A Mulher por quem Esperara tantos Anos
Alguma coisa dentro dele voltou a si. Foi como se, de repente, estivessem efectivamente ali os dois. E, reacendendo a luz, encostou os lábios aos dela e sentiu, enfim, o calor que deles se emitia, e o sabor da sua boca, e o seu cheiro, e teve consciência de que aquela que se deitava na cama consigo não era apenas uma mulher bela, mas uma mulher, a mulher por quem esperara tantos anos.
Tiraram ambos o que lhes restava de roupa, lançando-a ao chão, e tocaram-se suavemente. Havia uma admiração entre eles, como se se descobrissem, e todavia era também tal qual se conhecessem de há muito, as superfícies mais sadias como as primeiras rugosidades dos seus corpos.
Tacteavam-se devagar, atentos às luzes e às sombras de cada recanto que esquadrinhavam, e ao fim de alguns momentos beijavam-se de novo, ele abraçando-a na sua totalidade, açambarcando-a, e ela sorrindo por entre o vento da noite, a chuva e os terramotos sorrindo com ela, e a humidade salgada dos seus peitos, e o mar que se atirava furioso contra aquela terra, e o primeiro suor do seu pescoço.
A partir daí, o mundo desapareceu. E havia medo e alegria,
Passagens sobre Dois
1685 resultadosCada Coisa a seu Tempo Tem seu Tempo
Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,E casuais, interrompidas, sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do Sol) —Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falemDas flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamosNesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
Meu estado de espírito sintetiza estes dois sentimentos [otimismo e pessimismo] e os supera: sou pessimista com a inteligência, mas otimista com a vontade. Em cada circunstância, penso na hipótese pior, para pôr em movimento todas as reservas de vontade e ser capaz de abater o obstáculo.
Existem dois diabos, só que um parou na pista. Um deles é o do toque, o outro, é aquele, é do exorcista.
No coração do homem, não há lugar para duas paixões ao mesmo tempo.
Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras, mas só há duas nações – a dos vivos e dos mortos.
Agimos Sempre no Sentido do Destino
No fundo, a sabedoria do destino é a nossa própria. Porque a acompanhamos com uma consciência incessante daquilo que, no fundo, nos é permitido fazer. Podemos estar sujeitos a algumas tentações mas nunca nos enganamos. Agimos sempre no sentido do destino. As duas coisas formam uma só.
Quem se engana é porque ainda não compreende o seu destino. Quer dizer, não compreende qual a resultante de todo o seu passado – o qual lhe indica o futuro. Mas quer o compreenda ou não, indica-lho à mesma. Cada vida é aquilo que devia ser.
Prefiro cair do céu a cair de um prédio de dois andares.
Existem duas maneiras de lidar com uma mulher, e ninguém as conhece.
O progresso roda constantemente sobre duas engrenagens. Faz andar uma coisa esmagando sempre alguém.
Quando me pergunto porque escrevo eu respondo: para me familiarizar com os deuses que eu não tenho. Os meus antepassados estão enterrados em outro lugar distante, algures no Norte de Portugal. Eu não partilho de sua intimidade e, mais grave ainda, eles me desconhecem inteiramente. As duas partes de mim exigiam um médium, um tradutor. A poesia veio em meu socorro para criar essa ponte entre dois mundos. E a cidade, a minha casa, a minha família: esses foram os aconchegos em que a poesia em mim nasceu.
A imaginação e o recolhimento são duas doenças de que ninguém tem piedade.
A Esperança é o Bordão da Vida
A esperança é o bordão da vida. Há uma coisa do Padre Vieira, muito bonita, em que ele fala do Non. Terrível palavra é o non, de qualquer lado por onde se pegue, é sempre Non – isto aparece no meu filme “Non ou a vã glória de mandar”, dito por esse grande actor, o Ruy de Carvalho. A última palavra do Vieira sobre Non é: “O Non tira a esperança, que é a última coisa que a natureza deixou ao homem”. Sem esperança não se pode viver.
[A esperança e o desejo são o que nos impele a fazer, prosseguir. Mas não é supremamente difícil mantê-los vivos?]
O desejo não nos impele para existir. O desejo impele para a continuidade da espécie. O que nos impele à existência é o que diz o maia, “come para viveres”, e isso é a fome. A fome é o que nos garante a subsistência. Se não tivéssemos fome, não comíamos, não comendo, não sobrevivíamos. Se não tivéssemos o desejo, não teríamos a relação sexual e a relação sexual é que garante a continuidade da espécie. O desejo é uma coisa, a fome é outra. São os dois para a continuidade: um para a continuidade do indivíduo,
Quatro olhos vêem mais que dois.
Barganha
Domingo é dia de barganha.
Troco um relógio dos antigos
por um cavalo rosilho,
um bode por um trinca-ferro,
e uma roda de cabriolé
por um radinho de pilha.
Troco um gibão de cigano
pela serra que serrou
o tronco mais odorante
e por um fogão de lenha
troco um cachorro de caça
e uma panela de cobre.
Troco toda a luz do sol
pela sombra de um só pássaro.
Por uma espingarda troco
um tacho que foi de escravos
além de um almofariz
e uma xícara sem asa.
Troco a salmoura dos peixes
por qualquer gosto de lágrima.
Pela vitrola rachada
dou a minha bicicleta
com os pneus arriados.
Troco o entulho que restou
do muro que derrubei
pelo calor da fogueira
que por uma noite apenas
negou o frio dos pobres.
Troco um lençol de noivado
e uma toalha bordada
pela sua reflectida
na escuridão das cisternas.
Troco o meu selim de couro
por um arreio de prata.
Dou um caminhão de pedra
por um portão de peroba.
Os Únicos Casamentos Felizes
É evidente que os únicos casamentos felizes são os de conveniência, funcionam às mil maravilhas, sem conflitos, porque cada um sabe que a realização das suas ambições depende da aliança com o outro. Dá gosto ver como trabalham em equipa os casais que entenderam essa ideia (casamento = sociedade limitada). Desenvolvem-se como uma empresa, apoiando-se um ao outro sem hesitar, cada um deles especializado numa determinada atividade para obterem o máximo rendimento do seu investimento, pois sabem que os ganhos de um beneficiarão os dois. As discussões em público, as desavenças, os anúncios de separação fazem cair as ações da bolsa social e prejudicam a economia doméstica, há que evitar toda essa merda que os jovens e alguns imbecis publicitam aos quatro ventos, sem se darem conta de que estão a desvalorizar-se. Acreditam no amor e no desamor, na traição e no ciúme, sem entenderem que, quando se mete de permeio isso a que os romances e as revistas cor-de-rosa chamam amor, está tudo fodido. É o fim da paz. Quando alguém te diz que te amará para sempre, a história já começou a meter água. O montanhista não pode ficar eternamente parado no cume que conquistou. Já alcançou o topo.
O Primeiro Beijo
Durante todas as noites desse verão, as estrelas foram líquidas no céu. Quando eu as olhava, eram pontos líquidos de brilho no céu. Na primeira vez, encontrámo-nos durante o dia: eu sorri-lhe, ela sorriu-me. Dissemos duas ou três palavras e contivemo-nos dentro dos nossos corpos. Os olhos dela, por um instante, foram um abismo onde fiquei envolto por leveza luminosa, onde caía como se flutuasse: cair através do céu dentro de um sonho.
Naquela noite, fiquei a esperá-la, encostado ao muro, alguns metros depois da entrada da pensão. As pessoas que passavam eram alegres. Eu pensava em qualquer coisa que me fazia sentir maior por dentro, como a noite. As folhas de hera que cobriam o cimo do muro, e que se suspendiam sobre o passeio, eram uma única forma nocturna, feita apenas de sombras. Primeiro, senti as folhas de hera a serem remexidas; depois, vi os braços dela a agarrarem-se ao muro; depois, o rosto dela parado de encontro ao céu claro da noite. E faltou uma batida ao coração.
O mundo parou. Sombras pousavam-lhe, transparentes, na pele do rosto. O ar fresco, arrefecido, moldava-lhe a pele do rosto. E o mundo continuou. Ajudei-a a descer.
É preciso que eu suporte duas ou três lagartas se quiser conhecer as borboletas
Conquistar longevidade numa relação a dois, significa relevar pequenos defeitos e ajudar a corrigir defeitos maiores. O resultado é a sinergia mútua e a construção de uma família coesa e feliz.
Amo-te com Toda a Loucura dos Meus Primeiros Anos
Meu anjo, minha vida, que sei eu mais? Amo-te com toda a loucura dos meus primeiros anos. Volto a ser para ti o irmão da Amélie; esqueço tudo desde que tu consentiste que eu caísse a teus pés. Sim, espero-te à beira mar, onde tu quiseres, muito longe do Mundo. Enlacei finalmente esse sonho de felicidade que há tanto tempo persigo. Foi a ti que eu adorei tanto tempo antes de te conhecer. Serás a minha vida; verás o que ninguém poderá saber senão após a minha morte; depositá-lo-ei nas mãos daquele que virá depois de nós. Acolhe tudo o que aqui ponho para ti. Amanhã às duas horas serei eu quem irá pedir-to.