A Piedade
A piedade é um sentimento natural, que, moderando em cada indivíduo a actividade do amor de si próprio, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz; é ela que impede todo o selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho enfermo a sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça raciocinada, faz a outrem o que queres que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente: faz o teu bem com o menor mal possível a outrem. Em uma palavra, é nesse sentimento natural, mais do que em argumentos subtis, que é preciso buscar a causa da repugnância que todo o homem experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das máximas da educação. Embora possa competir a Sócrates e aos espíritos da sua têmpera adquirir a virtude pela razão,
Passagens sobre Espécies
599 resultadosTrabalho e Descanso na Justa Medida
A mente não se deve manter sempre na mesma intenção ou tensão, antes deve dar-se também à diversão. Sócrates não se envergonhava de brincar com as crianças, Catão aliviava com vinho o seu ânimo fatigado dos cuidados públicos e Cipião dançava com aquele corpo triunfante e militar (…) O nosso espírito deve relaxar: ficará melhor e mais apto após um descanso. Tal como não devemos forçar um terreno agrícola fértil com uma produtividade ininterrupta que depressa o esgotaria, também o esforço constante esvaziará o nosso vigor mental, enquanto um curto período de repouso restaurará o nosso poder. O esforço continuado leva a um tipo de torpor mental e letargia. Nem os desejos dos homens devem encaminhar-se tão depressa nesta direcção se o desporto e o jogo os envolvem numa espécie de prazer natural; embora uma repetida prática destrua toda a gravidade e força do nosso espírito. Afinal, o sono também é essencial para nos restaurar, mas se o prolongássemos constantemente, dia e noite, seria a morte.
Amor Comparado
Queres ter uma ideia do amor, vê os pardais do teu jardim; vê os teus pombos; contempla o touro que se leva à tua vitela; olha esse orgulhoso cavalo que dois valetes teus conduzem à égua em paz que o espera, e que desvia a cauda para recebê-lo; vê como os seus olhos cintilam; ouve os seus relinchos; contempla os seus saltos, camabalhotas, orelhas eriçadas, boca que se abre com pequenas convulsões, narinas que se inflam, sopro inflamado que delas sai, crinas que se revolvem e flutuam, movimento imperioso com o qual o cavalo se lança para o objecto que a natureza lhe destinou; mas não tenhas inveja, e pensa nas vantagens da espécie humana: elas compensam com amor todas as que a natureza deu aos animais, força, beleza, ligeireza, rapidez. Há até mesmo animais que não sabem o que é o gozo. Os peixes escamados são privados dessa doçura: a fêmea lança no lodo milhões de ovos; o macho que os encontra passa sobre eles e fecunda-os com a sua semente, sem saber a que fêmea eles pertencem. A maior parte dos animais que copulam só têm prazer por um sentido; e, assim que esse apetite é satisfeito, tudo se extingue.
Fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca.
Porquê Camuflar as Nossas Convicções?
Desde que nos propomos emitir uma verdade de acordo com as nossas convicções damos logo a impressão de fazer retórica. Que espécie de prestidigitação vem a ser essa? Como é que nos nossos dias não poucas verdades, proferidas que sejam, por vezes, mesmo em tom patético, imediatamente ganham aspectos retóricos? Porquê é que na nossa época cada vez há mais necessidade, quando pretendemos dizer a verdade, de recorrer ao humor, à ironia, à sátira? Porquê adoçar a verdade como se se tratasse de uma pílula amarga? Porquê envolver as nossas convicções num misto de altiva indiferença, digamos, de desprezo para com o público? Numa palavra, porquê certo ar de pícara condescendência? Em nossa opinião, o homem de bem não tem de envergonhar-se das suas convicções, ainda mesmo que estas transpareçam sob a forma retórica, sobretudo se está certo delas.
A Nulidade como Ideal
A nulidade exige ordem. Tem necessidade de uma hierarquia, de meios de pressão, de agentes e de uma finalidade que se confunda consigo própria. Para manter o ser humano no seu nível mais baixo, onde não corre o risco de fazer ondas, nada melhor que uma organização estruturada com níveis de poder e peões disciplinados capazes de os exercer. Qualquer estrutura deste tipo aguenta-se de pé devido à convicção geral de que não é necessário explicar para se ser obedecido, nem compreender para obedecer. A verdade difunde-se por si só de cima para baixo pelo mero efeito do ascensor hieráriquico. A eficácia é proporcional ao grau de complexidade graças ao qual é mantida a ilusão de uma certa liberdade em todos os níveis de comando.
Quanto mais insignificantes são as engrenagens humanas, mais fácil é convencê-las da sua falsa autonomia. As nulidades fornecem as melhores engrenagens, associando o máximo de inércia intelectual ao máximo de aplicação no exercício de uma ditadura sobre a pequena porção de poder que lhes cabe. Essas estruturas, onde todos têm razão quando estão acima e não a têm quando estão abaixo, realizam uma espécie de ideal humano feito de equilíbrio entre arrogância e humildade.
Um assunto por resolver é uma espécie de máquina do tempo de apenas um botão e que te permite unicamente regressar ao passado e multiplicá-lo infinitas vezes no teu presente.
Sinto de vez em quando uma infelicidade que quase me deslumbra, e ao mesmo tempo estou convencido da sua necessidade e da existência de um alvo em direcção ao qual nos encaminhamos ao suportar toda a espécie de infelicidade.
Não há Nada Tão Enjoativo Quanto a Abundância
O amor bem nutrido e excessivamente submisso logo nos enjoa e cansa, como o excesso de uma iguaria agradável cansa o estômago (Ovídio). Julgam que os meninos de coro têm grande prazer com a música? A saciedade toma-a antes tediosa. Os festins, as danças, as mascaradas, os torneios alegram os que não os vêem amiúde e que desejaram vê-los; mas para quem o faz habitualmente o seu gosto torna-se insípido e desagradável; também as mulheres não excitam aquele que delas desfruta à saciedade. Quem não se dá tempo para sentir sede não poderia ter prazer em beber. As farsas dos saltimbancos divertem-nos, mas para os actores servem de obrigação. E a prova disso é que para os príncipes são delícias, é festa poderem às vezes travestir-se e descer à forma de vida baixa e popular, frequentemente aos grandes apraz mudar; e refeições frugais e asseadas sob o tecto de um pobre, sem tapete nem púrpura, desenrugaram-lhes a fronte inquieta (Horácio).
Não há nada tão incómodo, tão enjoativo quanto a abundância. Que apetite não se repugnaria ao ver trezentas mulheres à sua mercê, como as que tem o grande senhor no seu serralho? E que prazer e que espécie de caçada buscara aquele ancestral seu que nunca ia para os campos com menos de sete mil falcoeiros?
As expectativas são uma espécie de verdade de primeira classe: se as pessoas acreditarem, é verdade.
O místico é aquele que descobre que não pode deixar de caminhar. Seguro daquilo que lhe falta, percebe que cada lugar por onde passa é ainda provisório e que a demanda continua. Não pode ser só isto. E essa espécie de excesso que é o seu desejo, fá-lo exceder, atravessar e perder os lugares.
A grandeza da oração reside principalmente no facto de não ter resposta, do que resulta que essa troca não inclui qualquer espécie de comércio.
O Inseguro
A eterna canção: Que fiz durante o ano, que deixei de fazer, por que perdi tanto tempo cuidando de aproveitá-lo? Ah, se eu tivesse sido menos apressado! Se parasse meia hora por dia para não fazer absolutamente nada — quer dizer, para sentir que não estava fazendo coisas de programa, sem cor nem sabor. Aí, a fantasia galopava, e eu me reencontraria como gostava de ser; como seria, se eu me deixasse…
Não culpo os outros. Os outros fazem comigo o que eu consinto que eles façam, dispersando-me. Aquilo que eu lhes peço para fazerem: não me deixarem ser eu-um. Nem foi preciso rogar-lhes de boca. Adivinharam. Claro que eu queria é sair com eles por aí, fugindo de mim como se foge de um chato. Mas não foi essa a dissipação maior. No trabalho é que me perdi completamente de mim, tornando-me meu próprio computador. Sem deixar faixa livre para nenhum ato gratuito. Na programação implacável, só omiti um dado: a vida.Que sentimento tive da vida, este ano? Que escavação tentei em suas jazidas? A que profundidade cheguei? Substituí a noção de profundidade pela de altura. Não quis saber de minerações. Cravei os olhos no espaço,
Mais umas poucas Dúzias de Homens Ricos
Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai estradas, fazeis caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como tendes feito esta que Deus nos deu tão diferente do que a que hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar a miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? – Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já devia andar orçado o número de almas que é preciso vender ao diabo, número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro, seja o que for: cada homem rico,
Há uma espécie de prazer na lamentação, e maior do que aquilo que se pensa.
A pluralidade e a maior ou menor exactidão das notícias, em grande parte contribuídas pelo desejo um pouco mórbido de correspondentes e de público de se referir ao que de mais trágico sucede no mundo, veio mostrar como na realidade, e se excluirmos três ou quatro pontos onde, se não pesquisarmos muito, uma certa luz existe, o resto do globo é uma espécie de selva onde campeiam à vontade miséria, fome, doença e, como mais terrível de todos os males, o desespero.
Atualmente, grande parte das pessoas morre de uma espécie de senso comum arrepiante, e, quando é demasiado tarde, chega à conclusão de que as únicas coisas de que nunca nos arrependemos são os nossos erros.
As Necessidades Reais São Muito Poucas
Os apetites são ou naturais e necessários, como o beber e comer; ou naturais e não necessários, como a intimidade com as mulheres; ou não são nem naturais, nem necessários: desta última espécie são quase todos os dos homens; são todos supérfluos e artificiais, pois é admirável quão pouco é necessário à natureza para se contentar, quão pouco ela nos deixou para desejar.
Estão a aparecer toda a espécie de erros de computador. Haviam de ficar admirados se soubessem a quantidade de médicos que dizem que estão a tratar homens grávidos.
Deixai a Vida aos Crentes Mais Antigos
Vós que, crentes em Cristos e Marias,
Turvais da minha fonte as claras águas
Só para me dizerdes
Que há águas de outra espécieBanhando prados com melhores horas
Dessas outras regiões pra que falar-me
Se estas águas e prados
São de aqui e me agradam?Esta realidade os deuses deram
E para bem real a deram externa.
Que serão os meus sonhos
Mais que a obra dos deuses?Deixai-me a Realidade do momento
E os meus deuses tranqüilos e imediatos
Que não moram no Vago
Mas nos campos e rios.Deixai-me a vida ir-se pagãmente
Acompanhada pelas avenas tênues
Com que os juncos das margens
Se confessam de Pã.Vivei nos vossos sonhos e deixai-me
O altar imortal onde é meu culto
E a visível presença
Os meus próximos deuses.Inúteis procos do melhor que a vida,
Deixai a vida aos crentes mais antigos
Que a Cristo e a sua cruz
E Maria chorando.Ceres, dona dos campos, me console
E Apolo e Vênus,