A Prova da Existência de Deus
Não será um empreendimento excêntrico pretender extrair dos actos de Napoleão a prova da sua existência? Porque, se é verdade que a sua existência explica os seus actos, os seus actos não podem provar a sua existência, a menos que esta tenha já sido implicitamente posta na palavra sua. Além disso, na medida em que Napoleão não é senão um indivíduo, não existe entre os seus actos e ele relação absoluta tal que nenhum outro indivíduo seria capaz das mesmas acções: é talvez essa a razão que me impede de concluir dos actos para a existência. Com efeito, se digo que os actos são de Napoleão, então a prova é supérflua, pois que já me referi a ela; mas se ignoro o nome do seu autor, como provar pelos próprios actos que eles são efectivamente de Napoleão? Não posso ultrapassar a afirmação, inteiramente abstracta, de que procedem de um grande general, etc.
Pelo contrário, entre Deus e os seus actos existe uma relação absoluta, porque Deus não é um nome, mas um conceito, e é talvez por isso que a sua essentia involvit existentiam. Assim, os actos de Deus só Deus pode praticá-los; muito bem; mas quais são então os actos de Deus?
Passagens sobre Olhos
2007 resultadosMudo, Mundo
Como será que os pássaros que vivem no alto mar
dormem? e como será
que o sono demora
no corpo das mulheres
e pode se ajeitar
entre o ventre e a virilha
e como será que a música
que é gravada
permanece no silêncio anos?
e como será que os seios
ignoram o resto do corpo
e vivem a mesma vida
do resto do corpo, enfeite,
punhal, precisa beleza
na morte da madrugada
onde o corpo não dorme
e como será que o cavalo negro
acolhe a presença da lua
na límpida noite
e, ao chegar da manhã,
acolhe a presença da moça
nua que será reflectida
nos seus olhos
maior que a manhã
e como será que a manhã
acolhe em seu puro ventre
os seus irmãos rios?
e como será que a terra
sabe guardar silêncio sobre a morte
e como será que as cobras
se encontram nas florestas
e como será que o homem vive
sem abraçar o dia
e o viandante — irmão do dia?
Quem não Ama não Vive
Já na minha alma se apagam
As alegrias que eu tive;
Só quem ama tem tristezas,
Mas quem não ama não vive.Andam pétalas e fôlhas
Bailando no ár sombrío;
E as lágrimas, dos meus olhos,
Vão correndo ao desafio.Em tudo vejo Saudades!
A terra parece mórta.
– Ó vento que tudo lévas,
Não venhas á minha pórta!E as minhas rosas vermelhas,
As rosas, no meu jardim,
Parecem, assim cahidas,
Restos de um grande festim!Meu coração desgraçado,
Bebe ainda mais licôr!
– Que importa morrer amando,
Que importa morrer d’amôr!E vem ouvir bem-amado
Senhor que eu nunca mais vi:
– Morro mas levo commigo
Alguma cousa de ti.
Só podemos ver direito com o coração; o essencial é invisível ao olho.
A mulher formosa agrada aos olhos; a mulher boa agrada ao coração; a primeira é uma jóia; a segunda é um tesouro.
Soneto a Vermeer
De luto, a minha avó costura à máquina,
e gira um cata-vento em plena sala.
Vejo seu rosto, sombra que a janela
corrompe contra um pátio amareladode sol e de mosaicos. Sobre a mesa,
a tesoura, um esquadro, alguns retalhos
e a imóvel solidão. A minha avó,
com os seus olhos azuis, o tempo acalma.A minha avó é jovem, mansa e apenas
a limpidez de tudo. Sonho vê-la
no seu vestido negro, a gola branca
contra o corpo de cão, negro, da máquina:a roda, de perfil, parece imóvel
e a vida não se exila na beleza.
Em Tormentos Cruéis
Em tormentos cruéis, tal sofrimento,
em tão contínua dor, que nunca aliva,
chamar a morte sempre, e que ela, altiva,
se ria dos meus rogos, no tormento!E ver no mal que todo entendimento
naturalmente foge, e quanto aviva
a dor mais o vagar da alma cativa,
a quem não fará crer que é tudo um vento?Bem sei uns olhos, que têm toda a culpa,
e são os meus, que a toda parte vêm
após o que vêem sempre e os desculpa.Ó minhas visões altas, meu só bem,
quem vos a vós não vê, esse me culpa,
e eu sou o só que as vejo, outrem ninguém!
Tu Vinhas
Não me fizeste sofrer
mas esperar.Naquelas horas
emaranhadas, cheias
de serpentes,
quando
a alma me caía e eu me afogava,
tu vinhas-te aproximando,
tu vinhas nua e arranhada,
tu chegavas ensanguentada ao meu leito,
noiva minha,
e então
caminhávamos toda a noite dormindo
e, quando acordávamos,
estavas intacta e nova,
como se o vento grave dos sonhos
acendesse de novo
o fogo da tua cabeleira
e em trigo e prata submergisse
teu corpo até torná-lo deslumbrante.Eu não sofri, meu amor,
esperava-te apenas.
Tu precisavas de mudar de coração
e de olhar
depois de tocares a profunda
zona do mar que meu peito te entregou.
Precisavas de sair da água
pura como uma gota erguida
por uma onda nocturna.Noiva minha, tu precisaste
de morrer e de nascer, eu esperava-te.
Não sofri a procurar-te,
sabia que virias,
mas outra, com o que adoro
da mulher que não adorava,
com teus olhos, tuas mãos e tua boca,
mas com outro coração,
Não há menos eloquência no tom da voz, nos olhos e no ar da pessoa, que na escolha das palavras.
O Meu Cachimbo
Ó meu cachimbo! Amo-te immenso!
Tu, meu thuribudo sagrado!
Com que, bom Abbade, incenso
A Abbadia do meu passado.Fumo? E occorre-me á lembrança
Todo esse tempo que lá vae,
Quando fumava, ainda criança,
Ás escondidas do meu Pae.Vejo passar a minha vida,
Como n’um grande cosmorama:
Homem feito, pallida Ermida,
Infante, pela mão da ama…Por alta noite, ás horas mortas,
Quando não se ouve pio, ou voz,
Fecho os meus livros, fecho as portas
Para fallar comtigo a sós.E a noite perde-se em cavaco,
Na Torre d’Anto, aonde eu moro!
Alli, mettido no buraco,
Fumo e, a fumar, ás vezes… choro.Chorando (penso e não o digo)
Os olhos fitos neste chão,
Que tu és leal, és meu amigo…
Os meus amigos onde estão?Não sei. Tral-os-á o «nevoeiro»…
Os trez, os intimos, Aquelles,
Estão na Morte, no extrangeiro…
Dos mais não sei, perdi-me d’elles.Morreram-me uns. Por elles peço
A Deus, quando está de maré:
E, ás noites,
Todo mundo então era pérfido, mentiroso e falso? E lágrimas lhe vieram aos olhos, pois choramos sempre a morte das nossas ilusões com a mesma mágoa com que choramos os nossos mortos.
Faz de conta que ela não estava chorando por dentro, pois agora, mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado.
Os Pastores
Guardavam certos pastores
seus rebanhos, ao relento,
sobre os céus consoladores
pondo a vista e o pensamento.Quando viram que descia,
cheio de glória fulgente,
um anjo do céu do Oriente,
que era mais claro que o dia.Jamais os cegara assim
luz do meio-dia ou manhã.
Dir-se-ia o audaz Serafim,
que um dia venceu Satã.Cheios de assombro e terror,
rolaram na erva rasteira.
– Mas ele, com voz fagueira,
lhes diz, com suave amor:«Erguei-vos, simples, daí,
humildes peitos da aldeia!
Nasceu o vosso Rabi,
que é Cristo – na Galileia!Num berço, o filho real,
não o vereis reclinado.
Vê-lo-eis pobre e enfaixado,
sobre as palhas de um curral!Segui dos astros a esteira.
Levai pombas, ramos, palmas,
ao que traz uma joeira
das estrelas e das almas!»Foi-se o anjo: e nas neblinas,
então celestes legiões
soltam místicas canções,
sobre violas divinas.Erguem-se, enfim, os pastores
e vão caminhos dalém,
com palmas, rolas, e flores,
A cegueira que cega cerrando os olhos, não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas.
Falsos Amigos
Tenho amigos que pensam confundir-me
igualando a loucura à minha ânsia.
Pobrezitos!, que tentam destruir-me
havendo de permeio esta distância.Eu tenho pena de não ser um deles,
ao menos uma vez, por uns momentos.
Gostava de morrer um dia neles,
ressuscitando nos seus pensamentos.Pintar-lhes-ei um dia o rosto a sério,
com talento nascido de neurose
que faça vê-los nus no baptistério
onde lavam a alma da esclerose?Toda a gente rirá desse retrato,
e haverá certamente prò comprar
um novo-rico que lhe admire o fato
e o pendure na sala de jantar.Hei-de pôr-Ihes uns olhos que reluzam,
mas vazios nas órbitas repletas,
profanação nos dedos que se cruzam,
num indigno repouso de poetas.Ah, são eles que procuram destruir-me,
criticando-me as faces controversas!,
mas apenas conseguem reunir-me
nas mil forças que tenho bem dispersas.
Algumas vezes na vida, convêm-nos ter os olhos bem abertos, outras na metade, e outras realmente fechados. A questão está em saber como para cada vez.
Ler ou Copiar um Texto
O efeito de uma estrada campestre não é o mesmo quando se caminha por ela ou quando a sobrevoamos de avião. De igual modo, o efeito de um texto não é o mesmo quando ele é lido ou copiado. O passageiro do avião vê apenas como a estrada abre caminho pela paisagem, como ela se desenrola de acordo com o padrão do terreno adjacente. Somente aquele que percorre a estrada a pé se dá conta dos efeitos que ela produz e de como daquela mesma paisagem, que aos olhos de quem a sobrevoa não passa de um terreno indiferenciado, afloram distâncias, belvederes, clareiras, perspectivas a cada nova curva […]. Apenas o texto copiado produz esse poderoso efeito na alma daquele que dele se ocupa, ao passo que o mero leitor jamais descobre os novos aspectos do seu ser profundo que são abertos pelo texto como uma estrada talhada na sua floresta interior, sempre a fechar-se atrás de si. Pois o leitor segue os movimentos de sua mente no vôo livre do devaneio, ao passo que o copiador os submete ao seu comando. A prática chinesa de copiar livros era assim uma incomparável garantia de cultura literária, e a arte de fazer transcrições,
Aquelle Sabio
N’aquellas altas janellas
Que deitam para o telhado;
Eu vejo-o sempre encostado,
A namorar as estrellas.Tem assim ares d’empyrico
Mui lido em philosophástros;
É um pobre poeta lyrico,
Que escreve cartas aos astros.Traz luto nos seus vestidos
Por uma Ophelia de menos,
Tem uns cabellos compridos,
E uns olhos tristes, serenos.Parece um Jove proscripto,
E já descrente das Ledas,
Conhece o hebraico, o sanscrito
E os livros santos dos Vedas.Espelha na luz do olhar
Não sei que visões amenas;
Anda sempre a imaginar
Idylios ás açucenas.E aquella mulher vaidosa
–Que elle chama a sua Egeria–
Ri d’aquella alma anciosa,
E aquella triste miseria………………………………………
……………………………………
……………………………………Mais de tres dias ou quatro
Que lhe falta o necessario;
Estava hontem no theatro
Com luvas côr de canario.
Seria o Amor Português
Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta…»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
A Mata Virgem, Desgrenhada Aos Ventos
A mata virgem, desgrenhada aos ventos,
Eleva à noite a alma complexa e vária;
Do musgo humilde às grimpas da araucária
Há, talvez, gritos, há talvez, lamentos.Olhos presos na sombra, a passos lentos
Passeando na varanda solitária,
Apraz-me àquela orquestra tumultuária
A sós ouvir os rudes sons violentos.Ó noite, como que raivando, levas
Com o teu meu coração por essas trevas!
O teu – cólera, o meu – doce reclamo;Ambos, ao fogo atroz que têm no seio,
O teu bramindo: – O ódio eu sou, e odeio!
O meu chorando: – Eu sou o Amor, eu amo!