Leve, Leve, o Luar
Leve, leve, o luar de neve
goteja em perlas leitosas,
o luar de neve e tĂŁo leve
que ameiga o seio das rosas.E as gotas finas da etérea
chuva, caindo do ar,
matam a sede sidéria
das coisas que embebe o luar.A luz, oh sol, com que alagas,
abre feridas, e a lua
vem pĂ´r no lume das chagas
o beijo da pele nua.
Passagens sobre Ar
622 resultadosEm leito de penas
não se alcança a fama nem sobre as cobertas;
Quem a vida consome sem a fama,
nĂŁo deixa de si nenhum vestĂgio sobre a terra,
qual fumo no ar e espuma na água.
A Canção da Vida
A vida Ă© louca
a vida Ă© uma sarabanda
Ă© um corrupio…
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto Ă© primavera,
enquanto o mundo
nĂŁo poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aĂ…
como um salso chorando
na beira do rio…
(Como a vida Ă© bela! como a vida Ă© louca!)
No meu Prato que Mistura de Natureza!
No meu prato que mistura de Natureza!
As minhas irmĂŁs as plantas,
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguĂ©m reza…
E cortam-as e vĂŞm Ă nossa mesa
E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
Que chegam com correias tendo mantas
Pedem “Salada”, descuidosos…,
Sem pensar que exigem Ă Terra-MĂŁe
A sua frescura e os seus filhos primeiros,
As primeiras verdes palavras que ela tem,
As primeiras cousas vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu
E no ar por onde a pomba apareceu
O arco-Ăris se esbateu…
As Razões
Quando passas por mim depressa, indiferente,
e nĂŁo me dás sequer, um sorriso… um olhar…
– como um vulto qualquer, em meio a tanta gente
que costuma nos ver sem nunca nos notar…Quando passa assim, distraĂda, nesse ar
de quem sĂł sabe andar olhando para frente,
e finges não me ver, e avanças sem voltar
o rosto… e vais seguindo displicentemente…– eu penso com tristeza em tua hipocrisia…
Ninguém sabe que a tive ao meu amor vencida
e que um dia choraste… e que choraste um dia…Mas para que contar? Que sejas sempre assim,
e que ninguém descubra nunca em tua vida
as razões por que passas sem olhar pra mim!…
Sonho Oriental
Sonho-me Ă s vezes rei, n’alguma ilha,
Muito longe, nos mares do Oriente,
Onde a noite é balsâmica e fulgente
E a lua cheia sobre as águas brilha…O aroma da magnĂłlia e da baunilha
Paira no ar diáfano e dormente…
Lambe a orla dos bosques, vagamente,
O mar com finas ondas de escumilha…E enquanto eu na varanda de marfim
Me encosto, absorto n’um cismar sem fim,
Tu, meu amor, divagas ao luar,Do profundo jardim pelas clareiras,
Ou descanças debaixo das palmeiras,
Tendo aos pés um leão familiar.
Passado, Presente, Futuro
Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
RĂŁ fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.Falta ver, se Ă© que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.
Falta Pouco
Falta pouco para acabar
o uso desta mesa pela manhĂŁ
o hábito de chegar à janela da esquerda
aberta sobre enxugadores de roupa.
Falta pouco para acabar
a própria obrigação de roupa
a obrigação de fazer barba
a consulta a dicionários
a conversa com amigos pelo telefone.Falta pouco
para acabar o recebimento de cartas
as sempre adiadas respostas
o pagamento de impostos ao paĂs, Ă cidade
as novidades sangrentas do mundo
a mĂşsica dos intervalos.Falta pouco para o mundo acabar
sem explosĂŁo
sem outro ruĂdo
além do que escapa da garganta com falta de ar.Agora que ele estava principiando
a confessar
na bruma seu semblante e melodia.
Sobresalto
Quantas horas passava contemplando
Seu pequenino Vulto. Era um Anjinho
Dentro de nossa casa, abençoando…
Era uma Flôr, um Astro, um Amorzinho.Um dia, em que ele, ao pé de mim, sósinho
Brincava, estes meus olhos inundando
De graça, de inocencia e de carinho,
De tudo o que Ă© celeste, alegre e brando,Vi tremer sua Imagem, de repente,
No ar, como se fôra Aparição.
E para mim eu disse tristemente:“Pertences a outro mundo, a um cĂ©u mais alto;
Partirás dentro em breve.” E desde entĂŁo
Eu fiquei num constante sobresalto!
Triste Padeço
Aves que o ar discorrei,
No vĂ´o as asas batendo,
E por vossas penas conta
Ă€s minhas meu sentimento.Compadecidas ouvi
De minha dor os excessos,
Mas em dizer que Ă© saudade,
Digo o que posso dizer-vos.
Triste padeço, e ausente
Os golpes dos meus receios
Nas batalhas da distância,
Nos desafios do tempo.Nas violĂŞncias, do que choro,
Dos alĂvios desespero,
Que nĂŁo adormece a queixa,
Quando a desperta o desvelo.Esmoreceu a esperança
Nas dilações do desejo
Prognosticando a ruĂna
Frenético o pensamento.Se meu mal são sintomas,
Mortais ausĂŞncias, e zelos,
Era o remédio esquecer-me,
Se em mim houvera esquecimento.Mas se faz no meu cuidado
Operações o veneno,
Viva de senti-lo quem,
Não morre de padecê-lo.Já que morro, ingrata sorte,
Ă€s mĂŁos da tua porfia,
Deixa-me inquirir um dia
A causa da minha morte:Se amor com impulso forte
Me rendeu, como me aparta
Do bem, que na alma retrata
Minha doce saudade,
Saber Aconselhar
Quando queres dar a entender a alguém que está errado, começa por falar-lhe doutras coisas, acabando por chegar, como por acaso, aos actos que merecem reprovação. Descreve-os, então, de modo caricatural, diz todo o mal que pensas deles, mas fá-los acompanhar de circunstâncias diferentes, de modo a que a pessoa que queres aconselhar não se sinta directamente atingida. Procura que te escute de boa vontade, sem zangar-se; alegra a conversa com algumas piadas e, se de súbito o vires fazer má cara, mostra um ar cândido e interroga-o nesse sentido. Finalmente, misturando-as com considerações diversas, aborda as souluções a considerar num caso como o que te preocupa.
Poder Crer em Santa Bárbara
Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme…
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caĂrem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos …Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê — eu não tinha medo —
pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguĂ©m…Ah! Ă© que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou…
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
TranqĂĽilamente, como o muro do quintal;
Tendo idéias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor…Sentia-me alguĂ©m que nossa acreditar em Santa
Bárbara…
Ah, poder crer em Santa Bárbara!(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela Ă© gente e visĂvel
Ou que julgará dela?)(Que artifĂcio!
O melhor que os pais podem deixar aos filhos Ă© a saĂşde. Por isso, para que os filhos nĂŁo tenham doenças, sĂł o regime natural, a vida ao ar livre e o exercĂcio salutar Ă© que vale e Ă© belo.
O DilĂşvio
Há muitos dias já, há já bem longas noites
que o estalar dos vulcões e o atroar das torrentes
ribombam com furor, quais rábidos açoites,
ao crebro rutilar dos coriscos ardentes.Pradarias, vergéis, hortos, vinhedos, matos,
tudo desapar’ceu ao rude desabar
das constantes, hostis, raivosas cataratas,
que fizeram da Terra um grande e torvo mar.Ă€ flor do torvo mar, verde como as gangrenas,
onde homens e leões bóiam agonizantes,
imprecando com fĂşria e angĂşstia, erguem-se apenas,
quais monstros colossais, as montanhas gigantes.É aà que, ululando, os homens como as feras
refugiar-se vão em trágicos cardumes,
O mar sobe, o mar cresce. e os homens e as panteras,
crianças e reptis caminham para os cumes.Os fortes, sem haver piedade que os sujeite,
arremessam ao chĂŁo pobres velhos cansados.
e as mães largam. cruéis, os filhinhos de leite,
que os que seguem depois pisam, alucinados.Um sinistro pavor; crescente e sufocante,
desnorteia, asfixia a turba pertinaz:
ouvem-se urros de dor, e os que vĂŁo adiante
lançam pedras brutais aos que ficam pra trás.
Há mais prazer em edificar um castelo no ar do que na terra.
A Leitura Ă© a Maior das Amizades
A amizade, a amizade que diz respeito aos indivĂduos, Ă© sem dĂşvida uma coisa frĂvola, e a leitura Ă© uma amizade. Mas pelo menos Ă© uma amizade sincera, e o facto de ela se dirigir a um morto, a uma pessoa ausente, confere-lhe algo de desinteressado, de quase tocante. E alĂ©m disso uma amizade liberta de tudo quanto constitui a fealdade dos outros. Como nĂŁo passamos todos, nĂłs os vivos, de mortos que ainda nĂŁo entraram em funções, todas essas delicadezas, todos esses cumprimentos no vestĂbulo a que chamamos deferĂŞncia, gratidĂŁo, dedicação e a que misturamos tantas mentiras, sĂŁo estĂ©reis e cansativas. AlĂ©m disso, — desde as primeiras relações de simpatia, de admiração, de reconhecimento, as primeiras palavras que escrevemos, tecem Ă nossa volta os primeiros fios de uma teia de hábitos, de uma verdadeira maneira de ser, da qual já nĂŁo conseguimos desembaraçar-nos nas amizades seguintes; sem contar que durante esse tempo as palavras excessivas que pronunciámos ficam como letras de câmbio que temos que pagar, ou que pagaremos mais caro ainda toda a nossa vida com os remorsos de as termos deixado protestar. Na leitura, a amizade Ă© subitamente reduzida Ă sua primeira pureza.
Com os livros,
Escreve!
NĂŁo sei o que supor
Do teu silĂŞncio. Escreve!
Quem Ă© amado deve
Ser grato ao menos, flor!Se eu fosse tĂŁo feliz
Que te falasse um dia,
De viva voz diria
Mais do que a carta diz.Mas olha, tal qual Ă©,
NĂŁo rias desse escrito,
Que pouco ou muito Ă© dito
Tudo de boa-fé.Há nesse teu olhar
A doce luz da Lua,
Mas luz que se insinua
A ponto de abrasar…Pareça nele, sim,
Que há só doçura, embora,
Há fogo que devora…
Que me devora a mim!Que mata, mas que dá
Uma suave morte;
Mata da mesma sorte
Que uma árvore que há;Que ao pé se lhe ficou
Acaso alguém dormindo
Adormeceu sorrindo…
PorĂ©m nĂŁo acordou!Esse teu seio entĂŁo…
Que encantadora curva!
Como de o ver se turva
A vista e a razão!Como até mesmo o ar
Suspende a gente logo,
Pregando olhos de fogo
Em tĂŁo formoso par!
Em Minas, não se aborrecia tanto, por quê? Não achou solução ao enigma, uma vez que o ar tinha mais em que se distrair, e que o distraia deveras; Mas havia aqui horas de um tédio mortal.
Mas porque Ă© que estas ideias nĂŁo as tem defendido a classe mĂ©dica? É simples a resposta. É que nĂŁo há pĂlulas de sol, nem injeções de exercĂcio, nem tĂŁo pouco vacinas de ar… e Ă© preciso viver dos doentes.
Por um Rosto Chego ao Teu Rosto
Por um rosto chego ao teu rosto,
noutro corpo sei o teu corpo.
Num autocarro, num café me pergunto
porque nĂŁo falam o que vai
no seu silĂŞncio aqueles cujo olhar
me fala da solidĂŁo.
Esqueço-me de mim. Tão quieto
pensando na sua pouca coragem, a minha
sempre adiada. Por um rosto
chegaria o teu rosto, mesmo de um convite
ousado fugiria, esta mĂŁo conhece-te
e desenha no ar o hábito
por que andou antes de saĂres
do espaço à sua volta. Estás longe,
sĂł assim podes pedir algumas horas
aos meus dias. Sem fixar a voz
a tua voz Ă© uma corda, a minha
um fio a partir-se.