Textos sobre Dor

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Textos de dor escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

O Amor Inspira-se no Clandestino

O amor inspira-se no clandestino, estávamos escondidos do mundo e abertos para nós, olhei-te nos olhos e encontrei-te os meses que passámos separados, a grande dor de não te ter, a casa era desconhecida, desabitada, disseste-me tu, não quero saber como tinhas a chave, ainda hoje não quero, o mistério é um amor por descobrir, e quando se descobre pode não ser amor nenhum –

aguentar nesta vida é preservar mistérios, segredos que nunca podem deixar de o ser, espaços por preencher, lacunas que passamos o tempo a tentar ocupar, descodificar, tentar que não falte nada é a melhor receita para nunca faltar nada,
desde que continue sempre a faltar qualquer coisa.

Quem Aprendeu a Morrer Desaprendeu de Servir

Os homens vão, vêm, andam, dançam, e nenhuma notícia de morte. Tudo isso é muito bonito. Mas, também quando ela chega, ou para eles, ou para as suas mulheres, filhos e amigos, surpreendendo-os imprevistamente e sem defesa, que tormentos, que gritos, que dor e que desespero os abatem! Já vistes algum dia algo tão rebaixado, tão mudado, tão confuso? É preciso preparar-se mais cedo para ela; e essa despreocupação de animal, caso pudesse instalar-se na cabeça de um homem inteligente, o que considero inteiramente impossível, vende-nos caro demais a sua mercadoria. Se fosse um inimigo que pudéssemos evitar, eu aconselharia a adoptar as armas da cobardia. Mas, como isso não é possível, como ele vos alcança fugitivo e poltrão tanto quanto corajoso, De facto ele persegue o cobarde que lhe foge, e não poupa os jarretes e o dorso poltrão de uma juventude sem coragem (Horácio), e que nenhuma ilusão de couraça vos encobre, Inútil esconder-se prudentemente sob o ferro e o bronze: a morte saberá fazer-se expôr à cabeça que se esconde (Propércio), aprendamos a enfrentá-lo de pé firme e a combatê-lo. E, para começar a roubar-lhe a sua maior vantagem contra nós, tomemos um caminho totalmente contrário ao habitual.

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As Desvantagens das Nossas Paixões

Quanto mais um homem se emaranha numa paixão, tanto mais os acontecimentos, em si indiferentes, se traduzem para ele em dor, enganando justamente, pela sua indiferença, a avidez tensa em que esse homem se encontra. Um ambicioso sofrerá porque uma pessoa célebre não lhe reconheceu importância; essa mesma pessoa célebre tentará insuflar escrúpulos de tentação a algum evangélico de quem procurará a conversação; escrúpulos que, por sua vez, irritarão um individualista, que será atingido por eles, malgrado seu. A inveja, ambição ruminada, está na base de todas as angústias que sofremos. Não toleramos que uma coisa aconteça indiferentemente, por acaso, escapando à nossa chancela.
Qualquer género de fervor acarreta consigo a tendência para sentir uma lei preestabelecida na vida, uma lei que castiga os que abusam ou descuram esse mesmo fervor. Um estado de paixão – mesmo que fosse a embriaguez da absoluta autodeterminação – organiza e anima de tal forma o Universo que toda a desgraça, parece, depois, provocada por uma ruptura do equilíbrio vital dessa paixão difusa, que, assim, se defende como um corpo vivo. E, segundo o temperamento de cada um, teremos a sensação de que abusámos, ou de que fomos inferiores; de qualquer forma, sentir-nos-emos organicamente punidos pela própria lei da paixão e do Universo.

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Próxima Estação

Querida amiga,

Já terás partido para longe quando estiveres a ler estas linhas… permite-me que partilhe contigo o que sinto a respeito desta tua grande mudança…

Nunca é bom colocarmos qualquer tipo de âncora na saudade ou nos sonhos. A nossa casa, o nosso país, é o lugar onde nós estamos. É aí que temos de ser quem somos. É aí que temos de descobrir a felicidade de cada dia. Tudo o resto é estrangeiro.

Cada homem pertence tanto ao sítio de onde vem como àquele para onde vai. A ideia de que as nossas raízes nos prendem e condenam segue na linha errada da outra, também comum, de que os sonhos nos fazem perder… não, a vida é esta forma de ir sendo sempre mais, o que se foi, tanto quanto o que ainda não se é… uma viagem, não uma estação.
Sei que partes com dor porque temes perder quem aqui fica e não ter ninguém por lá, onde chegarás… sabes, em pouco tempo, terás de aceitar que muitos dos que agora lamentam muito a tua partida, se preocuparão tão pouco em saber como estás…

Já fizeste muita gente feliz aqui…

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A Infelicidade da Juventude

O que faz da juventude um período infeliz é a caça à felicidade, na firme pressuposição de que ela tem de ser encontrada na existência. Disso resulta a esperança sempre malograda e, desta, o descontentamento. Imagens enganosas de uma vaga felicidade onírica pairam perante nós revestidas de formas caprichosamente escolhidas, fazendo-nos procurar em vão o seu original. Por isso, nos anos da juventude, estamos quase sempre descontentes com a nossa situação e o nosso ambiente, não importando quais sejam; porque lhes atribuímos o que na verdade pertence, em toda a parte, à vacuidade e à indigência da vida humana, com as quais só então travamos o primeiro conhecimento, após termos esperado coisas bem diversas. Ganhar-se-ia bastante se, pela instrução em tempo apropriado, fosse erradicada nos jovens a ilusão de que há muito a encontrar no mundo. Porém, é o contrário que acontece: na maioria das vezes, conhecemos a vida primeiro pela poesia, e depois pela realidade.
Na aurora da nossa juventude, as cenas descritas pela poesia resplandecem diante dos nossos olhos, e o anelo atormenta-nos para vê-las realizadas, a tocar o arco-íris. O jovem espera que o curso da sua vida se dê na forma de um romance interessante.

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As Virtudes da Cidade

Amo o ruído e a constante agitação das grandes cidades. O movimento contínuo obriga à observação dos costumes. O ladrão, por exemplo, ao ver toda a actividade humana, pensa involuntariamente que é um patife, e esta imagem alegre em movimento pode vir a melhorar a sua natureza decadente e arruinada. O boémio sente-se talvez mais modesto e pensativo quando vê todas as forças produtivas, e o devasso diz possivelmente a si mesmo, quando lhe salta aos olhos a docilidade das massas, que não é mais do que um sujeito miserável, estúpido e vaidoso, que só sabe ufanar-se com soberba. As grandes cidades ensinam, educam, e não com doutrinas roubadas aos livros. Não há aqui nada de académico, o que é lisonjeiro, pois o saber acumulado rouba-nos a coragem.
E depois há aqui tanto que incentiva, que sustenta e ajuda. Quase não conseguimos dizê-lo. É tão difícil dar uma expressão viva ao que é refinado e bom. Agradecemos as nossas vidas modestas, sentimo-nos sempre um pouco gratos quando somos empurrados, quando temos pressa. Quem tem tempo para esbanjar não sabe o que o tempo significa, é por natureza um ingrato. Nas grandes cidades qualquer moço de recados conhece o valor do tempo e nenhum ardina quer perder o seu tempo.

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O Medo da Morte só se Justifica na Juventude

Algumas pessoas idosas vivem obcecadas com o medo da morte. Este sentimento só se justifica na juventude. Os jovens que receiam, com razão, morrer na guerra, podem legitimamente sentir a amargura do pensamento de terem sido defraudados do melhor que a vida lhes podia oferecer. Mas num velho que conheceu já as alegrias e dores humanas e que cumpriu a sua missão, qualquer que fosse, o receio da morte é algo de abjecto e ignóbil. O melhor meio de o vencer – pelo menos quanto a mim – é aumentar gradualmente as nossas preocupações, torná-las cada vez mais impessoais, até ao momento em que, a pouco e pouco, os limites da nossa personalidade recuem e a nossa vida mergulhe mais ainda na vida universal.
Pode-se comparar a existência de um indivíduo a um rio – pequeno a princípio, estreitamente encerrado entre duas margens, arremetendo, com entusiasmo, primeiro os seixos e depois as cataratas. A pouco e pouco, o rio alarga-se, as suas margens afastam-se, a água corre mais calmamente e, por fim, sem nenhuma mudança brusca, desagua no oceano e perde sem sofrimento a sua existência individual.
O homem que na velhice pode ver a sua vida desta maneira,

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Não Leves a Tua Vida Tão a Sério

Em relação à vida em si, passa-se o mesmo! Também não se pode levar esta experiência demasiado a sério. Se o fizeres, corres o risco de passar o tempo inteiro da tua existência a viver uma lista de problemas sem fim. Ainda assim, e como no tópico anterior, não te estou a pedir para deixares de viver as coisas com paixão e intensidade. Antes pelo contrário. Vive-as!! O que quero que entendas é que se as coisas, porventura, não correrem como esperavas ou te achavas merecedor, não lhes atribuas um significado tão sério.
Lembra-te: foi apenas mais uma experiência. Próxima!
Cada um de nós é o comandante da sua vida, logo, podemos escolher valorizar as coisas boas e desvalorizar as menos boas.

Há muita gente que diz, por ter lido em livros e, outras, por terem sentido na pele, que desvalorizar as coisas más é negar uma lição e que só aprendemos pela dor. A minha questão é: o que é que aprendemos? Aprendemos o que não devemos voltar a fazer, é isso? Se assim for, e sob esse único e limitado ponto de vista, estou de acordo. Acontece que o âmago da vida é outro e está centrado no que deves fazer!

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Náufragos que Navegam Tempestades

As tempestades são sempre períodos longos. Poucas pessoas gostam de falar destes momentos em que a vida se faz fria e anoitece, preferem histórias de praias divertidas às das profundas tragédias de tantos naufrágios que são, afinal, os verdadeiros pilares da nossa existência.

Gente vazia tende a pensar em quem sofre como fraco… quando fracos são os que evitam a qualquer custo mares revoltos, tempestades em que qualquer um se sente minúsculo, mas só os que não prestam o são verdadeiramente. Para a gente de coração pequeno, qualquer dor é grande. Os homens e mulheres que assumem o seu destino sabem que, mais cedo ou mais tarde, morrerão, mas há ainda uma decisão que lhes cabe: desviver a fugir ou morrer sofrendo para diante.
Da morte saímos, para a morte caminhamos. O que por aqui sofremos pode bem ser a forma que temos de nos aproximarmos do coração da verdade.

Haverá sempre quem seja mestre de conversas e valente piloto de naus alheias, os que sabem sempre tudo, principalmente o que é (d)a vida do outro, e mais especificamente se estiver a passar um mau bocado. Logo se apressam a dizer que depois da tempestade vem a bonança,

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Compaixão Mórbida

Todos os dias desfaço-me, por via da razão, desse sentimento pueril e inumano que faz que desejemos que os nossos males suscitem a compaixão e o pesar nos nossos amigos. Fazemos valer os nossos infortúnios desproporcionadamente para provocar as suas lágrimas. E a firmeza face à má fortuna, que louvamos em toda a gente, reprovamo-la e repudiamo-la aos nossos íntimos quando a má fortuna é a nossa. Não nos contentamos com que eles sejam sensíveis às nossas dores, precisamos que com elas se aflijam.
Deve-se espalhar a alegria, mas conter, tanto quanto possível, a tristeza. Quem quer ser compadecido sem razão é homem que não o merece ser quando houver razão para tal. Estar sempre a lamentar-se é caso para se não ser lamentado, pois quem tantas vezes faz de coitadinho não inspira dó a ninguém. Quem faz de morto estando vivo sujeita-se a ser tido por vivo em morrendo. Vi doentes abespinharem-se por os acharem de bom semblante e com o pulso normal, reprimirem o riso porque este denunciava a sua cura e odiarem a saúde por ela não suscitar compaixão.

O Amor não Existe sem Ciúme

Se o ciúme nasce do intenso amor, quem não sente ciúmes pela amada não é amante, ou ama de coração ligeiro, de modo que se sabe de amantes os quais, temendo que o seu amor se atenue, o alimentam procurando a todo o custo razões de ciúme.
Portanto o ciumento (que porém quer ou queria a amada casta e fiel) não quer nem pode pensá-la senão como digna de ciúme, e portanto culpada de traição, atiçando assim no sofrimento presente o prazer do amor ausente. Até porque pensar em nós que possuímos a amada longe – bem sabendo que não é verdade – não nos pode tornar tão vico o pensamento dela, do seu calor, dos seus rubores, do seu perfume, como o pensar que desses mesmos dons esteja afinal a gozar um Outro: enquanto da nossa ausência estamos seguros, da presença daquele inimigo estamos, se não certos, pelo menos não necessariamente inseguros. O contacto amoroso, que o ciumento imagina, é o único modo em que pode representar-se com verosimilhança um conúbio de outrem que, se não indubitável, é pelo menos possível, enquanto o seu próprio é impossível.
Assim o ciumento não é capaz, nem tem vontade, de imaginar o oposto do que teme,

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A Subjectividade dos Comportamentos

Podemos ter para com as coisas que nos acontecem ou que fazemos uma atitude mais geral ou mais pessoal. Podemos sentir uma pancada não apenas como dor, mas também como ofensa, e neste caso ela torna-se cada vez mais insuportável; mas também aceitá-la desportivamente, como um obstáculo que não nos intimidará nem nos arrastará para uma ira cega, e então não é raro nem sequer darmos por ela. Neste segundo caso, porém, o que aconteceu foi apenas que integrámos essa pancada num contexto mais geral, o do combate, e em função disso a natureza do golpe revelou-se dependente da tarefa que tem de desempenhar. E precisamente este fenómeno, que leva a que um acontecimento receba o seu significado, e mesmo o seu conteúdo, mediante a sua inserção numa cadeia de acções consequentes, produz-se em todos os indivíduos que não o encaram apenas como acontecimento pessoal, mas como desafio à sua capacidade intelectual.
Também ele será mais superficialmente afectado nas suas emoções pelo que faz. Mas, estranhamente, aquilo que se vê como sinal de inteligência superior num pugilista é visto como frieza e insensibilidade em pessoas que não sabem de boxe e nas quais isso se deve à sua inclinação para uma determinada forma de vida intelectual.

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O Maior Triunfo do Homem

O maior triunfo do homem é quando se convence de que o ridículo é uma coisa sua que existe só para os outros, e, mesmo, sempre que outros queiram. Ele então deixa de importar-se com o ridículo, que, como não está em si, ele não pode matar.

Três coisas tem o homem superior que ensinar-se a esquecer para que possa gozar no perfeito silêncio a sua superioridade – o ridículo, o trabalho e a dedicação.
Como não se dedica a ninguém, também nada exige da dedicação alheia. Sóbrio, casto, frugal, tocando o menos possível na vida, tanto para não se incomodar como para não aproximar as coisas de mais, a ponto de destruir nelas a capacidade de serem sonhadas, ele isola-se por conveniência do orgulho e da desilusão. Aprende a sentir tudo sem o sentir directamente; porque sentir directamente é submeter-se – submeter-se à acção da coisa sentida.

Vive nas dores e nas alegrias alheias, Whitman olímpico, Proteu da compreensão, sem partilhar de vivê-las realmente. Pode, a seu talante, embarcar ou ficar nas partidas de navios e pode ficar e embarcar ao mesmo tempo, porque não embarca nem fica. Esteve com todos em todas as sensações de todas as horas da sua vida.

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O Tempo Torna Tudo Irreal

O tempo, propriamente dito, não existe (excepto o presente como limite), e, no entanto, estamos submetidos a ele. É esta a nossa condição. Estamos submetidos ao que não existe. Quer se trate da duração passivamente sofrida – dor física, esperança, desgosto, remorso, medo -, quer do tempo organizado – ordem, método, necessidade -, nos dois casos, aquilo a que estamos submetidos, não existe. Estamos, realmente, presos por correntes irreais. O tempo, irreal, cobre todas as coisas e até nós mesmos, de irrealidade.

Controlar o Desejo de Posse

É difícil, senão impossível, determinar os limites dos nossos desejos razoáveis em relação à posse. Pois o con­tentamento de cada pessoa, a esse respeito, não repousa numa quantidade absoluta, mas meramente relativa, a sa­ber, na relação entre as suas pretensões e a sua posse. Por isso, esta última, considerada nela mesma, é tão vazia de sen­tido quanto o numerador de uma fração sem denomina­dor. Um homem que nunca alimentou a aspiração a cer­tos bens, não sente de modo algum a sua falta e está com­pletamente satisfeito sem eles; enquanto um outro, que possui cem vezes mais do que o primeiro, sente-se infe­liz, porque lhe falta uma só coisa à qual aspira.
A esse respeito, cada um tem um horizonte próprio daquilo que pode alcançar, e as suas pretensões vão até onde vai esse horizonte. Quando algum objecto se apresenta a ele nos limites desse horizonte, de modo que possa ter confian­ça em alcançá-lo, sente-se feliz; pelo contrário, sente-se in­feliz quando dificuldades advindas o privam de seme­lhante perspectiva. Aquilo que reside além desse hori­zonte não faz efeito sobre ele. Eis por que as grandes posses do rico não inquietam o pobre, e, por outro lado, o muito que já possui,

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A Vontade de Mudar

A mudança implica dor. Dói porque nos obrigamos a romper com padrões calcinados de conforto e preguiça onde controlamos e sabemos tudo. Obriga-nos a crescer e não há nada que cresça sem nos abanar, criar desconforto e necessidade de adaptação. Mas quem muda sempre alcança. Ninguém chega a lado nenhum que valha a pena sem ter mudado alguma coisa. A vontade de mudar é uma espécie de ignição que liga o principal motor que nos conduz, o coração. Mudar é voltar a sentir, assumir responsabilidades, curar o que há para ser tratado e, finalmente, agir. E muitas vezes nem é preciso sair do mesmo lugar, basta alterarmos o significado mental que damos à situação que estamos a viver.

A Vaidade no Sofrimento

Há ocasiões, em que contraímos a obrigação connosco, de não admitirmos alívio nas nossas mágoas, e nos armamos de rigor, e de aspereza contra tudo o que pode consolar-nos, como querendo, que a constância na pena nos justifique, e sirva de mostrar a injustiça da fortuna: parece-nos, que o ser firme a nossa dor, é prova de ser justa; esta ideia nos inspira a vaidade, menos cuidadosa no sossego do nosso ânimo, do que atenta em procurar a estimação dos homens. Uma grande pena admira-se, e respeita-se; é o que basta para que a vaidade nos faça persistir no sentimento.

Juízes Imparciais

Se quisermos ser juízes imparciais em qualquer circunstância, devemos, antes de mais, ter em conta que ninguém está livre de culpa; o que está na origem da nossa indignação é a ideia de que: «Eu não errei» e «Eu não fiz nada». Pelo contrário, tu recusas admitir os teus erros! Indignamo-nos quando somos castigados ou repreendidos, cometendo, simultaneamente, o erro de acrescentar aos crimes cometidos, a arrogância e a obstinação. Quem poderá dizer que nunca infringiu a lei? E, se assim for, é bem estreita inocência ser bom perante a lei! Quão mais vasta é a regra do dever do que a regra do direito! Quantas obrigações impõem a piedade, a humanidade, a bondade, a justiça e a lealdade, que não estão escritas em nenhuma tábua de leis!
Mas nós não podemos satisfazer-nos com aquela noção de inocência tão limitada: há erros que cometemos, outros que pensamos cometer, outros que desejamos cometer, outros que favorecemos; por vezes, somos inocentes por não termos conseguido cometê-los. Se tivermos isto em conta, somos mais justos para com os delinquentes, e mais persuasivos nas admoestações; em todo o caso, não nos iremos contra os homens bons (de facto, contra quem não nos sentiremos irados,

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O Desejo e a Posse

Um homem não se sente totalmente privado dos bens aos quais nunca sonhou aspirar, mas fica muito satisfeito mesmo sem eles, enquanto outro que possua cem vezes mais do que o primeiro sente-se infeliz quando lhe falta uma única coisa que tenha desejado. A esse respeito, cada um tem também um horizonte próprio daquilo que lhe é possível atingir, e as suas pretensões têm uma extensão semelhante a esse horizonte. Quando determinado objecto, situado dentro desses limites, se lhe apresenta de modo que o faça acreditar na possibilidade de alcançá-lo, o homem sente-se feliz; em contrapartida, sentir-se-à infleliz quando eventuais dificuldades lhe tirarem tal possibilidade. Tudo o que estiver situado externamente a esse campo visual não agirá de forma alguma sobre ele. Por esse motivo, as grandes propriedades dos ricos não perturbam o pobre, e, por outro lado, para o rico cujos propósitos tenham fracassado, serve de consolo as muitas coisas que já possui. (A riqueza assemelha-se à água do mar; quanto mais dela se bebe, mais sede se tem. O mesmo vale para a glória).

O facto de que o nosso humor habitual não resulte muito diferente do anterior após a perda de uma riqueza ou do bem-estar,

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Os Deuses Reclinados

… Por todos os lados as estátuas de Buda, de Lorde Buda… As severas, verticais, carcomidas estátuas, com um dourado de resplendor animal, com uma dissolução como se o ar as desgastasse… Crescem-lhes nas faces, nas pregas das túnicas, nos cotovelos, nos umbigos, na boca e no sorriso pequenas máculas: fungos, porosidades, vestígios excrementícios da selva… Ou então as jacentes, as imensas jacentes, as estátuas de quarenta metros de pedra, de granito areento, pálidas, estendidas entre as sussurrantes frondes, inesperadas, surgindo de qualquer canto da selva, de qualquer plataforma circundante… Adormecidas ou não adormecidas, estão ali há cem anos, mil anos, mil vezes mil anos… Mas são suaves, com uma conhecida ambiguidade ultraterrena, aspirando a ficar e a ir-se embora… E aquele sorriso de suavíssima pedra, aquela majestade imponderável, mas feita de pedra dura, perpétua, para quem sorriem, para quem, sobre a terra sangrenta?… Passaram as camponesas que fugiam, os homens do incêndio, os guerreiros mascarados, os falsos sacerdotes, os turistas devoradores…

E manteve-se no seu lugar a estátua, a imensa pedra com joelhos, com pregas na túnica de pedra, com o olhar perdido e não obstante existente, inteiramente inumana e de alguma forma também humana, de alguma forma ou de alguma contradição estatuária,

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