Corpo de Mulher…
Corpo de mulher, brancas colinas, coxas
[brancas,
pareces-te com o mundo na tua atitude de
[entrega.
O meu corpo de lavrador selvagem escava em ti
e faz saltar o filho do mais fundo da terra.Fui só como um túnel. De mim fugiam os
[pássaros,
e em mim a noite forçava a sua invasão
[poderosa.
Para sobreviver forjei-te como uma arma,
como uma flecha no meu arco, como uma pedra
na minha funda.Mas desce a hora da vingança, e eu amo-te.
Corpo de pele, de musgo, de leite ávido e firme.
Ah os copos do peito! Ah os olhos de ausência!
Ah as rosas do púbis! Ah a tua voz lenta e
[triste!Corpo de mulher minha, persistirei na tua graça.
Minha sede, minha ânsia sem limite, meu
[caminho indeciso!
Escuros regos onde a sede eterna continua,
e a fadiga continua, e a dor infinita.
Passagens sobre Graça
502 resultadosA uma Rapariga
À Nice
Abre os olhos e encara a vida! A sina
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!
Por sobre lamaçais alteia pontes
Com tuas mãos preciosas de menina.Nessa estrada da vida que fascina
Caminha sempre em frente, além dos montes!
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!
Beija aqueles que a sorte te destina!Trata por tu a mais longínqua estrela,
Escava com as mãos a própria cova
E depois, a sorrir, deita-te nela!Que as mãos da terra façam, com amor,
Da graça do teu corpo, esguia e nova,
Surgir à luz a haste duma flor!…
Ternura
Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamenteE posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não trai o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma…
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o
[olhar extático da aurora.
Erros da Inteligência e do Coração
Os erros e as dúvidas da inteligência desaparecem mais depressa, sem deixar rasto, que os erros do coração; desaparecem não tanto em consequência de discussões e polémicas como graças à lógica iniludível dos acontecimentos da vida viva, que às vezes trazem consigo o verdadeiro escape e mostram o caminho adequado, senão logo, na primeira altura, num prazo relativamente breve, em certas ocasiões, sem haver necessidade de se esperar pela geração seguinte. Com os erros do coração o mesmo não sucede. O erro do coração é de maior monta; significa que o espírito frequentemente, o espírito de toda a nação, está doente, sofre de qualquer contágio e não poucas vezes essa enfermidade, esse contacto, implicam tal grau de cegueira, que toda a nação se torna incurável… por mais tentativas que se façam para a salvar. Pelo contrário, essa cegueira desfigura os factos a seu talante, deforma-os segundo as delirantes visões do espírito doente e até pode suceder que toda a nação prefira ir para a ruína conscientemente, quer dizer, conhecendo já a sua cegueira, a deixar-se curar… pois já não quer que a curem.
Quando o dinheiro se vai, com ele se vai a graça.
Os Palhaços
Heróis da gargalhada, ó nobres saltimbancos,
eu gosto de vocês,
porque amo as expansões dos grandes risos francos
e os gestos de entremez,e prezo, sobretudo, as grandes ironias
das farsas joviais.
que em visagens cruéis, imperturbáveis, frias.
à turba arremessais!Alegres histriões dos circos e das praças,
ah, sim, gosto de vos ver
nas grandes contorções, a rir, a dizer graças
de o povo enlouquecer,ungidos pela luta heróica, descambada,
de giz e de carmim,
nas mímicas sem par, heróis da bofetada,
titãs do trampolim!Correi, subi, voai num turbilhão fantástico
por entre as saudações
da turba que festeja o semideus elástico
nas grandes ascensões,e no curso veloz, vertiginoso, aéreo,
fazei por disparar
na face trivial do mundo egoísta e sério
a gargalhada alvar!Depois, mais perto ainda, a voltear no espaço,
pregai-lhe, se podeis,
um pontapé furtivo, ó lívidos palhaços,
luzentes como reis!Eu rio sempre, ao ver aquela majestade,
os trágicos desdéns
com que nos divertis, cobertos de alvaiade,
Duas Espécies de Génio
Há duas espécies de génio: um que, antes de mais, fecunda e quer fecundar outros, e outro que prefere ser fecundado e parir. E da mesma maneira há entre os povos geniais aqueles a quem coube o problema feminino da gravidez e a missão secreta de formar, amadurecer e aperfeiçoar – os gregos, por exemplo, foram um povo desta espécie, assim como os franceses – ; e outros que têm de fecundar e ser a causa de novas ordens de vida, – como os judeus, os romanos e talvez, perguntando-se com toda a modéstia, os alemães? – povos atormentados e extasiados com febres desconhecidas e irresistivelmente impelidos para fora de si próprios, apaixonados e ávidos de raças estranhas (aqueles que se «deixam fecundar» -) e, com tudo isso, ávidos de domínio, como tudo o que se sabe cheio de força geradora e, por conseguinte, escolhido «pela graça de Deus». Estas duas espécies procuram-se como o homem e a mulher; mas também se dão mal mutuamente, – como o homem e a mulher.
A mulher existe para que o homem se torne inteligente graças a ela.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa, e não segura.
Todas as graças da mente e do coração se escapam quando o propósito não é firme.
Religião Emocional
Os dirigentes das religiões bem sucedidas nunca, pode−se realmente dizer, dispensaram de todo as armas fisiológicas nas suas tentativas de conferir graça espiritual aos seus semelhantes. Jejum, castigo da carne por flagelação ou desconforto físico, regulação da respiração, revelação de mistérios terríveis, toque de tambor, danças, cantos, provocação de medo, pânico, iluminação fantástica ou gloriosa, incenso, drogas inebriantes – esses são apenas alguns dos inúmeros métodos empregados para modificar a função cerebral normal em propósitos religiosos. Algumas seitas prestam mais atenção que outras à estimulação de emoções como meio de afectar o sistema nervoso superior; mas poucas a desprezam inteiramente.
Quase um Poema de Amor
Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
— Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
A graça é a beleza em acção.
Noites Gélidas
Merina
Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gás dá noites de balada;
Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,
Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia
De uma ovelhinha branca, ingênua e delicada.
O Tempo Passa? Não Passa
O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade.
Ignorância e pobreza vêm de graça, não custam trabalho nem despesa.
O Gosto pela Simplicidade
Cansado às vezes do artificialismo que domina hoje em todos os géneros, enfadado com os chistes, os lances espirituosos, com as troças e com todo esse espírito que se quer colocar nas menores coisas, digo comigo mesmo: se eu pudesse encontrar um homem que não fosse espirituoso, com quem não fosse preciso sê-lo, um homem ingénuo e modesto, que falasse somente para se fazer entender e para exprimir os sentimentos do seu coração, um homem que só tivesse a razão e um pouco de naturalidade: com que ardor eu correria para descansar na sua conversa ao invés do jargão e dos epigramas do resto dos homens! Como é que acontece perder-se o gosto pela simplicidade a ponto de não mais se perceber que ele foi perdido? Não há virtudes nem prazeres que dela não retirem encantos e as suas graças mais tocantes.
Soneto XXV
O nosso ninho, a nossa casa, aquela
nossa despretensiosa água-furtada,
tinha sempre gerânios na sacada
e cortinas de tule na janela.Dentro, rendas, cristais, flores… Em cada
canto, a mão da mulher amada e bela
punha um riso de graça. Tagarela,
teu cenário cantava à minha entrada.Cantava… E eu te entrevia, à luz incerta,
braços cruzados, muito branca, ao fundo,
no quadro claro da janela aberta.Vias-me. E então, num súbito tremor,
fechavas a janela para o mundo
e me abrias os braços para o amor!
A. L.
Não és a flor olímpica e serena
Que eu vejo em sonhos na amplidão distante;
Não tens as formas ideais de Helena,
As formas da beleza triunfante;Não és também a mística açucena,
A alva e pura Beatriz do Dante;
És a artista gentil, a flor morena
Cheia de aroma casto e penetrante.Não sei que graça, que esplendor, que arpejo
Eu sinto dentro d’alma quando vejo
Teu corpo aéreo, matinal, franzino…Faz-me lembrar as vívidas napeias,
E as formas vaporosas das sereias
Rendilhadas num bronze florentino.
Vibra o Passado em Tudo o que Palpita
Vibra o passado em tudo o que palpita
qual dança em coração de bailarino
ao regressar já mudo o violino
e há nuvens sobre o bosque em que transitaÀ paz dos seres a morte em seu contínuo
crescer em ramos de coral incita
a bem da noite negra e infinita
ser um raro instrumento é seu destino:O ceptro dos eleitos que não cansam
o corpo que este tempo já não quebra
é como a cruz que os astros quando avançamsobre o sul traçam por medida e regra
Os deuses têm-no em suas mãos cativo
risível é quem eles mandam vivo.Tradução de Vasco Graça Moura