Apostrofe À Carne
Quando eu pego nas carnes do meu rosto.
Pressinto o fim da orgânica batalha:
– Olhos que o húmus necrófago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto…E o Homem – negro e heteróclito composto,
Onde a alva flama psíquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tacto, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!Carne, feixe de mônadas bastardas,
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!
Passagens sobre Brilhos
156 resultadosD. Quixote
Assim à aldeia volta o da “triste figura”
Ao tardo caminhar do Rocinante lento:
No arcaboiço dobrado – um grande desalento,
No entristecido olhar – uns laivos de loucura…Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura
Do ideal e da Fé, tudo isto num momento
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre os risos boçais do Bacharel e o Cura.Mas, certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente
Contigo a sorte, ao pôr nesse teu cérebro oco
O brilho da Ilusão do espírito doente;Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco
Perdendo, qual perdeste, um ideal ardente
E ardentes ilusões – e não se ficar louco!
De Amor os gozos são como o diamante,
Que, sem o engaste que tocar-lhe veda,
Perdera a polidez, perdera o brilho.
Pelo brilho nos olhos, desde o começo dos tempos, as pessoas reconhecem seu verdadeiro amor.
Moralidade e Êxito
Não são só os espectadores de um acto que, amiúde, medem o que é moral ou imoral no mesmo, consoante o êxito: não, o próprio autor também o faz. Pois os motivos e as intenções raramente são suficientemente claros e simples, e, às vezes, a própria memória parece perturbada pelo efeito do acto, de modo que a pessoa atribui ao seu próprio acto motivos falsos ou trata como essenciais os motivos secundários. O êxito dá, muitas vezes, a um acto todo o honesto brilho da boa consciência, um malogro coloca a sombra do remorso sobre a acção mais respeitável. Daí resulta a conhecida prática do político, que pensa: «Dai-me simplesmente o êxito! Com ele, também terei posto do meu lado todas as almas honestas… e ter-me-ei tornado honesto, perante mim próprio». De maneira análoga, o êxito é suposto substituir a melhor fundamentação.
Necrológio dos Desiludidos do Amor
Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia…Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e de segunda classe).Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.
Elegia dos Amantes Lúcidos
Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
O contorno lunar da noite que te finge!Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exacta dum violino
Que fosse a sensibilidade deste pensamento
Com que a minha sombra vai pensando o meu destinoE não houvesse o sono dum telhado
Entre ter de haver eu e haver o tecto;
E a eternidade não estivesse ao lado
A colocar-nos nas costas as asas dum insectoMeu amor, meu amor, teu gesto nasce
Para partir de ti e ser ao longe
A cor duma cidade que nos pasce
Como a ausência de deus pastando um mongeAh, se uma súbita mão na hora a pique
Tangendo harpas geladas por segredos
Desprendesse uma aragem de repiques
Destes sinos parados pelo medo!Mas só porque vieste fez-se tarde,
Ou é a vida que nasce já tardia
Como uma estrela que se acende e arde
Porque não cabe na rapidez do dia?
A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes – brilhos do espírito, correntes do entendimento, mistérios e filosofias – que têm o mesmo automatismo que os reflexos corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem de suas secreções.
Luz Dolorosa
Fulgem da Luz os Viáticos serenos,
Brancas Extrema-Unções dos hostiários:
As Estrelas dos límpidos Sacrários
A nívea Lua sobre a paz dos fenos.Há prelúdios e cânticos e trenos
Tristes, nos ares ermos, solitários…
E nos brilhos da Luz, vagos e vários,
Há dor, há luto, há convulsões, venenos…Estranhas sensações maravilhosas
Percorrem pelos cálices das rosas,
Sensações sepulcrais de larvas frias…Como que ocultas áspides flexíveis
Mordem da Luz os germens invisíveis
Com o tóxico das cóleras sombrias…
Finjo o tempo todo, rio, sou alegre, dispersivo, com aquele brilho superficial e ridículo. E em cada fim de noite me sinto um lixo.
Quando é Grande o Poderio da Solidão
Quando é grande o poderio
da solidão, ao seu lado
estanca a aura exterior do brilho
que a fica aí preservando.
Às vezes, outra se avizinha. O sítio
da vizinhança contamina o espaço.
E uma como que luz que antecedesse o espírito
remove o vácuo,
de forma a ele se ir constituindo
espera de verbo. Âmbito
a iluminar-se recinto
aonde as solidões, aproximando-
-se a frequência aumentassem do alto poderio
e estancassem ao bordo granítico do canto.
O Album
Minha Júlia, um conselho de amigo;
Deixa em branco este livro gentil:
Uma só das memórias da vida
Vale a pena guardar, entre mil.E essa n’alma em silêncio gravada
Pelas mãos do mistério há-de ser;
Que não tem língua humana palavras,
Não tem letra que a possa escrever.Por mais belo e variado que seja
De uma vida o tecido matiz ,
Um só fio da tela bordada,
Um só fio há-de ser o feliz.Tudo o mais é ilusão, é mentira,
Brilho falso que um tempo seduz,
Que se apaga, que morre, que é nada
Quando o sol verdadeiro reluz.De que serve guardar monumentos
Dos enganos que a esp’rança forjou?
Vãos reflexos de um sol que tardava
Ou vãs sombras de um sol que passou!Crê-me, Júlia: mil vezes na vida
Eu coa minha ventura sonhei;
E uma só, dentre tantas, o juro,
Uma só com verdade a encontrei.Essa entrou-me pela alma tão firme,
Tão segura por dentro a fechou,
Que o passado fugiu da memória,
Mater
Tu, grande Mãe!… do amor de teus filhos escrava,
Para teus filhos és, no caminho da vida,
Como a faixa de luz que o povo hebreu guiava
À longe Terra Prometida.Jorra de teu olhar um rio luminoso.
Pois, para batizar essas almas em flor,
Deixas cascatear desse olhar carinhoso
Todo o Jordão do teu amor.E espalham tanto brilho as asas infinitas
Que expandes sobre os teus, carinhosas e belas,
Que o seu grande dano sobe, quando as agitas,
E vai perder-se entre as estrelas.E eles, pelos degraus da luz ampla e sagrada,
Fogem da humana dor, fogem do humano pé,
E, à procura de Deus, vão subindo essa escada,
Que é como a escada de Jacó.
Nos Teus Gestos
Nos teus gestos há animais em liberdade
e o brilho doce que só têm as cerejas.
É neles que adormeço, e dos teus dedos
retiro a luz azul dos arquipélagos.Os teus gestos são letras, sílabas, poemas.
Os teus gestos são páginas inteiras. São
a tua boca a namorar na minha boca,
o cio dos séculos a saudar o tempo.São os teus gestos que me acordam. Gestos
que vestem o silêncio fundo das ravinas
e assinalam a água dos desertos.Os teus gestos são música. São lume.
São a respiração do teu olhar. A seara
de espigas que ondula no meu corpo.
A Sesta De Nero
Fulge de luz banhado, esplêndido e suntuoso,
O palácio imperial de pórfiro luzente
E mármor da Lacônia. O teto caprichoso
Mostra, em prata incrustado, o nácar do Oriente.Nero no toro ebúrneo estende-se indolente…
Gemas em profusão do estrágulo custoso
De ouro bordado vêem-se. O olhar deslumbra, ardente,
Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso.Formosa ancila canta. A aurilavrada lira
Em suas mãos soluça. Os ares perfumando,
Arde a mirra da Arábia em recendente pira.Formas quebram, dançando, escravas em coréia.
E Nero dorme e sonha, a fronte reclinando
Nos alvos seios nus da lúbrica Popéia.
A Verdade Universal Não Existe
Consultei os filósofos, folheei os seus livros, examinei as suas diversas opiniões; achei-os todos orgulhosos, afirmativos, dogmáticos – mesmo no seu pretenso cepticismo -, não ignorando nada, não demonstrando nada, troçando uns dos outros; e esse ponto, que é comum a todos eles, pareceu-me ser o único em que todos concordavam. Triunfantes quando atacam, não têm vigor quando se defendem. Se examinais as suas razões, só as têm para destruir; se contais os seus caminhos, cada um está limitado ao seu; só se põem de acordo para discutir; prestar-lhes ouvidos não era o meio de me livrar da minha incerteza. Compreendi que a insuficiência do espírito humano é a primeira causa dessa prodigiosa diversidade de sentimentos, e que o orgulho é a segunda.
Nós não temos a medida dessa imensa máquina, não podemos calcular as suas proporções; não lhe conhecemos nem as primeiras leis nem a causa final; ignoramo-nos a nós mesmos; não conhecemos nem a nossa natureza nem o nosso princípio activo; mal sabemos se o homem é um ser simples ou composto: mistérios impenetráveis rodeiam-nos por todos os lados; pairam por cima da região sensível; para os compreendermos, supomos ter inteligência, e apenas temos imaginação. Cada um de nós abre através desse mundo imaginário –