O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir ao que amo. (…) Quero não ver mais estes rostos, estes hábitos e estes dias.
Passagens sobre Dia
2705 resultadoslâmpada votiva
1. teve longa agonia a minha mãe
teve longa agonia a minha mãe:
seu ser tornou-se um puro sofrimento
e a sua voz apenas um lamento
sombrio e lancinante, mas ninguémpodia fazer nada, era novembro,
levou-a o sol da tarde quando a face
lhe serenou, foi como se acordasse
outra espessura dela em mim. relembrosombras e risos, coisas pequenas, nadas,
e horas graves da infância e idade adulta
que este silêncio oculta e desoculta
nessas pobres feições desfiguradas.quanta canção perdida se procura,
quanta encontrada em lágrimas murmura.2. e não queria ser vista e foi envolta
e não queria ser vista e foi envolta
num lençol branco em suas dobras leves,
pus junto dela algumas rosas breves
e a lembrança represa ficou soltae foi à desfilada. De repente,
a minha mãe já não estava morta:
era o vulto que à noite se recorta
na luz do corredor, se está doentealgum de nós, a mão que pousa e traz
algum sossego à fronte,
Envelhecem os Anos
Envelhecem os anos, mas nunca os meses
com seu crédito de imagens para quem morre
ou vive. É o título de quem se ergue pelos dentes
mais que o riso nesse colar de sonhos ao fim das tardes.
Aqui a coisa alheia tem a metade do já sentido
e não pode parar no mundo.É que alguém não dá tempo ao coração
e solitário bate na coisa dura de sempre.
Há horas antigas agora: teu destino indeclinável,
um jogo antigo de olhos com lágrimas prontas desde o início
e adiante a demora dos ausentes, o universo fechado
em sua idade. Tu te juntas e deixas a monótona vidaexagerar a fé, estimular o preço num feriado
de diferenças. Então a natureza nesse dia de chuva fina,
ela e o vidro da janela que se turva,
tenta o início e arrasta os desejos da existência.
Ciúme
Vão decorrendo as horas, vão-se os dias,
Mas como outrora ela não vem. Ciúme?
Olho em redor de mim, meu pobre lume,
São tudo cinzas mortas, cinzas frias.Bateu o relógio as horas do costume,
E tu não vens, já não te vejo mais…
Dos nossos dias, vivos, triunfais,
Só restam coisas mortas e sombrias.Não sei que mágoa e dor meus olhos cobre.
Sinto que alguém morreu dentro de mim.
Bate o relógio as horas, como um dobre,
A dizer, a dizer: tudo tem fim.Vai a tarde a morrer, e um frio imenso
Cai sobre mim como um Pólo de gelo.
Junto de ti, quem estará, eu penso,
A beijar, em silêncio, o teu cabelo?Nessas tardes, assim, vagas, sensuais,
Eu não quero pensar um só momento.
Se foram minhas, hoje são dos mais…
Deixo-as morrer no frio esquecimento.
É aquele ódio surdo, contra tudo e todos. Aquele ódio às vezes recolhido por dentro, como um animal selvagem, trancado no quarto o dia inteiro, sem fazer nada, sem pensar nada, concentrado em odiar um ódio puro, que se acumulava sem encontrar um objeto onde pudesse descarregar-se.
Tudo o que vivemos no dia a dia é marcado pelas incertezas do presente.
Combater é uma Diminuição
Combater é, em termos absolutos, uma diminuição. O homem, quer defenda a pátria, quer defenda as ideias, desde que passa os dias aos tiros ao vizinho, mesmo que o vizinho seja o monstro dos monstros, está a perder grandeza. Sempre que por qualquer motivo a razão passou a servir a paixão, houve um apoucamento do espirito, e é difícil que o espírito se salve num processo onde ele entra diminuído. Mas quando numa comunidade alguém endoidece e desata a ferir a torto e a direito, é preciso dominar o possesso de qualquer forma, e a guerra é fatal. Então, embora sabendo que vai empobrecer a sua alma, o homem normal começa a lutar, e só a morte ou o triunfo o podem fazer parar. É trágico, mas é natural. O que é contra todas as leis da vida é ficar ao lado da contenda como espectador. Sendo uma diminuição combater, é uma traição sem nome lavar as mãos do conflito, e passar as horas de binóculo assestado a contemplar a desgraça do alto dum monte. Assim é que nada se salva. Fica-se homem sem qualquer sentido, manequim vestido de gente, coisa que não tem personalidade. Porque nem se representa a inteligência,
Marat
Foia a alma cruel das barricadas!…
Misto de luz e lama!… se ele ria,
As púrpuras gelavam-se e rangia
Mais de um trono, se dava gargalhadas!…Fanático da luz… porém seguia
Do crime as torvas, lívidas pisadas.
Armava, à noite, aos corações ciladas,
Batia o despotismo à luz do dia.No seu cérebro tremente negrejavam
Os planos mais cruéis e cintilavam
As idéias mais bravas e brilhantes.Há muito que um punhal gelou-lhe o seio.
Passou… deixou na história um rastro cheio
De lágrimas e luzes ofuscantes.
Os padres querem casar. Mas quem trai um celibato de 2 mil anos há de trair um casamento em quinze dias.
Alimentar-me de Ti
De alimentar-me de Ti como Jonas do ventre da baleia
De inserir-me em teus braços chicoteados de infinitos horizontes
De beijar-Te o rosto como a uma chaga de luz
De amar-Te de um amor qual nunca amado
Na humana carne em que temerário confio
Por uma humanidade possível que o impossível não desmente
Aceito inscrever-me a fogo no teu Rosto
E ser vomitado ao fim do terceiro dia
Na cruz de sol de todos os milénios futuros
Um edifício para ser forte deve ser construído com esmero, tijolo a tijolo, não se descuidando dos pequenos detalhes. Assim também é o amor. Para ser forte deve ser construído dia a dia, nos atos, nos gestos e nas pequenas nuances da convivência.
Controlar a Timidez
Nunca consegui controlar a timidez. Quando tive que enfrentar em carne viva a incumbência que nos deixou o pai errante, aprendi que a timidez é um fantasma invencível. De cada vez que tinha que solicitar um crédito, mesmo dos combinados de antemão em lojas de amigos, demorava horas em redor da casa, reprimindo a vontade de chorar e as contracções da barriga, até que me atrevia por fim, com as mandíbulas tão apertadas que não me saía a voz. Havia sempre algum comerciante sem coração para me atrapalhar ainda mais: «Miúdo parvo, não se pode falar com a boca fechada.» Mais de uma vez regressei a casa com as mãos vazias e uma desculpa inventada por mim. Mas nunca mais tornei a ser tão desgraçado como da primeira vez que quis falar pelo telefone na loja da esquina. O dono ajudou-me com a operadora, pois ainda não existia o serviço automático. Senti o sopro da morte quando me deu o auscultador. Esperava uma voz serviçal e o que ouvi foi o latido de alguém que falava no escuro ao mesmo tempo que eu. Pensei que o meu interlocutor também não me ouvia e levantei a voz tanto quanto pude. O outro,
Soneto II
Quanto cuido, senhora, quanto escrevo,
Tudo em vossos fermosos olhos leio,
Neles, ante quem tudo é escuro e feio,
Aprendo e vejo como amar-vos devo.Vejo que ao vosso amor todo me devo,
Mas não vos sei amar, e assi me enleio
Que não sei se vos amo ou se o receio,
E a julgar em mim isto não me atrevo.Em vós cuido, em vós falo o dia e ora,
Mouro por ver-vos, ir-vos ver não ouso,
Por não ver quanto mais devo do que amo;Ó sol e ó. sombra o vosso nome chamo,
Fora destes cuidados não repouso;
Se isto é amor, vós o julgai, senhora!
Em Ti como nos Outros Creio
Não a Ti, Cristo, odeio ou te não quero.
Em ti como nos outros creio deuses mais velhos.
Só te tenho por não mais nem menos
Do que eles, mas mais novo apenas.Odeio-os sim, e a esses com calma aborreço,
Que te querem acima dos outros teus iguais deuses.
Quero-te onde tu stás, nem mais alto
Nem mais baixo que eles, tu apenas.Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia
Como tu, um a mais no Panteão e no culto,
Nada mais, nem mais alto nem mais puro
Porque para tudo havia deuses, menos tu.Cura tu, idólatra exclusivo de Cristo, que a vida
É múltipla e todos os dias são diferentes dos outros,
E só sendo múltiplos como eles
‘Staremos com a verdade e sós.
As suas reflexões não eram pensamentos, o seu sono não era repouso. De dia não era um homem, de noite não era um homem adormecido.
A Lua não fica cheia em um só dia.
A Actualidade em Poesia
Uma coisa é poesia actual, outra coisa é actualidade em poesia. A actualidade em poesia compreende um tempo específico, que não só não é o tempo subordinado ao espaço no qual o poeta se move, como até entra em conflito com este.
Fazer poesia actual não é escrever versos destinados a terem êxito na actualidade representada pelo público e pela critica, porque esta é o atraso de um tempo de que o poeta é o avanço. Suspeito é o poeta sempre que agradavelmente afeiçoa os seus versos a uma comum sensibilidade literária. Não estou fazendo o elogio da poesia obscura ou ambiciosamente original. O gosto literário de uma época pode ser precisamente a obscuridade e a originalidade. É o que acontece com a nossa. E neste caso originalidade como recurso é poeticamente estéril, porque não fascina mas apenas satisfaz. Nada menos original do que a acomodatícia originalidade da poesia dos nossos dias e também nada menos actual por isso mesmo. Quer um exemplo? A última poesia feita com excrescências do Surrealismo execrado pelos seus parasitas. Nalguns casos é uma sufocada montagem de imagens achadas no cesto dos papéis do Surrealismo. Proclama-se uma renovação morfológica investindo de maior poder a palavra,
O amor é a vida. Enquanto as artérias pulsam, e a refracção da beleza corisca nos olhos, por mais cansados de lágrimas que sejam; enquanto o homem tem energia nas angústias, e saudade tormentosa que o volta para um amor passado; o coração não está morto; as pálpebras não descaem sobre os olhos que se apascentam no belo: o ideal, que se anuvia em remotas regiões, rasga um dia a fantástica mortalha, e caminha diante do proscripto da felicidade como a columa luminosa do deserto.
Dois Rumos
Mentir, eis o problema:
minto de vez em quando
ou sempre, por sistema?Se mentir todo dia,
erguerei um castelo
em alta serraniacontra toda escalada,
e mais ninguém no mundo
me atira seta ervada?Livre estarei, e dentro
de mim outra verdade
rebrilhará no centro?Ou mentirei apenas
no varejo da vida,
sem alívio de penas,sem suporte e armadura
ante o império dos grandes,
frágil, frágil criatura?Pensarei ainda nisto.
Por enquanto não sei
se me exponho ou resisto,se componho um casulo
e nele me agasalho,
tornando o resto nulo,ou adiro à suposta
verdade contingente
que, de verdade, mente.
O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só de esperas, me guardando na casa velha por dias inteiros; era um tempo também de sobressaltos, me embaralhando ruídos, confundindo minhas antenas, me levando a ouvir claramente acenos imaginários, me despertando com a gravidade de um julgamento mais áspero.