Vozes Da Morte
Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte inda teremos filhos!
Passagens sobre Filhos
824 resultadosCalçada de Carriche
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
A pena pior, minha filha, não é a que se sente no momento, é a que se vai sentir depois, quando já não houver remédio, Diz-se que o tempo tudo cura, Não vivemos bastante para tirar-lhe a prova.
Vinho de boa cepa e filho de boa mãe.
Supremo Verbo
– Vai, Peregrino do caminho santo,
Faz da tu’alma lâmpada do cego,
Iluminando, pego sobre pego,
As invisíveis amplidões do Pranto.Ei-lo, do Amor o Cálix sacrossanto!
Bebe-o, feliz, nas tuas mãos o entrego…
És o filho leal, que eu não renego,
Que defendo nas dobras do meu manto.Assim ao Poeta a Natureza fala!
Enquanto ele estremece ao escutá-la,
Transfigurado de emoção, sorrindo…Sorrindo a céus que vão se desvendando,
A mundos que vão se multiplicando,
A portas de ouro que vão se abrindo!
Acreditei que Podia Dar-te um Céu para Brincares
Filho. Gostava que houvesse uma aragem qualquer que me explicasse esse teu sorriso e outra que te explicasse, sem te magoar, o meu silêncio. Gostava de aprender o trejeito dos teus lábios, a maneira dos teus olhos, e to lembrar quando tivesses a minha idade. Fui um dia a tua inocência. E dela ficou-me a grande inocência de acreditar.
Acreditei que podia dar-te um céu para brincares e que a vida seria o que nós quiséssemos. Assim. Bastaria querermos, esforçarmo-nos muito, trabalharmos, e teríamos então o que desejássemos. Não digo coisas majestosas, roupas bonitas ou charretes, mas comida, comida gostosa e bem temperada, e um cavalo de cartão novo, se por acaso esquecesses o teu no quintal numa noite de chuva. Acreditei que a felicidade dos teus olhos a sorrir podia voltar aos olhos da tua mãe, aos meus e perdurar intocada nos teus. Acreditei em tantas coisas. Sabes, aproximo-me da vila e o que me espera é morrer um pouco mais. Preferia que não o soubesses, mas infelizmente nem isso posso esconder-te, porque um dia, quando te contarem a história da tua vida, dir-te-ão que numa noite de estrelas, o teu pai foi à vila e levou uma sova;
Preguiça Corporal e Preguiça Espiritual
Há um trabalho servil, que é do corpo e para o corpo, embora a mente ajude, e um trabalho régio, que é da alma e para a alma, e quase ninguém exige às mãos. Há, portanto, uma preguiça corporal e outra espiritual, uma ou outra senhora de todos.
A primeira é dominada – não destruída – pela necessidade e pelo tédio; a outra, reforçada pela arrogância, raramente é vencida. Os homens são indolentes que trabalham contra a vontade com os braços e a inteligência para fugir ao trabalho mais difícil da alma.
As actividade imoderadas de muitos não passam de pretextos da ociosidade espiritual. Em vez de se afadigarem para conseguir a renúncia dos bens materiais, sujeitam-se a um trabalho totalmente exterior que por vezes se converte, devido a inércia ou embriaguez, em frenesim.
Mas reformar a natureza doente e transviada, abandonar a senda da concupiscência e alcançar a liberdade serena dos filhos da luz representa um trabalho incomparavelmente mais duro do que dirigir uma empresa, fábrica ou banco. A maioria, por cáclculo de indolência, prefere o trabalho servil, embora penoso, ao real, mais áspero e duro – torna-se escravo das coisas terrestres para evitar o esforço que o tornaria dono do espírito.
Ter Razão é uma Questão de Explicações
Havia que ser um fanático para querer ter sempre razão. Ter razão era sobretudo uma questão de explicações. O homem intelectual tornara-se uma criatura explicativa. Toda a gente explicava, os pais aos filhos, os maridos às mulheres, os conferencistas ao seu público, os especialistas aos leigos, os colegas aos colegas, os médicos aos pacientes, o homem à sua alma. A génese disto, a causa daquilo, as origens dos acontecimentos, a história, a estrutura, as razões pelas quais. Na maior parte dos casos, a explicação entrava por um ouvido e saía pelo outro. A alma desejava o que desejava. Tinha o seu próprio saber natural. A infeliz poisava, pobre avezinha, sobre superstruturas de explicação, sem saber para onde levantar voo.
(…) Era um afã holandês, pensou Sammler, sempre a dar à bomba para manter enxutos alguns hectares de terra. O mar invasor era uma metáfora da multiplicação dos factos e das sensações; quanto à terra, era uma terra de ideias.
. Sammler’
Soneto
(Lendo o “Poema de Maio”)
Na rua em funeral ei-la que passa,
A romaria eterna dos aflitos,
A procissão dos tristes, dos proscritos,
Dos romeiros saudosos da desgraça.E na choça a lamúria que traspassa
O coração, além, ânsias e gritos
De mães que arquejam sobre os probrezitos
Filhos que a Fome derrubou na praça.Entre todos, porém, lânguida e bela,
Da juventude a virginal capela
A lhe cingir de luz a fronte baça,Vai Corina mendiga e esfarrapada,
A alma saudosa pelo amor vibrada,
– A Stella Matutina da Desgraça!
Abdicação
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaçosMinha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
Comporta-te com teus pais como pretendes que teus filhos se comportem contigo.
Corpo de Mulher…
Corpo de mulher, brancas colinas, coxas
[brancas,
pareces-te com o mundo na tua atitude de
[entrega.
O meu corpo de lavrador selvagem escava em ti
e faz saltar o filho do mais fundo da terra.Fui só como um túnel. De mim fugiam os
[pássaros,
e em mim a noite forçava a sua invasão
[poderosa.
Para sobreviver forjei-te como uma arma,
como uma flecha no meu arco, como uma pedra
na minha funda.Mas desce a hora da vingança, e eu amo-te.
Corpo de pele, de musgo, de leite ávido e firme.
Ah os copos do peito! Ah os olhos de ausência!
Ah as rosas do púbis! Ah a tua voz lenta e
[triste!Corpo de mulher minha, persistirei na tua graça.
Minha sede, minha ânsia sem limite, meu
[caminho indeciso!
Escuros regos onde a sede eterna continua,
e a fadiga continua, e a dor infinita.
O que descobrimos sobre nós próprios durante a criação dos nossos filhos não é sempre agradável ou atraente.
Saudade
Ter saudade
é vaga disforme de um corpo.
Ter saudade
é pássaro que aparece e se apaga
erguido de confusão
na angústia, teste dado à natureza
bruxuleante dentro de mim.
Ter saudade
é fingir qualquer coisa que inquieta,
levantada, desenterrada do crivo da memória.
Por vezes quando o tempo por ela passa
não passa o tempo da saudade,
estátua rígida dum destino anoitecido,
passa um nada meio acontecido.
Saudade,
é filha da alma do mundo
que de tanto ser outro
sou eu já.
Saudade,
porque viajas cansada
em horas dentro de mim?
Saudade
que vieste até à última força desta linha,
brumosa da eterna caminhada.
Sempre que vieres
sem avisares
leva-me contigo
para que a paz volte
à memória de meu corpo
como o rio que passa
no tempo final da minha natureza.
Ó tu, consolador dos malfadados
Ó tu, consolador dos malfadados,
Ó tu, benigno dom da mão divina,
Das mágoas saborosa medicina,
Tranquilo esquecimento dos cuidados:Aos olhos meus, de prantear cansados,
Cansados de velar, teu voo inclina;
E vós, sonhos d’amor, trazei-me Alcina,
Dai-me a doce visão de seus agrados:Filha das trevas, frouxa sonolência,
Dos gostos entre o férvido transporte
Quanto me foi suave a tua ausência!Ah!, findou para mim tão leda sorte;
Agora é só feliz minha existência
No mudo estado, que arremeda a morte.
Os braços de uma mãe são feitos de ternura e os filhos dormem profundamente neles.
Ser Feliz
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver a vida, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz não é uma fatalidade do destino, mas uma conquista de quem sabe viajar para dentro do seu próprio ser.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e tornar-se autor da sua própria história. É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma. É agradecer a Deus em cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. E ter a coragem de ouvir um «não». É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta. É beijar os filhos, ter prazer com os pais e ter momentos poéticos com os amigos, mesmo que eles nos magoem.
Ser feliz é deixar viver a criança livre, alegre e simples que mora dentro de cada um de nós. É ter maturidade para dizer «eu errei». É ter ousadia para dizer «perdoa-me». É ter sensibilidade para expressar «eu preciso de ti». E ter capacidade de dizer «eu amo-te».
Desejo que a vida se torne um canteiro de oportunidades que lhe permita ser feliz…
A Eternidade é o Nosso Signo
Sim, a eternidade é o nosso signo. Não começámos a existir nem o fim da existência o entendemos como fim. Por isso não sentimos que não existimos antes de começarmos a existir mas apenas que tudo isso que aconteceu antes de termos existido foi apenas qualquer coisa a que por acaso não assistimos como a muito do que acontece no nosso tempo. E à morte invencivelmente a ultrapassamos para nos pormos a existir depois dela. O prazer que nos dá a história do passado, sobretudo os documentos que no-lo dão flagrantemente, vem de nos sentirmos prolongados até lá, de nos sentirmos de facto presentes nesse modo de ser contemporâneos. Mas sobretudo há em nós uma memória-limite, uma memória absoluta que não tem nada de referenciável e se prolonga ao sem fim. Do mesmo modo há o futuro que é pura projecção de nós, apelo irreprimível a um amanhã sem termo ou sem amanhã. Por isso a morte nos angustia e sobretudo nos intriga por nos provar à evidência o que profundamente não conseguimos compreender. Mas sobretudo a eternidade é o que se nos impõe no instante em que vivemos. O tempo não passa por nós e daí vem a impossibilidade de nos sentirmos envelhecer.
Os Arlequins – Sátira
Musa, depõe a lira!
Cantos de amor, cantos de glória esquece!
Novo assunto aparece
Que o gênio move e a indignação inspira.
Esta esfera é mais vasta,
E vence a letra nova a letra antiga!
Musa, toma a vergasta,
E os arlequins fustiga!Como aos olhos de Roma,
— Cadáver do que foi, pávido império
De Caio e de Tibério, —
O filho de Agripina ousado assoma;
E a lira sobraçando,
Ante o povo idiota e amedrontado,
Pedia, ameaçando,
O aplauso acostumado;E o povo que beijava
Outrora ao deus Calígula o vestido,
De novo submetido
Ao régio saltimbanco o aplauso dava.
E tu, tu não te abrias,
Ó céu de Roma, à cena degradante!
E tu, tu não caías,
Ó raio chamejante!Tal na história que passa
Neste de luzes século famoso,
O engenho portentoso
Sabe iludir a néscia populaça;
Não busca o mal tecido
Canto de outrora; a moderna insolência
Não encanta o ouvido,
Fascina a consciência!Vede; o aspecto vistoso,
O olhar seguro,
Gritar
Aqui a acção simplifica-se
Derrubei a paisagem inexplicável da mentira
Derrubei os gestos sem luz e os dias impotentes
Lancei por terra os propósitos lidos e ouvidos
Ponho-me a gritar
Todos falavam demasiado baixo falavam e
[escreviam
Demasiado baixoFiz retroceder os limites do grito
A acção simplifica-se
Porque eu arrebato à morte essa visão da vida
Que lhe destinava um lugar perante mimCom um grito
Tantas coisas desapareceram
Que nunca mais voltará a desaparecer
Nada do que merece viverEstou perfeitamente seguro agora que o Verão
Canta debaixo das portas frias
Sob armaduras opostas
Ardem no meu coração as estações
As estações dos homens os seus astros
Trémulos de tão semelhantes seremE o meu grito nu sobe um degrau
Da escadaria imensa da alegriaE esse fogo nu que me pesa
Torna a minha força suave e duraEis aqui a amadurecer um fruto
Ardendo de frio orvalhado de suor
Eis aqui o lugar generoso
Onde só dormem os que sonham
O tempo está bom gritemos com mais força
Para que os sonhadores durmam melhor
Envoltos em palavras
Que põem o bom tempo nos meus olhosEstou seguro de que a todo o momento
Filha e avó dos meus amores
Da minha esperança
A felicidade jorra do meu gritoPara a mais alta busca
Um grito de que o meu seja o eco.