiga de Amigo
Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões Virgílio Shelley Dante
– o meu amigo está longe
e a distância é bastante.Nem um som nem um grito nem um ai
tudo calado todos sem mãe nem pai
Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!– o meu amigo está longe
e a tristeza é bastante.Nada a não ser este silêncio tenso
que faz do amor sozinho o amor imenso.
Calai Camões Virgílio Shelley Dante:
o meu amigo está longe
e a saudade é bastante!