Dobrada à Moda do Porto
Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo …(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
Passagens sobre Hoje
1117 resultadosA Consciência
A consciência é a última fase da evolução do sistema orgânico, por consequência também aquilo que há de menos acabado e de menos forte neste sistema. É do consciente que provém uma multidão de enganos que fazem com que um animal, um homem, pereçam mais cedo do que seria necessário, «a despeito do destino», como dizia Homero.
Se o laço dos instintos, este laço conservador, não fosse de tal modo mais poderoso do que a consciência, se não desempenhasse, no conjunto, um papel de regulador, a humanidade sucumbiria fatalmente sob o peso dos seus juízos absurdos, das suas divagações, da sua frivolidade, da sua credulidade, numa palavra do seu consciente: ou antes, há muito tempo que teria deixado de existir sem ele!
Enquanto uma função não está madura enquanto não atingiu o seu desenvolvimento perfeito, é perigosa para o organismo: é uma grande sorte que ela seja bem tiranizada! A consciência é-o severamente, e não é ao orgulho que o deve menos. Pensa-se que este orgulho forma o núcleo do ser humano; que é o seu elemento duradoiro, eterno, supremo, primordial! Considera-se que o consciente é uma constante! Nega-se o seu crescimento, as suas intermitências! É considerado como «a unidade do organismo»!
Se não conseguimos, hoje, acabar com nossas diferenças, ao menos nós podemos tornar o mundo um lugar seguro para a diversidade.
Nunca sabemos quando somos sinceros. Talvez nunca o sejamos. E mesmo que sejamos sinceros hoje, amanhã podemos sê-lo por coisa contrária.
Robespierre
Alma inquebrável – bravo sonhador
De um fim brilhante, de um poder ingente,
De seu cérebro audaz, a luz ardente
É que gerava a treva do Terror!Embuçado num lívido fulgor
Su’alma colossal, cruel, potente,
Rompe as idades, lúgubre, tremente,
Cheia de glórias, maldições e dor!Há muito que, soberba, ess’alma ardida
Afogou-se cruenta e destemida
– Num dilúvio de luz: Noventa e três…Há muito já que emudeceu na história
Mas ainda hoje a sua atroz memória
É o pesadelo mais cruel dos reis!…
Dois Caminhos
Eu queria te dar minha emoção mais pura,
associar-te ao meu sonho e dividir contigo
migalha por migalha, o pouco de ventura
que pudesse colher no caminho onde sigo…E esse estranho desejo em que se desfigura
a palavra de amor e pureza que eu digo,
– e queria te dar essa minha ternura
que às vezes, por trair-se ao teu olhar, maldigo…Bem que eu quis te ofertar meu destino, meu sonho,
minha vida, e até mesmo esta efêmera glória
que desperdiço a cantar nos versos que componho…Nada quiseste…E assim, os sonhos que viviam,
se ontem, puderam ser um começo de história,
hoje, são dois caminhos que se distanciam…
Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer também amanhã.
Vivemos numa Paz de Animais Domésticos
Uma cobra de água numa poça do choupal, a gozar o resto destes calores, e umas meninas histéricas aos gritinhos, cheias de saber que o bicho era tão inofensivo como uma folha.
Por fidelidade a um mandato profundo, o nosso instinto, diante de certos factos, ainda quer reagir. Mas logo a razão acode, e o uivo do plasma acaba num cacarejo convencional. Todos os tratados e todos os preceptores nos explicaram já quantas espécies de ofídios existem e o soro que neutraliza a mordedura de cada um. Herdamos um mundo já quase decifrado, e sabemos de cor as ervas que não devemos comer e as feras que nos não podem devorar. Vivemos numa paz de animais domésticos, vacinados, com os dentes caninos a trincar pastéis de nata, tendo aos pés, submissos, os antigos pesadelos da nossa ignorância. Passamos pela terra como espectros, indo aos jardins zoológicos e botânicos ver, pacata e sàbiamente, em jaulas e canteiros, o que já foi perigo e mistério. E, por mais que nos custe, não conseguimos captar a alma do brinquedo esventrado. O homem selvagem, que teve de escolher tudo, de separar o trigo do joio, de mondar dos seus reflexos o que era manso e o que era bravo,
Versos Curtos e Compridos
Como poeta actuante, combati o meu próprio ensimesmamento. Por isso, o debate entre o real e o subjectivo se decidiu dentro do meu próprio ser. Sem pretensões de aconselhar ninguém, os resultados podem auxiliar as minhas experiências Vejamo-los de relance.
É natural que a minha poesia esteja exposta tanto à opinião da crítica elevada como submetida à paixão do libelo. Isto faz parte do jogo. Sobre este aspecto da discussão não tenho voz, mas tenho voto. Para a crítica essencial, o meu voto são os meus livros, a minha poesia inteira. Para o libelo inamistoso, tenho também direito de voto — e este também é constituído pela minha própria e constante criação.
Se soa a vaidade o que digo, pode ser que tenham razão. No meu caso, trata-se da vaidade do artesão que exerceu um oficio por muitos anos com amor indelével.
Mas há uma coisa com que estou satisfeito: de uma maneira ou outra, fiz respeitar, pelo menos na minha pátria, o ofício de poeta, a profissão da poesia.Na época em que comecei a escrever, o poeta era de dois géneros. Uns, eram poetas grandes senhores que se faziam respeitar pelo seu dinheiro,
Eu sei que sou exatamente o que deveria ser. Hoje, se nada sou, por certo, daqui a pouco, tudo serei.
Há homens que hoje crêem pouco ou nada, porque já creram muito e demasiado.
O dia que chegar, chegou. Pode ser hoje ou daqui a 50 anos. A única coisa certa e que ela vai chegar.
Desencanto em Função da Posse
Nada me encanta já; tudo me aborrece, me nauseia. Os meus próprios raros entusiasmos, se me lembro deles, logo se me esvaem – pois, ao medi-los, encontro os tão mesquinhos, tão de pacotilha… Quer saber? Outrora, à noite, no meu leito, antes de dormir, eu punha-me a divagar. E era feliz por momentos, entressonhando a glória, o amor, os êxtases… Mas hoje já não sei com que sonhos me robustecer. Acastelei os maiores… eles próprios me fartaram: são sempre os mesmos – e é impossível achar outros… Depois, não me saciam apenas as coisas que possuo – aborrecem-me também as que não tenho, porque, na vida como nos sonhos, são sempre as mesmas. De resto, se às vezes posso sofrer por não possuir certas coisas que ainda não conheço inteiramente, a verdade é que, descendo-me melhor, logo averiguo isto: Meu Deus, se as tivera, ainda maior seria a minha dor, o meu tédio.
A Beleza Maior é a que não se Vê
– Hoje, durante o meu passeio matinal, vi uma linda mulher… Meu Deus, que linda que ela era! (…)
– Sério, sr. Spinell? Descreva-ma então.
– Não, não posso! Dar-lhe-ia uma imagem imperfeita dela. Ao passar, mal a vi; na verdade, não a vi. Apercebi-me, porém, da sua sombra esfumada, e isso bastou para me excitar a imaginação e guardar dela uma imagem de beleza. Meu Deus, que linda imagem!
A mulher do sr. Klöterjahn sorriu.
– É essa a sua maneira de olhar para as mulheres bonitas, senhor Spinell?
– Sim, minha senhora, é; é muito melhor do que olhá-las fixamente na cara, com uma grosseira avidez da realidade, para no fim ficarmos com uma impressão falsa…
Tempo Desperdiçado por Negligência
Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugira das mãos. Convence-te de que as coisas são tal como as descrevo: uma parte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente.
Podes indicar-me alguém que dê o justo valor ao tempo aproveite bem o seu dia e pense que diariamente morre um pouco? É um erro imaginar que a morte está à nossa frente: grande parte dela já pertence ao passado, toda a nossa vida pretérita é já do domínio da morte!
Procede, portanto, caro Lucílio, conforme dizes: preenche todas as tuas horas! Se tomares nas mãos o dia de hoje conseguirás depender menos do dia de amanhã. De adiamento em adiamento, a vida vai-se passando.
Quando És Atencioso e Comovente, Perco a Cabeça
Henry,
Acabaste de sair. Disse ao Hugh que tinha de acrescentar algo ao meu trabalho. Tive de voltar para cima, para o meu quarto, outra vez, e ficar só. Estava tão cheia de ti que tinha medo de mostrar a minha cara. Henry, nenhuma partida tua me deixou tão abalada. Não sei o que foi hoje que me atraiu a ti, que me fez frenética por estar perto de ti, para dormir contigo, para te abraçar… Uma ternura louca e terrível… Um desejo de cuidar de ti… Foi uma grande dor para mim teres ido embora. Quando falas da maneira como falaste das Mädchen [in Uniform] , quando és atencioso e comovente, perco a cabeça.
Para ficar contigo por uma noite eu daria toda a minha vida, sacrificaria cem pessoas, deitaria fogo a Louveciennes, seria capaz de tudo. Isto não é para te preocupar, Henry, é só porque não consigo impedir-me de o dizer, que estou a transbordar, desesperadamente enamorada por ti como nunca estive por alguém. Mesmo que fosses embora amanhã de manhã, a ideia de estares a dormir na mesma casa teria sido um doce alívio do tormento que suporto esta noite, o tormento de ser cortada ao meio quando fechaste o portão atrás de ti.
Hoje milhões de crianças dormirão na rua, nenhuma delas é cubana.