Ode Marcial
Inúmero rio sem água — só gente e coisa,
Pavorosamente sem água!Soam tambores longínquos no meu ouvido
E eu não sei se vejo o rio se ouço os tambores,
Como se não pudesse ouvir e ver ao mesmo tempo
Helahoho! Helahoho!A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta…
Ela cosia à tarde indeterminadamente…
A mesa onde jogavam os velhos,Tudo misturado, tudo misturtado com os corpos, com sangues,
Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horrorHelahoho! Helahoho!
Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da estrada,
E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida.
Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da viúva que mataram à baioneta
E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coraçãoSim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles
Que matou, violou, queimou e quebrou,
Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso com uma sombra disforme
Passeiam por todo o mundo como Ashavero,
Passagens sobre Crianças
715 resultadosMaomé e a Montanha
Guardo o mais absoluto segredo
das pedras que rolam no fundo dos leitos
embora nada saiba,
nada ouse saber.
Vou pelo olhar até ao rio,
o rio vem a mim
e ambos caminhamos deslumbrados
para fora de nós.O cantar da água
corre nos meus olhos exactamente como corre
a manhã
até que o sol a prumo
faz de mim o desenho do rio
que vejo,
o mapa das veias
onde o corpo nasce de novo.À vinda procuro a minha sombra.
O coração que me há-de trazer de volta
demora-se no rio
como se nele corresse
uma sede de olhar.Os pés colam-se à margem.
Do outro lado as casas vão mudando
de expressão
mais lentamente do que a água corre.
O sol abraça-me pelas costas
e deixa-se escorregar como crianças
que riem,
que não distinguem a voz seca do tempo.É noite à lareira da casa.
Os objectos acendem-se:
também eles mudam de rosto
como tudo o que é iluminado por amor.
Eu
Eu, eu mesmo…
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. —
Eu…
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças…
Que crianças não sei…
Eu…
Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei…
Eu…
Tive um passado? Sem dúvida…
Tenho um presente? Sem dúvida…
Terei um futuro? Sem dúvida…
A vida que pare de aqui a pouco…
Mas eu, eu…
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu…
O Testamento dos Namorados
Escolhamos as coisas mais inúteis
o verde água o rumor das frutas
e partamos como quem sai
ao domingo naturalmente.Deixemos entretanto o sinal
de ter existido carnalmente:
da tua força um castiçal
da minha fragilidade um pente.Esse hieróglifo essa lousa
deixemos para que uma criança
a encontre como quem ousa
um novo passo de dança.
A Mulher de Negro
Os sons da floresta, as árvores, a bicicleta e, ao longe, o silêncio imóvel de um vulto negro. Aproximei-me e era uma mulher vestida de negro. Um xaile negro sobre os ombros. Um lenço negro sobre a cabeça. O som dos pneus da bicicleta a pararem, o som de amassarem folhas húmidas e de fazerem estalar ramos. Os meus pés a pousarem no chão. Os olhos da mulher entre o negro. Os olhos pequenos da mulher. O seu rosto branco. Vimo-nos como se nos encontrássemos, como se nos tivéssemos perdido havia muito tempo e nos encontrássemos. O tempo deixou de existir. O silêncio deixou de existir. Pousei a bicicleta no chão para caminhar na direcção da mulher. Era atraído por segredos. Durante os meus passos, a mulher estendeu-me a mão. A sua mão era muito velha. A palma da sua mão tinha linhas que eram o mapa de uma vida inteira, uma vida com todos os seus enganos, com todos os seus erros, com todas as suas tentativas. Os seus olhos de pedra. Senti os ossos da sua mão a envolverem os meus dedos. Não me puxou, mas eu aproximei o meu corpo do seu. Senti a sua respiração no meu pescoço.
Vive o Instante que Passa
Vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E no entanto ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti. Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica. E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. Assim o dom estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez maior de o não teres cumprido integralmente, de o teres desperdiçado numa vida que terá fim.
Todas as Noites me Sinto
Todas as noites me sinto
igual aos desconhecidos.
Sou a criança que sou,
só quando o tempo pára.Fico em mim,
fora dos músculos.Por que se movem os deuses
quando o sol cresta as formigas?
Lendas da luz da noite
secam todo o movimento.Seguro a vida
por desespero.
A Dúvida, a Solidão, logo… a Escrita
Na vida, chega um momento – e penso que ele é fatal – ao qual não é possível escapar, em que tudo é posto em causa: o casamento, os amigos, sobretudo os amigos do casal. Tudo menos a criança. A criança nunca é posta em dúvida. E essa dúvida cresce à sua volta. Essa dúvida, está só, é a da solidão. Nasce dela, da solidão. Podemos já nomear a palavra. Creio que há muita gente que não poderia suportar o que aqui digo, que fugiria. Talvez seja por essa razão que nem todos os homens são escritores. Sim. Essa é a diferença. Essa é a verdade. Mais nada. A dúvida é escrever. É, portanto, também, o escritor. E com o escritor todo o mundo escreve. É algo que sempre se soube.
Creio também que sem esta dúvida primeira do gesto em direcção à escrita não existe solidão. Nunca ninguém escreveu a duas vozes. Foi possível cantar a duas vozes, ou fazer música também, e jogar ténis, mas escrever, não. Nunca.
A Escola Portuguesa
Eis as crianças vermelhas
Na sua hedionda prisão:
Doirado enxame de abelhas!
O mestre-escola é o zangão.Em duros bancos de pinho
Senta-se a turba sonora
Dos corpos feitos de arminho,
Das almas feitas d’aurora.Soletram versos e prosas
Horríveis; contudo, ao lê-las
Daquelas bocas de rosas
Saem murmúrios de estrela.Contemplam de quando em quando,
E com inveja, Senhor!
As andorinhas passando
Do azul no livre esplendor.Oh, que existência doirada
Lá cima, no azul, na glória,
Sem cartilhas, sem tabuada,
Sem mestre e sem palmatória!E como os dias são longos
Nestas prisões sepulcrais!
Abrem a boca os ditongos,
E as cifras tristes dão ais!Desgraçadas toutinegras,
Que insuportáveis martírios!
João Félix co’as unhas negras,
Mostrando as vogais aos lírios!Como querem que despontem
Os frutos na escola aldeã,
Se o nome do mestre é — Ontem
E o do discíp’lo — Amanhã!Como é que há-de na campina
Surgir o trigal maduro,
Se é o Passado quem ensina
O b a ba ao Futuro!
Eduque às crianças e não será necessário castigar aos homens.
A criança engorda para viver, e o velho para morrer.
A Mentira
Porque é que, na maior parte das vezes, os homens na vida quotidiana dizem a verdade? Certamente, não porque um deus proibiu mentir. Mas sim, em primeiro lugar, porque é mais cómodo, pois a mentira exige invenção, dissimulação e memória. Por isso Swift diz: «Quem conta uma mentira raramente se apercebe do pesado fardo que toma sobre si; é que, para manter uma mentira, tem de inventar outras vinte». Em seguida, porque, em circunstâncias simples, é vantajoso dizer directamente: quero isto, fiz aquilo, e outras coisas parecidas; portanto, porque a via da obrigação e da autoridade é mais segura que a do ardil. Se uma criança, porém, tiver sido educada em circunstâncias domésticas complicadas, então maneja a mentira com a mesma naturalidade e diz, involuntariamente, sempre aquilo que corresponde ao seu interesse; um sentido da verdade, uma repugnância ante a mentira em si, são-lhe completamente estranhos e inacessíveis, e, portanto, ela mente com toda a inocência.
A criança e o gatinho vão a quem lhes faz miminho.
Daqui a Vinte e Cinco Anos
Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a vinte e cinco anos. Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais vinte e cinco anos. Mas a impressão-desejo é a de que num futuro não muito remoto talvez compreendamos que os movimentos caóticos atuais já eram os primeiros passos afinando-se e orquestrando-se para uma situação económica mais digna de um homem, de uma mulher, de uma criança. E isso porque o povo já tem dado mostras de ter maior maturidade política do que a grande maioria dos políticos, e é quem um dia terminará liderando os líderes. Daqui a vinte e cinco anos o povo terá falado muito mais.
Mas se não sei prever, posso pelo menos desejar. Posso intensamente desejar que o problema mais urgente se resolva: o da fome. Muitíssimo mais depressa, porém, do que em vinte e cinco anos, porque não há mais tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e crianças são verdadeiros moribundos ambulantes que tecnicamente deviam estar internados em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se justificaria ser decretado estado de prontidão, como diante de calamidade pública. Só que é pior: a fome é a nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma.
Menina e Moça
Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.Às vezes recatada, outras estouvadinha,
Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;
Tem coisas de criança e modos de mocinha,
Estuda o catecismo e lê versos de amor.Outras vezes valsando, e* seio lhe palpita,
De cansaço talvez, talvez de comoção.
Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,
Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
Olha furtivamente o primo que sorri;
E se corre parece, à brisa enamorada,
Abrir asas de um anjo e tranças de uma huri.Quando a sala atravessa, é raro que não lance
Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar
Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
A cama da boneca ao pé do toucador;
A Violência Oculta
A primeira razão por que a violência maior actua de modo silencioso, e das poucas vezes que falamos dela falamos apenas da ponta do icebergue. Nós acreditamos que estamos perante fenómenos de violência apenas quando essa tensão assume proporções visíveis, quando ela surge como espectáculo mediático. Mas esquecemos que existem formas de violência oculta que são gravíssimas. Esquecemos, por exemplo, que todos os dias, no nosso país, são sexualmente violentadas crianças. E que, na maior parte das vezes, os agressores não são estranhos. Quem viola essas crianças são principalmente parentes. Quem pratica esse crime é gente da própria casa.
Nós temos níveis altíssimos de violência doméstica, em particular, de violência contra a mulher. Mas esse assunto parece ser preocupação de poucos. Fala-se disso em algumas ONGs, em alguns seminários. A Lei contra a violência doméstica ainda não foi aprovada na Assembleia da República.
Existem várias outras formas invisíveis de violência. Existe violência quando os camponeses são expulsos sumariamente das suas terras por gente poderosa e não possuem meios para defender os seus direitos. Existe uma violência contida quando, perante o agente corrupto da autoridade, não nos surge outra saída senão o suborno. Existe, enfim, a violência terrível que é o vivermos com medo.
A Cantiga do Optimismo
Não embarquem na cantiga do optimismo. Sempre que possível, vejam as coisas pelo lado ruim. Desejem o melhor, mas não deixem nunca de esperar o pior. E saibam que dois terços das conquistas do Homem se fizeram, mais do que pelo optimismo dos seus autores, em resultado do pessimismo dos vizinhos daqueles. Os compêndios irão contra vós. Dir-vos-ão que são cínicos, escapistas, pobres cultores da ideia de supremacia do mal sobre o bem, tristes conformistas destinados ao imobilismo e mais nada. Não acreditem. Se há uma coisa capaz de mover montanhas, é ter ao lado um sacana a dizer «Não consegues, pá, dês as voltas que deres não consegues» – e, aliás, nós próprios concordarmos com ele. Em todo o caso, o mal exerce efectivamente supremacia sobre o bem. Vocês sabem que as crianças choram antes de rir – e que. muito antes de aprenderem o potencial sedutor de um sorriso, já conhecem as virtudes chantagísticas de uma boa gritaria.
Não pensem que o método é meu. Insinuou-o Voltaire, no seu Candide, à revelia dos optimistas taralhoucos que vieram antes e depois dele, como Leibniz ou Godwin. Gramsci tratou da exegese. O verdadeiro segredo? O verdadeiro método? «É preciso atrair violentamente a atenção para o presente do modo como ele é.
A Armadilha da Identidade
A mais perigosa armadilha é aquela que possui a aparência de uma ferramenta de emancipação. Uma dessas ciladas é a ideia de que nós, seres humanos, possuímos uma identidade essencial: somos o que somos porque estamos geneticamente programados. Ser-se mulher, homem, branco, negro, velho ou criança, ser-se doente ou infeliz, tudo isso surge como condição inscrita no ADN. Essas categorias parecem provir apenas da Natureza. A nossa existência resultaria, assim, apenas de uma leitura de um código de bases e nucleótidos.
Esta biologização da identidade é uma capciosa armadilha. Simone de Beauvoir disse: a verdadeira natureza humana é não ter natureza nenhuma. Com isso ela combatia a ideia estereotipada da identidade. Aquilo que somos não é o simples cumprir de um destino programado nos cromossomas, mas a realização de um ser que se constrói em trocas com os outros e com a realidade envolvente.
A imensa felicidade que a escrita me deu foi a de poder viajar por entre categorias existenciais. Na realidade, de pouco vale a leitura se ela não nos fizer transitar de vidas. De pouco vale escrever ou ler se não nos deixarmos dissolver por outras identidades e não reacordarmos em outros corpos,
Sai da mão de Deus que a contempla
antes de criá-la, como uma criança
que chora e ri sem verdadeiro motivo,
a alma ingénua que tudo ignora,
excepto quando, movida pelo desejo de retornar a Ele,
segue de bom grado o que a diverte.
Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante horas, é a isso que é preciso chegar. Estar só, como a criança está só.