Saudades Trágico-Marítimas
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Na praia, de bruços,
fico sonhando, fico-me escutando
o que em mim sonha e lembra e chora alguém;
e oiço nesta alma minha
um longínquo rumor de ladainha,
e soluços,
de além…Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
São meus Avós rezando,
que andaram navegando e que se foram,
olhando todos os céus;
são eles que em mim choram
seu fundo e longo adeus,
e rezam na ânsia crua dos naufrágios;
choram de longe em mim, e eu oiço-os bem,
choram ao longe em mim sinas, presságios,
de além, de além…Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Naufraguei cem vezes já…
Uma, foi na nau S. Bento,
e vi morrer, no trágico tormento,
Dona Leonor de Sá:
vi-a nua, na praia áspera e feia,
com os olhos implorando
– olhos de esposa e mãe –
e vi-a, seus cabelos desatando,
cavar a sua cova e enterrar-se na areia.
– E sozinho me fui pela praia além…
Exclamativos
2657 resultadosAve Dolorosa
Ave perdida para sempre – crença
Perdida – segue a trilha que te traça
O Destino, ave negra da Desgraça,
Gêmea da Mágoa e núncia da Descrença!Dos sonhos meus na Catedral imensa
Que nunca pouses. Lá, na névoa baça
Onde o teu vulto lúrido esvoaça,
Seja-te a vida uma agonia intensa!Vives de crenças mortas e te nutres,
Empenhada na sanha dos abutres,
Num desespero rábido, assassino…E hás de tombar um dia em mágoas lentas,
Negrejadas das asas lutulentas
Que te emprestar o corvo do Destino!
O Estilo é um Reflexo da Vida
Qual a causa que provoca, em certas épocas, a decadência geral do estilo ? De que modo sucede que uma certa tendência se forma nos espíritos e os leva à prática de determinados defeitos, umas vezes uma verborreia desmesurada, outras uma linguagem sincopada quase à maneira de canção? Porque é que umas vezes está na moda uma literatura altamente fantasiosa para lá de toda a verosimilhança, e outras a escrita em frases abruptas e com segundo sentido em que temos de subentender mais do que elas dizem? Porque é que nesta ou naquela época se abusa sem restrições do direito à metáfora? Eis o rol dos problemas que me pões. A razão de tudo isto é tão bem conhecida que os Gregos até fizeram dela um provérbio: o estilo é um reflexo da vida! De facto, assim como o modo de agir de cada pessoa se reflecte no modo como fala, também sucede que o estilo literário imita os costumes da sociedade sempre que a moral pública é contestada e a sociedade se entrega a sofisticados prazeres. A corrupção do estilo demonstra plenamente o estado de dissolução social, caso, evidentemente, tal estilo não seja apenas a prática de um ou outro autor,
Ante Tamanhas Mudanças
Antre tamanhas mudanças,
que cousa terei segura?
Duvidosas esperanças,
tão certa desaventura…Venham estes desenganos
do meu longo engano, e vão,
que já o tempo e os anos
outros cuidados me dão.
Já não sou para mudanças,
mais quero üa dor segura;
vá crê-las vãs esperanças
quem não sabe o qu’aventura!
Está Cheio De Ti Meu Coração
Está cheio de ti meu coração
como a noite de estrelas está cheia,
tão cheia, que ao se olhar para a amplidão
o olhar de luz se inunda e se incendeia…Está cheio de ti meu coração
como de ondas o mar que o dorso alteia,
como a praia que estende sobre o chão
milhões de grãos do seu lençol de areia…Está cheio de ti meu coração,
como uma taça, erguida, transbordante,
num momento de amor e de emoção,– como o meu canto enquanto eu viva e eu cante
como o meu pensamento a todo instante
está cheio de ti meu coração!
Provençal
Em um solar de algum dia
Cheiinho de alma e valia,
Foi ali
Que ao gosto de olhos a viComo dantes inda vasto
Agora
Não tinha pombas nem mel.
E à opulência de outrora,
Esmoronado e já gasto,
Pedia mãos de alvenel.Foi ali
Que ao gosto de olhos a vi.O seu chapéu, que trazia
Do calor contra as ardências,
Era o que a pena daria
Num certo sabor e arrimo
Com jeitos de circunferências
A morrer todas no cimo.Davam-lhe franco nos ombros
As pontas do lenço branco:
E sem que ninguém as ouça,
Eram palavras da moça
Com a voz alta de chamar;Palavras feitas em gesto,
Igualzinho e manifesto,
Como um relance de olhar.E bela, fechada em gosto,
Fazia o seu rosto dela
A gente mestre de amar.Foi num solar de algum dia,
Cheiinho de alma e valia,
Que eu disse de mim para ela
Por este falar assim:Vem, meu amor!
Idílio
Praias, que banha o Tejo caudaloso:
Ondas, que sôbre a areia estais quebrando:
Ninfas, que ides escumas levantando:
Escutai os suspiros dum saüdoso.E vós também, ó côncavos rochedos,
Que dos ventos em vão sois combatidos,
Ouvi o triste som de meus gemidos,
já que de Amor calais tantos segredos.Ai, amada Tircéa, se eu pudera
os teus formosos olhos ver agora,
Que depressa o pesar, que esta alma chora,
No gôsto mais feliz se convertera!Oh, como então ficaras conhecendo
Quanto te amo, se visses a violência
Com que estão de meus olhos nesta ausência
Estas saüdosas lágrimas correndo!Tanto neste pesar, que estou sentindo,
O triste coração se desfalece,
e tanto me atormenta, que parece
Que ao sofrimento a alma vai fugindo.Mas oh, qual há de ser a crueldade
Deste terrível mal, em que ando envolto,
Se a qualquer parte, emfim, que os olhos volto,
Imagens estou vendo de saudade.
Inteligência, Dá-me o Nome Exacto das Coisas
Inteligência, dá-me
o nome exacto das coisas!
… Minha palavra seja
a própria coisa,
criada por minha alma novamente.Que por mim cheguem todos
os que não as conhecem, às coisas;
que por mim cheguem todos,
os que já as esquecem, às coisas;
que por mim cheguem todos
os próprios que as amam, às coisas…
Inteligência, dá-me
o nome exacto, e teu,
e seu, e meu, das coisas.Tradução de José Bento
O Albatroz
Às vezes no alto mar, distrai-se a marinhagem
Na caça do albatroz, ave enorme e voraz,
Que segue pelo azul a embarcação em viagem,
Num vôo triunfal, numa carreira audaz.Mas quando o albatroz se vê preso, estendido
Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado!
Que pena que ele faz, humilde e constrangido,
As asas imperiais caídas para o lado!Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Era grande e gentil, ei-lo o grotesco verme!…
Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,
Mutila um outro a pata ao voador inerme.O Poeta é semelhante a essa águia marinha
Que desdenha da seta, e afronta os vendavais;
Exilado na terra, entre a plebe escarninha,
Não o deixam andar as asas colossais!Tradução de Delfim Guimarães
Supremo Anseio
Esta profunda e intérmina esperança
Na qual eu tenho o espírito seguro,
A tão profunda imensidade avança
Como é profunda a idéia do futuro.Abre-se em mim esse clarão, mais puro
Que o céu preclaro em matinal bonança:
Esse clarão, em que eu melhor fulguro,
Em que esta vida uma outra vida alcança.Sim! Inda espero que no fim da estrada
Desta existência de ilusões cravada
Eu veja sempre refulgir bem pertoEsse clarão esplendoroso e louro
Do amor de mãe — que é como um fruto de ouro,
Da alma de um filho no eternal deserto.
Conhecimento sem Paixão seria Castrar a Inteligência
Como investigadores do conhecimento, não sejamos ingratos com os que mudaram por completo os pontos de vista do espírito humano; na aparência foi uma revolução inútil, sacrílega; mas já de si o querer ver de modo diverso dos outros, não é pouca disciplina e preparação do entendimento para a sua futura «objectividade», entendendo por esta palavra não a «contemplação desinteressada», que é um absurdo, senão a faculdade de dominar o pró e o contra, servindo-se de um e de outro para a interpretação dos fenómenos e das paixões. Acautelemo-nos pois, oh senhores filósofos!
Desta confabulação das ideias antigas acerca de um «assunto do conheciemnto puro, sem vontade, sem dor, sem tempo», defendamo-nos das moções contraditórias «razão pura», «espiritualidade absoluta», «conhecimento subsistente» que seria um ver subsistente em si próprio e sem órgão visual, ou um olho sem direcção, sem faculdades activas e interpretativas? Pois o mesmo sucede com o conhecimento: uma vista, e se é dirigida pela vontade, veremos melhor, teremos mais olhos, será mais completa a nossa «objectividade». Mas eliminar a vontade, suprimir inteiramente as paixões – supondo que isso fosse possível – seria castrar a inteligência.
Espiritualismo
I
Como um vento de morte e de ruína,
A Dúvida soprou sobre o Universo.
Fez-se noite de súbito, imerso
O mundo em densa e algida neblina.Nem astro já reluz, nem ave trina,
Nem flor sorri no seu aéreo berço.
Um veneno subtil, vago, disperso,
Empeçonhou a criação divina.E, no meio da noite monstruosa,
Do silêncio glacial, que paira e estende
O seu sudário, d’onde a morte pende,Só uma flor humilde, misteriosa,
Como um vago protesto da existência,
Desabroxa no fundo da Consciência.II
Dorme entre os gelos, flor imaculada!
Luta, pedindo um ultimo clarão
Aos sóis que ruem pela imensidão,
Arrastando uma auréola apagada…Em vão! Do abismo a boca escancarada
Chama por ti na gélida amplidão…
Sobe do poço eterno, em turbilhão,
A treva primitiva conglobada…Tu morrerás também. Um ai supremo,
Na noite universal que envolve o mundo,
Ha-de ecoar, e teu perfume extremoNo vácuo eterno se esvairá disperso,
Como o alento final d’um moribundo,
Como o último suspiro do Universo.
Que Hei De Fazer De Mim, Neste Quarto Sozinho
Que hei de fazer de mim, neste quarto sozinho
Apavorado, lancinado, corrompido
A solidão ardendo em meu corpo despido
E em volta apenas trevas e a imagem do carinho!Defendido, a me encher como um rio contido
E eu só, e eu sempre só! Ó miséria, ó pudor!
Vem, deita comigo, branco e rápido amor
Risca de estrelas cruéis meu céu perdido!Lança uma virgem, se lança, sobre esse quarto
Fá-la que monte no teu sórdido inimigo
E que o asfixie sob o seu púbis fartoMas que prazer é o teu, pobre alma vazia
Que a um tempo ordenha lágrimas contigo
E outras enxugas, fiéis lágrimas de agonia!
Meu Coração é um Enorme Estrado
Conclusão a sucata !… Fiz o cálculo,
Saiu-me certo, fui elogiado…
Meu coração é um enorme estrado
Onde se expõe um pequeno animálculo…A microscópio de desilusões
Findei, prolixo nas minúcias fúteis…
Minhas conclusões práticas, inúteis…
Minhas conclusões teóricas, confusões…Que teorias há para quem sente
O cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou ?Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou…
Conto de Fadas
Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, Amor!
E para as tuas chagas o unguento
Com que sarei a minha própria dor.Os meus gestos são ondas de Sorrento…
Trago no nome as letras de uma flor…
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento…Dou-te o que tenho: o astro que dormita,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é d’oiro, a onda que palpita.Dou-te comigo o mundo que Deus fez!
– Eu sou Aquela de quem tens saudade,
A Princesa do conto: “Era uma vez…”
Recusa
a Alberto de Serpa
Serei sempre um poeta provinciano.
Um poeta triste, esquivo,
Com medo de apertar a mão aos poetas da cidade
E de me sentar com eles
À mesa do Café.
Não falarei de minha poesia.
Não rimarei minha angústia
Com a solenidade de suas questões.
A poesia não está na discussão.
A poesia não está no não estar com este ou com aquele.
A poesia está em matar esta morte
Que anda dentro de nós
Para que a vida renasça.
A poesia está em gritar do alto dos arranha-céus
E das planuras e concavidades sertanejas
Que o mundo vai acabar
Que o mundo está maduro para o sangue
Que o mundo perverso e caótico vai vagar.
Serei sempre um poeta provinciano.
Um poeta esquivo defendendo sua solidão
De todos os truques de todos os ódios de todas as invejas.
Os poetas rendilheiros não perdoarão.
Os poetas vaidosos vão barafustar
E exigir a expulsão imediata
Do último vendilhão do Templo,
Em nome da religião,
Em nome da estética,
Em nome da dignidade amarfanhada,
Ó Noite, Coalhada nas Formas de um Corpo de Mulher
Ó noite, coalhada nas formas de um corpo de mulher
vago e belo e voluptuoso,
num bailado erótico, com o cenário dos astros, mudos
[e quedos.
Estrelas que as suas mãos afagam e a boca repele,
deixai que os caminhos da noite,
cegos e rectos como o destino,
suspensos como uma nuvem,
sejam os caminhos dos poetas
que lhes decoraram o nome.
Ó noite, coalhada nas formas de um corpo de mulher!
Esconde a vida no seio de uma estrela
e fá-la pairar, assim mágica e irreal,
para que a olhemos como uma lua sonâmbula.
O Sol Da Tarde
Aquela tarde em que eu estava em Roma,
aquela tarde com sol da manhã,
como ser só a tarde, se era a soma
do sol filtrado pela telha vã?Assim são sob o sol todas as tardes:
são clarões e janelas, são aromas,
e o silêncio que cala o vão alarde
da tarde que se estende sobre Roma.Sob o sol que declina, aqui estou
esperando que a noite caia em Roma
como um pálio que oculta o nada e a morte.Roma dos obeliscos e sarcófagos!
Depois de tanto sol e tanto vento
a noite desce e eu sou a noite e pó.
Sobra a Construção de Obras Duradouras
Quanto tempo
Duram as obras? Tanto
Quanto o preciso pra ficarem prontas.
Pois enquanto dão que fazer
Não ruem.Convidando ao esforço
Compensando a participação
A sua essência é duradoura enquanto
Convidam e compensam.As úteis
Pedem homens
As artísticas
Têm lugar pra a arte
As sábias
Pedem sabedoria
As destinadas à perfeição
Mostram lacunas
As que duram muito
Estão sempre pra cair
As planeadas verdadeiramente em grande
Estão por acabar.Incompletas ainda
Como o muro à espera da hera
(Esse esteve um dia inacabado
Há muito tempo, antes de vir a hera, nu!)
Insustentável ainda
Como a máquina que se usa
Embora já não chegue
Mas promete outra melhor.
Assim terá de construir-se
A obra pra durar como
A máquina cheia de defeitos.Tradução de Paulo Quintela
Hoje
Fiz anos hoje… Quero ver agora
Se este sofrer que me atormenta tanto
Me não deixa lembrar a paz, o encanto,
A doce luz de meu viver de outr’ora.Tão moça e mártir! Não conheço aurora,
Foge-me a vida no correr do pranto,
Bem como a nota de choroso canto
Que a noite leva pelo espaço em fora.Minh’alma voa aos sonhos do passado,
Em busca sempre d’esse ninho amado
Onde pousava cheia de alegria.Mas, de repente, num pavor de morte,
Sente cortar-lhe o vôo a mão da sorte…
Minha ventura só durou um dia.