O Lugar Certo
O tempo mudava de um momento para o outro, juntando, no curto espaço de vinte e quatro horas, a Primavera e o Outono, o Verão e até Inverno. Mas José Artur sentia-se vivo como um lobo das estepes libertado. Tinha a tensão alta dos heróis românticos e, em muitas circunstâncias, dava por si a citar Thoreau:
“Fui para os bosques viver de livre vontade. Vara sugar todo o tutano da vida, para aniquilar tudo o que não era vida e para, quando morrer, não descobrir que não vivi.”
Lamentava que Darwin ou Twain não tivessem encontrado naquelas ilhas o mesmo que ele encontrava agora, mas percebeu que, no século dezanove, ainda restavam outros paraísos no planeta. E, de qualquer modo, havia Chateaubriand, Raul Brandão, até Melville, impressionado com a valentia dos marinheiros das ilhas a leste de Nantucket. Não, ele não estava louco. Havia uma sabedoria naquilo — havia ecos e refracções, como se algo de mais profundo se insinuasse. Tinha a certeza de que, se a terra tremesse agora, conseguiria senti-la.
Aquele era o seu lugar. Não havia por que sentir falta dos privilégios da cidade. Um homem que soubesse povoar-se tinha alimento para uma vida na fotografia de um labandeira,
Passagens sobre Ilha
100 resultadosA Possibilidade de uma Ilha
Minha vida, minha vida, minha muito ancestral
Mal cumprido o meu primeiro voto
Repudiado o meu primeiro amor,
Precisei do teu retorno.Precisei de conhecer
O que a vida tem de melhor,
Quando dois corpos brincam com a felicidade
E se unem e renascem sem fim.Dominado por uma dependência total,
Sei o estremecimento do ser
A hesitação em desaparecer,
O sol que incide de travésE o amor, onde tudo é fácil,
Onde tudo é dado no momento;
Existe no meio do tempo
A possibilidade de uma ilha.
Toda a ilha é um continente.
Os Expectantes
Entre as definições da ilha planetária em que nos encontramos desterrados, uma das mais apropriadas seria: uma grande sala de espera. Uma terça parte da vida é anulada numa semimorte, outra gasta em fazer mal a nós mesmos e aos outros e a última esboroa-se e consome-se na expectativa. Esperamos sempre alguma coisa ou alguém – que vem ou não, que passa ou desilude, que satisfaz ou mata. Começa-se, em criança, a esperar a juventude com impaciência quase alucinada; depois, quando adolescente, espera-se a independência, a fortuna ou porventura apenas um emprego e uma esposa. Os filhos esperam a morte dos pais, os enfermos a cura, os soldados a passagem à disponibilidade, os professores as férias, os universitários a formatura, as raparigas um marido, os velhos o fim. Quem entrar numa prisão verificará que todos os reclusos contam os dias que os separam da liberdade; numa escola, numa fábrica ou num escritório, só encontrará criaturas que esperam, contando as horas, o momento da saída e da fuga. E em toda a parte – nos parques públicos, nos cafés, nas salas – há o homem que espera uma mulher ou a mulher que espera um homem. Exames, concursos, noivados, lotarias, seminários,
Não Consigo Viver em Literatura
Por mais que o deseje, não consigo viver em literatura. Felizes os que o conseguem. Viver em literatura é suprimir toda a interferência do que lhe é exterior – desde o peso das pedradas ao das flores da ovação. Suprimir mesmo ou sobretudo a conversa sobre ela, desde a dos jornais à dos amigos. Fazer da literatura um meio enclausurado em que a respiremos até à intoxicação e nada dele transpire para a exterioridade. Viver a arte como uma mística, um transporte de inebriamento, uma iluminação da graça, uma inteira absorção como de um vício inconfessável. Vivê-la na intimidade de uma absoluta solidão em que toda a ameaça de público esteja ausente como numa ilha que a impossibilidade de comunicação tornasse de facto deserta. Os recém-casados isolam-se para defenderem dos outros a mínima parcela da paixão. A vida em arte devia ser uma viagem de núpcias sem retorno. Só então se conheceria tudo o que a arte é para nós e a inteira verdade com que nós somos para ela. Mas não. Há que viver uma vida dúplice entre o estar a sós com ela e o permanente convívio, nem que sejam uns breves instantes à porta com os indiferentes e os maledicentes e os curiosos e mesmo os admiradores de que se necessita na nossa inferioridade moral para nos confirmarem no bom resultado da aposta.
Como é Belo Seu Rosto Matutino
Como é belo seu rosto matutino
Sua plácida sombra quando andaLembra florestas e lembra o mar
O mar o sol a pique sobre o marNão tive amigo assim na minha infância
Não é isso que busco quando o vejo
Alheio como a brisa
Não busco nada
Sei apenas que passa quando passa
Seu rosto matutino
Um som de queda de água
Uma promessa inumana
Uma ilha uma ilha
Que só vento habita
E os pássaros azuis
Alexandrina, Como Era
Minha tia Alexandrina bebia café
meia tigela de manhã e meia de tarde
o que dava mais dum litro.
Com esse rio de fogo correndo no seu corpo
punha ela dez filhos fora de casa
e lavava dez sobrados às senhoras da cidade.E quando voltava para os Biscoitos na camioneta da carreira
deixava-me nos ouvidos a música das gargalhadas dadas
e nos olhos os demónios dos seus olhos
pretos, estrelas pequeninas fulgurantes.Não passo pela ilha sem ir aos Biscoitos
não por vê-la, que ela já não está:
(levou-a o Canadá, a carta de chamada)
mas porque tenho consciência que são esplêndidos
os ramos das vinhas que alastram nos calhaus.
Toda a ilha de cada homem, toda a sentinela de cada homem, é a sua consciência. Não existe tal coisa de consciência colectiva.
Na Ampla Praça há apenas Plátanos
Na ampla praça há apenas plátanos.
Nem crianças a correm de tão fria,
nem estátuas a comovem bronzeadas.
Das margens secas, com ilhas e outras casas,
janelas, se as há, são quase setas.
O frio perfurou tábuas e latas.
Um vento seco corta junto aos olhos.O espaço é recomposto agora mesmo: na praça
estou na sombra dos plátanos
e tudo vejo com vontade e amor.
Mas não chega a presença ou a vontade.
Outros não chegam, ou aparecem apressados.
Nomes se referem. Desenha-se um olhar.
Apenas gesto, memória, sombra rara.Envolvo-me na praça. Os plátanos cobrem-me.
Das margens sempre vem algum calor.
Renascem os olhos. Os plátanos movem-se.
As casas iluminam-se. Um grito
cobre a sombra e assim anima
a ampla solidão de todos nós.
O conhecimento é uma ilha cercada por um oceano de mistério. Prefiro o oceano à ilha.
O nosso conhecimento é uma pequena ilha no grande oceano do desconhecido.
Portugal
Maior do que nós, simples mortais, este gigante
foi da glória dum povo o semideus radiante.
Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado,
seu torrão dilatou, inóspito montado,
numa pátria… E que pátria! A mais formosa e linda
que ondas do mar e luz do luar viram ainda!
Campos claros de milho moço e trigo loiro;
hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro;
trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas;
nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas;
gados nédios; colinas brancas olorosas;
cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas;
selvas fundas, nevados píncaros, outeiros
de olivais; por nogais, frautas de pegureiros;
rios, noras gemendo, azenhas nas levadas;
eiras de sonho, grutas de génios e de fadas:
riso, abundância, amor, concórdia, Juventude:
e entre a harmonia virgiliana um povo rude,
um povo montanhês e heróico à beira-mar,
sob a graça de Deus a cantar e a lavrar!
Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias
conchegadinhas sempre ao torreão de ameias.
Cada vila um castelo. As cidades defesas
por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas;
e, a dar fé, a dar vigor,
Ode Marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Coração Polar
Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.
Quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando nela estiver.
Funchal
O restaurante do peixe na praia, uma simples barraca, construída por náufragos.
Muitos, chegados à porta, voltam para trás, mas não assim as rajadas de vento do mar. Uma sombra encontra-se num cubículo fumarento e assa dois peixes, segundo uma antiga receita da Atlântida, pequenas explosões de alho.
O óleo flui sobre as rodelas do tomate. Cada dentada diz que o oceano nos quer bem, um zunido das profundezas.
Ela e eu: olhamos um para o outro. Assim como se trepássemos as agrestes colinas floridas, sem qualquer cansaço. Encontramo-nos do lado dos animais, bem-vindos, não envelhecemos. Mas já suportámos tantas coisas juntos, lembramo-nos disso, horas em que também de pouco ou nada servíamos ( por exemplo, quando esperávamos na bicha para doar o sangue saudável – ele tinha prescrito uma transfusão). Acontecimentos, que nos podiam ter separado, se não nos tivéssemos unido, e acontecimentos que, lado a lado, esquecemos – mas eles não nos esqueceram!
Eles tornaram-se pedras, pedras claras e escuras, pedras de um mosaico desordenado.
E agora aconteceu: os cacos voam todos na mesma direcção, o mosaico nasce.
Ele espera por nós. Do cimo da parede,
Maio de Minha Mãe
O primeiro de Maio de minha Mãe
Não era social, mas de favas e giestas.
Uma cadeira de pau, flor dos dedos do Avô
— Polimento, esquadria, engrade, olhá-la ao longe —
Dava assento a Florália, o meu primeiro amor.Já não se usa poesia descritiva,
Mas como hei-de falar da Maromba de Maio
Ou, se era macho, do litro de vinho na sua mão?
O primeiro de Maio nas Ilhas, morno como uma rosa,
Algodoado de cúmulos, lento no mar e rapioqueiro
Como Baco em Camões,
Límpido de azeviche
E, afinal de contas, do ponto de vista proletário,
Mais de mãos na algibeira do que Lenine em Zurich.
(Porque foi por esta época: eu é que não sabia!)A minha Maromba tinha barriga de palha como as massas
E a foice roçadoira da erva das cabras do Ribeiro
Que se pegou, esquecida, no banco do martelo de meu Avô
Cujas quedas iguais, gravíficas, profundasMuito prego em cunhal deixaram,
Muita madeira emalhetaram,
Muita estrela atraíram ao bico da foice do Ribeiro
Nas noites de luar em que roçava erva às cabras.
A ilha preserva a liberdade pelo isolamento, o que não é solução.
Elegia
Vae em seis mezes que deixei a minha terra
E tu ficaste lá, mettida n’uma serra,
Boa velhinha! que eras mais uma criança…
Mas, tão longe de ti, n’este Payz de França,
Onde mal viste, então, que eu viesse parar,
Vejo-te, quanta vez! por esta sala a andar…
Bates. Entreabres de mansinho a minha porta.
Virás tratar de mim, ainda depois de morta?
Vens de tão longe! E fazes, só, essa jornada!
Ajuda-te o bordão que te empresta uma fada.
Altas horas, emquanto o bom coveiro dorme,
Escapas-teãda cova e vens, Bondade enorme!
Atravez do Marão que a lua-cheia banha,
Atravessas, sorrindo, a mysteriosa Hespanha,
Perguntas ao pastor que anda guardando o gado,
(E as fontes cantam e o céu é todo estrellado…)
Para que banda fica a França, e elle, a apontar,
Diz: «Vá seguindo sempre a minha estrella, no Ar!»
E ha-de ficar scismando, ao ver-te assim, velhinha,
Que és tu a Virgem disfarçada em probrezinha…
Mas tu, sorrindo sempre, olhando sempre os céus,
Deixando atraz de ti, os negros Pyrineus,
Sob os quaes rola a humanidade,
A Minha Vida é um Barco Abandonado
A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado?Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.