Veio Ter Comigo Hoje a Poesia
Veio ter comigo hoje a poesia.
Há quantos anos? Desde a juventude.
Veio num raio de sol, num murmúrio de vento.
E a ilusão que me trouxe de uma antiga alegria
reinventou-me a antiga plenitude
que já não invento.Fazia-lhe outrora poemas verdadeiros
em fornicações rápidas de galo.
Hoje não sou eu nunca por inteiro
e há sempre no que faço um intervalo.Estamos ambos tão velhos — que vens fazer?
— a cama entre nós da nossa antiga função.
Nublado o olhar só de a ver.
E tomo-lhe em silêncio a mão.
Passagens sobre Sol
1157 resultadosSol de Janeiro, atrás do outeiro.
Ó Virgens!
Ó virgens que passaes, ao sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente
Que me transporte ao meu perdido lar…Cantae-me, n’essa voz omnipotente,
O sol que tomba, aureolando o mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a graça, a formozura, o luar!Cantae! cantae as limpidas cantigas!
Das ruinas do meu lar desatterrae
Todas aquellas illuzões antigasQue eu vi morrer n’um sonho, como um ai…
Ó suaves e frescas raparigas;
Adormecei-me n’essa voz… Cantae!
Caminho da Manhã
Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes.
O Verão
Estás no verão,
num fio de repousada água, nos espelhos perdidos sobre
a duna.
Estás em mim,
nas obscuras algas do meu nome e à beira do nome
pensas:
teria sido fogo, teria sido ouro e todavia é pó,
sepultada rosa do desejo, um homem entre as mágoas.
És o esplendor do dia,
os metais incandescentes de cada dia.
Deitas-te no azul onde te contemplo e deitada reconheces
o ardor das maçãs,
as claras noções do pecado.
Ouve a canção dos jovens amantes nas altas colinas dos
meus anos.
Quando me deixas, o sol encerra as suas pérolas, os
rituais que previ.
Uma colmeia explode no sonho, as palmeiras estão em
ti e inclinam-se.
Bebo, na clausura das tuas fontes, uma sede antiquíssima.
Doce e cruel é setembro.
Dolorosamente cego, fechado sobre a tua boca.
O Anjo Da Redenção
Soberbo, branco, etereamente puro,
Na mão de neve um grande facho aceso,
Nas nevroses astrais dos sóis surpreso,
Das trevas deslumbrando o caos escuro.Portas de bronze e pedra, o horrendo muro
Da masmorra mortal onde estás preso
Desce, penetra o Arcanjo branco, ileso
Do ódio bifronte, torso, torvo e duro.Maravilhas nos olhos e prodígios
Nos olhos, chega dos azuis litígios
Desce à tua caverna de bandido.E sereno, agitando o estranho facho,
Põe-te aos pés e a cabeça, de alto a baixo,
Auréolas imortais de Redimido!
Soneto VII
No Rio Eufrate[s], ua erva, ou flor se cria
Que c’o Sol sobre as águas aparece,
E dentro se recolhe e se entristece
Quando no largo mar se esconde o dia.À vista de meu Sol ledo me via
Fora do rio, que dos olhos crece;
Agora que meu Sol não me amanhece,
Entre lágrimas vivo em noite fria.Mas desta flor o triste estado é breve,
Trás noite manhã tem; ai de quem chora
Contando noites, sem que um dia conte.O Sol já por milagre quedo esteve:
Também parou meu Sol, mas parou fora,
Para noite sem fim de meu Horizonte.
A ilusão é como a neblina da manhã. Assim como a neblina dissipa-se por si mesma quando surge o Sol, a ilusão também desaparece por si mesma quando o homem desperta para a Imagem Verdadeira. Ficar com a mente presa à ilusão, preocupado em eliminá-la, é o mesmo que encerrar a ilusão numa caixinha, impedindo-a de ir-se.
O Tempo Gastador de Mil Idades
O Tempo gastador de mil idades,
Que na décima esfera vive e mora,
Não descansa co’a Fúria tragadora,
De exercitar, feroz, suas crueldades.Ele destrói as ínclitas cidades,
As egípcias pirâmides devora:
Sua dentada fouce assoladora,
Rompe forças viris, destrói beldades.O bronze, o ouro, o rígido diamante,
A sua mão pesada amolga e gasta
Levando tudo ao nada, em giro errante.Como trovão feroz rugindo arrasta,
Quanto cobre na Terra o sol radiante,
Só da Virtude com temor se afasta.
Deste Modo ou daquele Modo
Deste modo ou daquele modo.
Conforme calha ou não calha.
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a
nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me
ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer
como um homem,
Mas como quem sente a Natureza,
O Egoísmo do Homem das Cidades
A miséria parece uma secreção do progresso, da civilização. Não é nos campos (até em plena crise), onde a vida é simples e sem ambições, que a miséria se torna aflitiva, dramática. A sua tragédia sem remédio desenvolve-se antes nas cidades, nas grandes capitais, tanto mais insensíveis e duras quanto mais civilizadas. A mecanização, o automatismo do progresso que transforma os homens em máquinas, isolam-no brutalmente substituindo os seus gestos e impulsos afectivos por complicadas e frias engrenagens. O homem das cidades, modelado, esculpido na própria luta com os outros que lhe disputam o seu lugar ao sol, é talvez, sem reparar, a encarnação do próprio egoísmo.
Eu não sou de ninguém!… Quem me quiser há-de ser luz do Sol em tardes quentes… Há-de ser Outro e outro num momento! Força viva, brutal, em movimento, astro arrastando catadupas de astros!
Já não Vivi, Só Penso
Já não vivo, só penso. E o pensamento
é uma teia confusa, complicada,
uma renda subtil feita de nada:
de nuvens, de crepúsculos, de vento.Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento,
e eu cada vez mais vaga, mais alheada.
Percorro o céu e a terra aqui sentada,
sem uma voz, um olhar, um movimento.Terei morrido já sem o saber?
Seria bom mas não, não pode ser,
ainda me sinto presa por mil laços,ainda sinto na pele o sol e a lua,
ouço a chuva cair na minha rua,
e a vida ainda me aperta nos seus braços.
São Plácidas Todas as Horas que Nós Perdemos
Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Lendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza…À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranqüilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.
Poeminha Compensatório
Amigas, venham todas
Tragam o sal, o sol, o som, a vida,
O riso, a onda.
Eu sou o Cavalheiro da Triste Figura
Mas tenho uma bela Távola RedondaSaio sempre do cinema
Com o sentimento desagradável
De que, se não houvesse lido a
Crítica, teria sido formidável!
Debaixo Minha Vontade
(Sextina)
Ontem pôs-se o sol, e a noute
cobriu de sombra esta terra.
Agora é já outro dia,
tudo torna, torna o sol;
só foi a minha vontade
para não tornar co tempo!Todalas cousas, per tempo,
passam como dia e noute.
Uma só, minha vontade,
não, que a dor comigo a aterra;
nela cuido enquanto há sol,
nela em quanto não há dia.Mal quero per um só dia
a todo o outro dia e tempo,
que a mim pôs-se-me o sol
onde eu só temia a noute;
tenho a mim sobre a terra,
debaixo minha vontade.Dentro da minha vontade
não há momento do dia
que não seja tudo terra;
ora ponho a culpa ao tempo,
ora a torno a pôr à noute.
No melhor pôs-se-me o sol!Primeiro não haverá sol
que eu descanse na vontade.
Pôs-se-me uma escura noute
sobre a lembrança de um dia,
inda mal, porque houve tempo
e porque tudo foi terra.Haver de ser tudo terra
quanto há debaixo do sol,
Exaltação
Viver!… Beber o vento e o sol!… Erguer
Ao Céu os corações a palpitar!
Deus fez os nossos braços pra prender,
E a boca fez-se sangue pra beijar!A chama, sempre rubra, ao alto, a arder!…
Asas sempre perdidas a pairar,
Mais alto para as estrelas desprender!…
A glória!… A fama!… O orgulho de criar!…Da vida tenho o mel e tenho os travos
No lago dos meus olhos de violetas,
Nos meus beijos extáticos, pagãos!…Trago na boca o coração dos cravos!
Boémios, vagabundos, e poetas:
– Como eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos!…
O Casulo
No casulo:
uma mesa quatro cinco estantes
livros por centenas ou milhares
tijolos de papel onde as traças
acasalam e o caruncho espreita
sólidas muralhas de elvezires onde
a rua não penetra
uma máquina de escrever olivetti
com a tinta acumulada nas letras mais redondas
cachimbos barros estanhos medalhas fotos
bonecos marafonas lembranças
retratos alguns gente ida ou vinda
gorros usbeques gorros bailundos leques
japoneses arpões açorianos sinos de não sei donde
ou sei esperem sinos da tróica em natais nocturnos
marfins africanos óleos desenhos calendários
feitiços da Baía a mão a fazer figas
tudo do melhor contra raios coriscos mau olhado
retratos dizia Jorge o de Salvador Júlio o da Morgadinha
Berglin o cientista Kostas o dramaturgo
e outros e outros
Afonso Duarte o das ossadas pórtico
destas lamúrias o sorriso sibilino e rugoso
que matou no Nemésio o bicho harmonioso
mais de agora o Umberto Eco barbudo
a filtrar-me com medievismo os gestos tontos
e outros e outros
suecos brasileiros romenos gregos
e ainda aqueles em que a Zita foi escrevendo
a minha sina de andarilho
Tolstoi patrono obcecante um pastor a tocar
pífaro algures nos Balcãs sinais da Bulgária da Polónia
da Finlândia sinais de tantas partes onde
fui um outro de biografia aberrante
sinais da minha terra também
a minha de verdade e não as outras
a que chamam minhas por distraído palpite
o Lima de Freitas num candeeiro alumiando
a mulher verde-azul em casas assombrada
mestre Marques d’Oliveira num esquisso
de alto coturno a carta de Abel Salazar
que o sol foi comendo não se lendo já
o que a censura omitiu
aqui a China também representada
um ícone de Sófia as plácidas cabras
do Calasans o tinteiro de quando
se usavam plumas roubaram-se o missal do Cicogna
um almofariz para esferográficas furta-cores
a caixa de madeira floreada veio da Rússia
deu-ma a Tatiana sob promessa (cumprida)
de a pôr bem em frente das minhas divagações
anémonas nórdicas da Anne
miosótis búlgaros da Rumiana
o poster é alemão Friede den Kindern
nunca pedi a ninguém a decifração
dois horóscopos face a face
cangaceiros nordestinos
o menino ajoelhado do Tó Zé
num gesso já sem braços nem rosto
objectos objectos o pote tem as armas de não lembro
[quem
embora o nome que venha por de cima
seja o meu e eu também no óleo carrancudo
do Zé Lima há um ror de anos
melhor não saber quantos
o molde para o bronze é um perfil onde
desenganadamente me reconheço
tanta bugiganga tanto bazar tanto papel
branco ou impresso uma faca para
apunhalar alguém a cassete de poesias na voz
da Maria Vitorino as esculturas astecas
do Miguel medalhas medalhas outra vez lembranças
agendas sem préstimo canetas gastas mais papéis
letras miúdas ou letras farfalhudas
depende da ocasião
um livro de filigrana
as paredes mal se vêem estantes copiosas já disse
quadros em demasia e ainda
as rendas de minha mãe em molduras destoadas
ela no retrato de cenho descontente
fitando-me até ao miolo dos desvairos
o bordão de régulo justiceiro
obliquando no trono de cactos
amuletos africanos o mata-borrão que foi
de um pide deu-mo o fuzileiro no pós-Abril
uma bela cabeça de mulher do João Fragoso
jarras de sacristia candeias de cobre
sem pavio um samovar de madeira um samurai de
[veludo
os painéis de São Vicente em miniatura
a áurea trombeta do troféu lusíada
de parceria com o Manuel Cargaleiro
áureos pesados troféus o marasmo branco
de Pavia na tela sem idade
livros livros os correios não páram
de mos trazer para maior sufocação
cartas a granel por responder relógio não há mas ouço-o
sem falhar um segundo há cordas cordões medalhas
[medalhões
armas lauréis proibições
perfumes em minaretes levantinos.
A Poezia do Outomno
Noitinha. O sol, qual brigue em chammas, morre
Nos longes d’agoa… Ó tardes de novena!
Tardes de sonho em que a poezia escorre
E os bardos, a sonhar, molham a penna!Ao longe, os rios de agoas prateadas
Por entre os verdes cannaviaes, esguios,
São como estradas liquidas, e as estradas
Ao luar, parecem verdadeiros rios!Os choupos nus, tremendo, arripiadinhos,
O chale pedem a quem vae passando…
E nos seus leitos nupciaes, os ninhos,
As lavandiscas noivam piando, piando!O orvalho cae do céu, como um unguento.
Abrem as boccas, aparando-o, os goivos…
E a larangeira, aos repellões do vento,
Deixa cair por terra a flor dos noivos.E o orvalho cae… E, á falta d’agoa, rega
O val sem fruto, a terra arida e nua!
E o Padre-Oceano, lá de longe, prega
O seu Sermão de Lagrymas, á Lua!Tardes de outomno! ó tardes de novena!
Outubro! Mez de Maio, na lareira!
Tardes…
Lá vem a Lua, gratiae plena,
Do convento dos céus, a eterna freira!
Amo-te Por Todas as Razões e Mais Uma
Por todas as razões e mais uma. Esta é a resposta que costumo dar-te quando me perguntas por que razão te amo. Porque nunca existe apenas uma razão para amar alguém. Porque não pode haver nem há só uma razão para te amar.
Amo-te porque me fascinas e porque me libertas e porque fazes sentir-me bem. E porque me surpreendes e porque me sufocas e porque enches a minha alma de mar e o meu espírito de sol e o meu corpo de fadiga. E porque me confundes e porque me enfureces e porque me iluminas e porque me deslumbras.
Amo-te porque quero amar-te e porque tenho necessidade de te amar e porque amar-te é uma aventura. Amo-te porque sim mas também porque não e, quem sabe, porque talvez. E por todas as razões que sei e pelas que não sei e por aquelas que nunca virei a conhecer. E porque te conheço e porque me conheço. E porque te adivinho. Estas são todas as razões.
Mas há mais uma: porque não pode existir outra como tu.