Da Mais Alta Janela da Minha Casa
Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os terá?
Quem sabe a que mãos irão?
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi
sua.
Passo e fico,
Passagens sobre Flores
874 resultadosElegia
Vae em seis mezes que deixei a minha terra
E tu ficaste lá, mettida n’uma serra,
Boa velhinha! que eras mais uma criança…
Mas, tão longe de ti, n’este Payz de França,
Onde mal viste, então, que eu viesse parar,
Vejo-te, quanta vez! por esta sala a andar…
Bates. Entreabres de mansinho a minha porta.
Virás tratar de mim, ainda depois de morta?
Vens de tão longe! E fazes, só, essa jornada!
Ajuda-te o bordão que te empresta uma fada.
Altas horas, emquanto o bom coveiro dorme,
Escapas-teãda cova e vens, Bondade enorme!
Atravez do Marão que a lua-cheia banha,
Atravessas, sorrindo, a mysteriosa Hespanha,
Perguntas ao pastor que anda guardando o gado,
(E as fontes cantam e o céu é todo estrellado…)
Para que banda fica a França, e elle, a apontar,
Diz: «Vá seguindo sempre a minha estrella, no Ar!»
E ha-de ficar scismando, ao ver-te assim, velhinha,
Que és tu a Virgem disfarçada em probrezinha…
Mas tu, sorrindo sempre, olhando sempre os céus,
Deixando atraz de ti, os negros Pyrineus,
Sob os quaes rola a humanidade,
Hino à Solidão
Diz-se que a solidão torna a vida um deserto;
Mas quem sabe viver com a sua alma nunca
Se encontra só; a Alma é um mundo, um mundo
[aberto
Cujo átrio, a nossos pés, de pétalas se junca.Mundo vasto que mil existências povoam:
Imagens, concepções, formas do sentimento,
— Sonhos puros que nele em beleza revoam
E ficam a brilhar, sóis do seu firmamento.Dia a dia, hora a hora, o Pensamento lavra
Esse fecundo chão onde se esconde e medra
A semente que vai germinar na Palavra,
Cantar no Som, flores na Cor, sorrir na Pedra!Basta que certa luz de seus raios aqueça
A semente que jaz na sua leiva escondida,
Para que ela, a sorrir, desabroche e floresça,
De perfumes enchendo as estradas da Vida.Sei que embora essa luz nem para todos tenha
O mesmo brilho, o mesmo impulso criador,
Da Glória, sempre vã, todo o asceta desdenha,
Vivendo como um deus no seu mundo interior.E que mundo sublime, esse em que ele se agita!
Mundo que de si mesmo e em si mesmo criou,
Hino à Beleza
Onde quer que o fulgor da tua glória apareça,
— Obra de génio, flor de heroísmo ou santidade, —
Da Gioconda imortal na radiosa cabeça,
Num acto de grandeza augusta ou de bondade,— Como um pagão subindo à Acrópole sagrada,
Vou de joelhos render-te o meu culto piedoso,
Ou seja o Herói que leva uma aurora na Espada,
Ou o Santo beijando as chagas do Leproso.Essa luz sem igual com que sempre iluminas
Tudo o que existe em nós de grande e puro, veio
Do mesmo foco em mil parábolas divinas:
— Raios do mesmo olhar, ânsias do mesmo seio.Alta revelação que, baixando em segredo,
O prisma humano quebra em ângulos dispersos,
Como a água a cair de rochedo em rochedo
Repete o mesmo som, mas em modos diversos.É audácia no Herói; resignação no Santo;
Som e Cor, ondulando em formas imortais;
No mármore rebelde abre em folhas de acanto,
E esmalta de candura a flora dos vitrais.Ó Beleza! Ó Beleza! as Horas fugitivas
Passam diante de ti, aladas como sonhos…
Num Bosque Que Das Ninfas Se Habitava
Num bosque que das Ninfas se habitava
Sílvia, Ninfa linda, andava um dia;
subida nüa árvore sombria,
as amarelas flores apanhava.Cupido, que ali sempre costumava
a vir passar a sesta à sombra fria,
num ramo o arco e setas que trazia,
antes que adormecesse, pendurava.A Ninfa, como idóneo tempo vira
para tamanha empresa, não dilata,
mas com as armas foge ao Moço esquivo.As setas traz nos olhos, com que tira:
-Ó pastores! fugi, que a todos mata,
senão a mim, que de matar me vivo.
Poema da Necessidade
É preciso casar João,
é preciso suportar António,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.
Primavera
A meu irmão Odilon dos Anjos
Primavera gentil dos meus amores,
– Arca cerúlea de ilusões etéreas,
Chova-te o Céu cintilações sidéreas
E a terra chova no teu seio flores!Esplende, Primavera, os teus fulgores,
Na auréola azul dos dias teus risonhos,
Tu que sorveste o fel das minhas dores
E me trouxeste o néctar dos teus sonhos!Cedo virá, porém, o triste outono,
Os dias voltarão a ser tristonhos
E tu hás de dormir o eterno sono,Num sepulcro de rosas e de flores,
Arca sagrada de cerúleos sonhos,
Primavera gentil dos meus amores!
Existo
Seu amor me fez real, e me deu sentido
da alegria de ser, total, completamente…
Fez de um pobre poeta em sonhos consumido
alguém que tem nas mãos um mundo! e sofre, e sente!Seu amor foi a vida a irromper da semente
de um velho coração cansado e ressequido,
o verde que voltou ao ramo nu, pendente,
a imprevisível flor, o fruto inconcebido…Seu amor foi milagre a cantar pelo chão
como a água, no agreste, a acenar ao viajante
a esperança, o prazer, a vida, a salvação…Passo a existir, quem sabe ? apenas porque amei…
E ela existe talvez, a partir deste instante
porque ela e o seu amor… em versos transformei!
Palavras
Ah! como me parece inútil tudo quando
sobre nos tenho escrito e hei de ainda compor…
não há verso que valha uma gota de pranto
nem poema que traduza um segundo de dor.Nem palavra que exprima a singeleza e o encanto
de um pedaço do céu, de um olhar, de uma flor!
Ah! como me parece inútil tudo quanto
na vida, tenho escrito sobre o nosso amor.Não devia existir a palavra… Devia
existir tão somente a infinita poesia
dos gestos e da luz, – que o amor do meu enlevoquando o sinto, é profundo, indefinido e imenso,
mas se o chão tão grande quando nele penso
parece-me tão pouco se sobre ele escrevo!
Stabat Mater
(Stabat Mater)
Estava a mãe de pé, já sem o filho
que fora a razão de ter aceite
um quotidiano rasteiro e o prodígio:
entre ambos, não ousava distingui-los.Traspassara-se quando o viu deixar a casa
para se completar longe das mãos
que o receberam e fizeram crescer,
– nela sempre menino, e tão inerme
que de si nunca o desprenderia.Soubera que ele fora domado, escarnecido,
mais bem pago para ser mais proveitoso,
soldado em guerras de outros
em que sempre foi um derrotado;
traído por mulheres de uma beleza
não somente fascínio e um ardil,
mas perdão para quem por elas se jogasse.
Mais que ninguém, ela sofrera-o sem dizê-lo.Devolveram-lho por fim, já só em parte,
para uni-lo na cama onde nascera.Tudo nela ruiu, os seus escombros
são o mais intenso túmulo,
sem ter onde vá sorver a força
para sumir-se no apagamento
de si mesma e de tudo,
até da manhã que a saudou a anunciar-lhe
o fruto que sua flor tinha alcançado.E pede que nenhuma luz venha acordá-la.
O Dia Segue o Curso Itinerante
I
Assim te amei, amada, assim te amei
de amor tão grande e puro que secou
no peito meu o rio que corria
submisso e atento para os braços teus.
Nos ermos vales agora percorro
os gestos esquecidos, densas brumas
do rio que fui, o rio que fomos,
largas águas seguindo o mar da noite.
Assim te amei o amor maior que pude.
E, mais ainda, a minha vida foi
uma desfeita nau vagando a esmo
o mar do tempo, o mar janeiro, o mar
que perdi. E agora, de ti disperso,
nos desertos de mim, sem fim, caminho.II
E vou por outras águas procurando
o manso pouco, o malvo campo onde
apascentar o rebanho de mágoas,
o carro de afectos que mantenho
guardados no denso peito, tangidos
pelo vento no dorso do horizonte.
Largos desertos! abrandai a pena
sem fim que me domina! Alvos lírios,
rosas, boninas, nardos e outras flores!
Vinde ao menos cobrir-me a branda fronte
de púrpura, de orvalho e calmaria.
Eis que me vou por este vasto mar
de afagos e carícias inconstantes,
Recordam-se Vocês do Bom Tempo d’Outrora
(Dedicatória de introdução a «A Musa em Férias»)
Recordam-se vocês do bom tempo d’outrora,
Dum tempo que passou e que não volta mais,
Quando íamos a rir pela existência fora
Alegres como em Junho os bandos dos pardais?
C’roava-nos a fronte um diadema d’aurora,
E o nosso coração vestido de esplendor
Era um divino Abril radiante, onde as abelhas
Vinham sugar o mel na balsâmina em flor.
Que doiradas canções nossas bocas vermelhas
Não lançaram então perdidas pelo ar!…
Mil quimeras de glória e mil sonhos dispersos,
Canções feitas sem versos,
E que nós nunca mais havemos de cantar!
Nunca mais! nunca mais! Os sonhos e as esp’ranças
São áureos colibris das regiões da alvorada,
Que buscam para ninho os peitos das crianças.
E quando a neve cai já sobre a nossa estrada,
E quando o Inverno chega à nossa alma,então
Os pobres colibris, coitados, sentem frio,
E deixam-nos a nós o coração vazio,
Para fazer o ninho em outro coração.
Meus amigos, a vida é um Sol que chega ao cúmulo
Quando cantam em nós essas canções celestes;
Quero a Fome de Calar-me
Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra
Que trago para sentar-me no banqueteA única glória no mundo — ouvir-te. Ver
Quando plantas a vinha, como abres
A fonte, o curso caudaloso
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedoQuero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa
Chaga do pastor
Que abriu o redil no próprio corpo e sai
Ao encontro da ovelha separada. CercoOs sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes
A flor — várias árvores cortadas
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos
Seguem a linha do canivete nos troncosAs mãos acima da cabeça adornam
As águas nocturnas — pequenos
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadasCaem — quero fechar-me e cair. O silêncio
Alveolar expira — e eu
Estendo-as sobre a mesa da aliança
Em Viagem
Ia o vapôr singrando velozmente
O verde mar antígo e caprixoso,
Á rude voz do capitão Contente, –
Um rubro homem do mar silencioso.Demandava a Madeira, – a ilha bella,
A patria excelsa e celebre do vinho,
A viagem foi curta; e no caminho
Intentei relações com Arabella.Arabella era a lyrica ingleza,
Loura, pallida e fragil como um vime,
Que traz sempre a sua alma meiga presa
D’algum amor profundo, mas sublime.O londrino, o Antony d’esses amores,
Era um rubro e excentrico burguez,
Mais amigo do bife que das flores,
– A extravagancia de chapeu inglez,Seu olhar dubio, incerto e traiçoeiro
Tinha visões de sangue derramado
Em toda a parte; ao todo um ex-banqueiro,
– Um calvo, velho amigo do Peccado!Nunca o olhar fitava em sitio certo; –
Vogava ás vezes só no tombadilho,
Com um comprido e merencorio filho,
E ninguem viu-lhe um riso franco e aberto.Punha, ás vezes, no mar o olhar sombrio;
E ao vento, a fita branca do chapeu
Dir-se-hia a vella triste d’um navio
De naufragos,
Jornal, longe
Que faremos destes jornais, com telegramas, notícias,
anúncios, fotografias, opiniões…?Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:
e o sol empalidece suas letras infinitas.Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?
Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa;
de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:
“Os jornais servem para fazer embrulhos”.E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.
A alma da mocidade, arrancando voo, liba em todas as flores, experimenta todas as sensações, saboreia de todas as taças, quer doces quer amargas, e, só à custa de experimentar, saberá o que é a vida.
A vida sem amor é como uma árvore sem flor e sem fruta.
A amizade sem confiança é uma flor sem perfume.
Quantas Loucuras há num Homem!
Há tantos amores na vida de um homem! Aos quatro anos, ama-se os cavalos, o sol, as flores, as armas que brilham, os uniformes de soldado; aos dez, ama-se a menina que brinca connosco.; aos treze, ama-se uma mulher de colo túrgido, porque me lembro de que o que os adolescentes amam loucamente é um colo de mulher, branco e mate, e como diz Marot:
Tetin refaict plus blanc qu’un oeuf
Tetin de satin blanc tout neuf.Quase me senti mal quando vi pela primeira vez os seis desnudados de uma mulher. Por fim, aos catorze ou quinze anos, ama-se uma jovem que vem a nossa casa, e que é um pouco mais que uma irmã, menos que uma amante; depois, aos dezasseis anos, ama-se uma outra mulher, até aos vinte e cinco; depois, talvez se ame a mulher com quem casamos. Cinco anos mais tarde, ama-se a dançarina que faz saltar o seu vestido sobre as suas coxas carnudas; por fim, aos trinta e seis, ama-se a deputação, a especulação, as honrarias; aos cinquenta, ama-se o jantar do ministro ou do presidente da câmara; aos sessenta, ama-se a prostituta que nos chama através dos vidros e a quem se lança um olhar de impotência,
Não: não Digas Nada!
Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo jáÉ ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.