Sem outra Palavra para Mantimento
Sem outra palavra para mantimento
Sem outra força onde gerar a voz
Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede
Que cavaste no meu canto, amo-te
Sou cítara para tocar as tuas mãos.
Podes dizer-me de um fôlego
Frase em silêncio
Homem que visitas
Ó seiva aspergindo as partículas do fogo
O lume em toda a casa e na paisagem
Fora da casa
Pedra do edifício aonde encontro
A porta para entrar
Candelabro que me vens cegando.
Sol
Que quando és nocturno ando
Com a noite em minhas mãos para ter luz.
Passagens sobre Pedras
521 resultadosMeados de Maio
Chuvoso maio!
Deste lado oiço gotejar
sobre as pedras.
Som da cidade …
Do outro via a chuva no ar.
Perpendicular, fina,
Tomava cor,
distinguia-se
contra o fundo das trepadeiras
do jardim.
No chão, quando caía,
abria círculos
nas pocinhas brilhantes,
já formadas?
Há lá coisa mais lindaque este bater de água
na outra água?
Um pingo cai
E forma uma rosa…
um movimento circular,
que se espraia.
Vem outro pingo
E nasce outra rosa…
e sempre assim!Os nossos olhos desconsolados,
sem alegria nem tristeza,
tranquilamente
vão vendo formar-se as rosas,
brilhar
e mover-se a água…
Múmia
Múmia de sangue e lama e terra e treva,
Podridão feita deusa de granito,
Que surges dos mistérios do Infinito
Amamentada na lascívia de Eva.Tua boca voraz se farta e ceva
Na carne e espalhas o terror maldito,
O grito humano, o doloroso grito
Que um vento estranho para és limbos leva.Báratros, criptas, dédalos atrozes
Escancaram-se aos tétricos, ferozes
Uivos tremendos com luxúria e cio…Ris a punhais de frígidos sarcasmos
E deve dar congélidos espasmos
O teu beijo de pedra horrendo e frio!…
Viverei com certeza um terço do que poderia viver porque todas as pedras me ferem, todos os espinhos me laceram. Dom Quixote sem crenças nem ilusões, batalho continuamente por um ideal que não existe; e esta constante exaltação, desesperada e desiludida, destrambelha-me os nervos e mata-me.
De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.
Solidão
Ó solidão! À noite, quando, estranho,
Vagueio sem destino, pelas ruas,
O mar todo é de pedra… E continuas.
Todo o vento é poeira… E continuas.
A Lua, fria, pesa… E continuas.
Uma hora passa e outra… E continuas.
Nas minhas mãos vazias continuas,
No meu sexo indomável continuas,
Na minha branca insónia continuas,
Paro como quem foge. E continuas.
Chamo por toda a gente. E continuas.
Ninguém me ouve. Ninguém! E continuas.
Invento um verso… E rasgo-o. E continuas.
Eterna, continuas… Mas sei por fim que sou do teu tamanho!
A desgraça de um artista é nunca estar de consciência tranquila em relação à arte. Fez sempre tudo o que devia por ela? Desbastou a pedra até ao último alento? Ou deixou estátuas inteiras sepultadas na pedreira, por não ter coragem de suar mais?
A Área
Tudo o que houve, permanece, proeza do corpo
como um sulco bárbaro da memória dos dias,
ritos, remorsos, sementes futuras, a mudez.
Tudo aconteceu nas lágrimas e nas veias,na precisão das luzes, no lugar móvel da ordem,
no gelo e no lume que entre as coisas navegam,
na palavra deflagrada, na paz das páginas.
Para onde vai o que não se move, o que édogma de cal, madeira, pedra ou ferro?
Como chamar à alma, à linguagem, às cores
que de amor pela morte morrem caladas,na área eterna da casa, a que permanece
na velhice dos anos e dos ossos consumada,
como uma gota do tempo para além dos séculos?
Quero a Fome de Calar-me
Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra
Que trago para sentar-me no banqueteA única glória no mundo — ouvir-te. Ver
Quando plantas a vinha, como abres
A fonte, o curso caudaloso
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedoQuero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa
Chaga do pastor
Que abriu o redil no próprio corpo e sai
Ao encontro da ovelha separada. CercoOs sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes
A flor — várias árvores cortadas
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos
Seguem a linha do canivete nos troncosAs mãos acima da cabeça adornam
As águas nocturnas — pequenos
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadasCaem — quero fechar-me e cair. O silêncio
Alveolar expira — e eu
Estendo-as sobre a mesa da aliança
Acho tão Natural que não se Pense
Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa …
Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas. . .
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente. . .
Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha…
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos …
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.
O Sagrado e o Alcançável
Sem uma palavra a escrever, Martim no entanto não resistiu à tentação de imaginar o que lhe aconteceria se o seu poder fosse mais forte que a prudência. «E se de repente eu pudesse?», indagou-se ele. E então não conseguiu se enganar: o que quer que conseguisse escrever seria apenas por não conseguir escrever «a outra coisa». Mesmo dentro do poder, o que dissesse seria apenas por impossibilidade de transmitir uma outra coisa. A Proibição era muito mais funda…, surpreendeu-se Martim.
Como se vê, aquele homem terminara por cair na profundeza que ele sempre sensatamente evitara.
E a escolha tornou-se ainda mais funda: ou ficar com a zona sagrada intacta e viver dela – ou traí-la pelo que ele certamente terminaria conseguindo e que seria apenas isso: o alcançável.
Como quem não conseguisse beber a água do rio senão enchendo o côncavo das próprias mãos – mas já não seria a silenciosa água do rio, não seria o seu movimento frígido, nem a delicada avidez com que a água tortura pedras, não seria aquilo que é um homem de tarde junto do rio depois de ter tido uma mulher. Seria o côncavo das próprias mãos. Preferia então o silêncio intacto.
Pedra queda, musgo cria.
Pátria
Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muroPelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusávelE pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas– Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centroMe dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo
Com Fúria e Raiva
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavrasPois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiadaDe longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disseCom fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
A Luz que Vem das Pedras
A luz que vem das pedras, do íntimo da pedra,
tu a colhes, mulher, a distribuis
tão generosa e à janela do mundo.
O sal do mar percorre a tua língua;
não são de mais em ti as coisas mais.
Melhor que tudo, o voo dos insectos,
o ritmo nocturno do girar dos bichos,
a chave do momento em que começa o canto
da ave ou da cigarra
— a mão que tal comanda no mesmo gesto fere
a corda do que em ti faz acordar
os olhos densos de cada dia um só.
Quem está salvando nesta respiração
boca a boca real com o universo?
Pedra Filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Respiro o teu corpo
Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.
Máscara Mortuária De Graciliano Ramos
Feito só, sua máscara paterna
Sua máscara tosca de acridoce
Feição, sua máscara austerizou-se
Numa preclara decisão eterna.Feito só, feito pó, desencantou-se
Nele o intimo arcanjo, a chama interna
Da paixão em que sempre se queimou
Seu duro corpo que ora longe inverna.Feito pó, feito pólem, feito fibra
Feito pedra, feito o que é morto e vibra
Sua mácara enxuta de homem forteIsto revela em seu silêncio à escuta:
Numa severa afirmação da luta
Uma impassível negação da morte.
A Máscara
Eu sei que há muito pranto na existência,
Dores que ferem corações de pedra,
E onde a vida borbulha e o sangue medra,
Aí existe a mágoa em sua essência.No delírio, porém, da febre ardente
Da ventura fugaz e transitória
O peito rompe a capa tormentória
Para sorrindo palpitar contente.Assim a turba inconsciente passa,
Muitos que esgotam do prazer a taça
Sentem no peito a dor indefinida.E entre a mágoa que masc’ra eterna apouca
A humanidade ri-se e ri-se louca
No carnaval intérmino da vida.
A Questão deste Corpo
A questão deste corpo está hoje no esquecimento
dogma sobre ele erguido há muito tempo: é
um corpo flutuante confuso próximo de
um conhecimento verbal
questão em si mesmo questionando teoria
opinião tradicional.Contamos histórias
renunciamos a determinar-lhe origem
recurso a outro corpo perguntando reclamando
a perder de vista.Se interrogo retenho a questão quotidiana
o defeito do corpo disponível
ante toda a constatação todo o exame.(Esta a coragem das mãos ao pensamento
lenta e solitária
no silêncio da pedra disparada
do alto do tempo.)