Para Ser Lido Mais Tarde
Um dia
quando já não vieres dizer-me Vem
jantarquando já não tiveres dificuldade
em chegar ao puxador
da porta quandojá não vieres dizer-me Pai
vem ver os meus deveresquando esta luz que trazes nos cabelos
já não escorrer nos papéis em que trabalhopara ti será o começo de tudo
Uma outra vida haverá talvez para os teus sonhos
um outro mundo acolherá talvez enfim a tua oferendaHás-de ter alguma impaciência enquanto falo
Ouvirás com encanto alguém que não conheço
nem talvez ainda exista neste instanteMas para mim será já tão frio e já tão tarde
E nem mesmo uma lembrança amarga
ou doce ficará
desta hora redonda
em que ninguém repara
Passagens sobre Papéis
283 resultadosOs Palhaços
Heróis da gargalhada, ó nobres saltimbancos,
eu gosto de vocês,
porque amo as expansões dos grandes risos francos
e os gestos de entremez,e prezo, sobretudo, as grandes ironias
das farsas joviais.
que em visagens cruéis, imperturbáveis, frias.
à turba arremessais!Alegres histriões dos circos e das praças,
ah, sim, gosto de vos ver
nas grandes contorções, a rir, a dizer graças
de o povo enlouquecer,ungidos pela luta heróica, descambada,
de giz e de carmim,
nas mímicas sem par, heróis da bofetada,
titãs do trampolim!Correi, subi, voai num turbilhão fantástico
por entre as saudações
da turba que festeja o semideus elástico
nas grandes ascensões,e no curso veloz, vertiginoso, aéreo,
fazei por disparar
na face trivial do mundo egoísta e sério
a gargalhada alvar!Depois, mais perto ainda, a voltear no espaço,
pregai-lhe, se podeis,
um pontapé furtivo, ó lívidos palhaços,
luzentes como reis!Eu rio sempre, ao ver aquela majestade,
os trágicos desdéns
com que nos divertis, cobertos de alvaiade,
Vive o Dia de Hoje!
Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero. Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto. Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro.
Pisamos o chão calçado de civilizações mortas, e pretendemos estudá-las em papéis e museus.
Os Arlequins – Sátira
Musa, depõe a lira!
Cantos de amor, cantos de glória esquece!
Novo assunto aparece
Que o gênio move e a indignação inspira.
Esta esfera é mais vasta,
E vence a letra nova a letra antiga!
Musa, toma a vergasta,
E os arlequins fustiga!Como aos olhos de Roma,
— Cadáver do que foi, pávido império
De Caio e de Tibério, —
O filho de Agripina ousado assoma;
E a lira sobraçando,
Ante o povo idiota e amedrontado,
Pedia, ameaçando,
O aplauso acostumado;E o povo que beijava
Outrora ao deus Calígula o vestido,
De novo submetido
Ao régio saltimbanco o aplauso dava.
E tu, tu não te abrias,
Ó céu de Roma, à cena degradante!
E tu, tu não caías,
Ó raio chamejante!Tal na história que passa
Neste de luzes século famoso,
O engenho portentoso
Sabe iludir a néscia populaça;
Não busca o mal tecido
Canto de outrora; a moderna insolência
Não encanta o ouvido,
Fascina a consciência!Vede; o aspecto vistoso,
O olhar seguro,
Marília De Dirceu
Soneto 5
Ao templo do Destino fui levado:
Sobre o altar num cofre se firmava,
Em cujo seio cada qual buscava,
Tremendo, anúncio do futuro estado.Tiro um papel e lio – céu sagrado,
Com quanta causa o coração pulsava!
Este duro decreto escrito estava
Com negra tinta pela mão do fado:“Adore Polidoro a bela Ormia,
sem dela conseguir a recompensa,
nem quebrar-lhe os grilhões a tirania.”Dar mãos Amor mo arranca, e sem detença,
Três vezes o levando à boca impia,
Jurou cumprir à risca a tal sentença.
À Memória de Minha Mãe
Mãe! Morreste!
Agora é tão tarde para te dizer as palavras necessárias.
O relógio bateu duas e meia. É noite escura
E a dor galopa surdamente no meu peito.
Teu corpo jaz ainda morno, já sem interesse para ti.
Por tua causa, amanhã, movimentar-se-ão pessoas
Diversas
Que não te conheceram.
Serão preenchidos papéis: requerimentos, boletins;
Pás ou picaretas (nem eu sei) ferirão a terra
E sobre ela erguerão, depois, um número qualquer
Que será de futuro o teu bilhete de identidade.
Agora, porém, tudo ainda é quieto.
Só um galo canta, feliz, na sua inconsciência de ser vivo.
As lágrimas rompem-me incontroláveis e inúteis.
É tarde!
Já só existem saudades e fotografias.
As palavras que eu amaria ter-te dito
Sobem-me ao silêncio dos lábios cerrados.
Lá fora a chuva molha a madrugada
Enquanto os familiares se olham
Com o rosto congestionado de lágrimas
E sono interrompido,
Adorando-te em silêncio,
Mais que nunca,
— Esmagados pelo prestígio da morte.
A Arte Está em Todo o Lado
Nós não nos damos conta de como a arte nos trespassa de todo o lado. Anotar isso aos que vaticinam a morte da arte. Isto ao nível mais corriqueiro. Dispor os móveis numa sala é fazer arte. Ou olhar uma paisagem, pôr uma flor na lapela, ou num vaso. Escolher uma gravata, uns sapatos. Provar um fato. Pentear-se. Fazer a barba ou apará-la quando comprida. Todas as coisas de cerimónia têm que ver com a arte. E o corte das unhas.
Todo o jogo. Toda a verdade que releva da emoção. Às vezes mesmo a escolha do papel higiénico. Mas mesmo a desordem. Bergson, creio, dizia que se tudo fosse desordenado, nós acabaríamos por ler aí uma ordem. E não é o que fazemos ao inventarmos as constelações? Admitir a morte da arte é admitir a morte do homem, que impõe essa arte a tudo o que vê. Mas tenho de ir à casa de banho. A ver se invento arte mesmo aí. (Mas quando disse «casa de banho» e não «retrete», já a inventei.)
A Memória é um Silêncio que Espera
O património do silêncio. Os livros acumulam-se pela casa. Cobrem as paredes, enchem as prateleiras dos armários. Aguardam-nos calados com suas páginas apertadas onde o pó e a humidade se infiltram. Disciplinados, exibem apenas o seu dorso curvo coberto de pele, ou então magro, estreito, de papel. A memória é um silêncio que espera, uma provação da paciência.
Vaidade a Qualquer Preço
Muitas vezes obramos bem por vaidade, e também por vaidade obramos mal: o objecto da vaidade é que uma acção se faça atender, e admirar, seja pelo motivo, ou razão que for. Não só o que é digno de louvor é grande; porque também há cousas grandes pela sua execração; é o que basta para a vaidade as seguir, e aprovar. A maior parte das empresas memoráveis, não tiveram a virtude por origem, o vício sim; e nem por isso deixaram de atrair o espanto, e admiração dos homens.
A fama não se compõe apenas do que é justo, e o raio não só se faz atendível pela luz, mas pelo estrago. A vaidade apetece o estrondoso, sem entrar na discussão da qualidade do estrondo: faz-nos obrar mal, se desse mal pode resultar um nome, um reparo, uma memória. Esta vida é um teatro, todos queremos representar nele o melhor papel, ou ao menos um papel importante, ou em bem, ou em mal. A vaidade tem certas regras, uma delas é, que a singularidade não só se adquire pelo bem, mas também pelo mal, não só pelo caminho da virtude, mas também pelo da culpa; não só pela verdade,
Há quem pense que o papel da religião consiste em despertar o ‘homem em ilusão’ e conduzi-lo à Verdade. Mas a verdadeira religião propicia a compreensão de que o ‘homem em ilusão’ não existe originalmente, e promove o surgimento natural e espontâneo do homem verdadeiro – a Imagem Verdadeira – eternamente feliz. ‘Homem em ilusão’ não existe originalmente. Por isso, só lhe resta desaparecer, quando o ser humano desperta para a Imagem Verdadeira.
Eu poderia trabalhar no duche se tivesse papel de plástico.
O Pressuposto Indispensável para se Ser um Grande-Escritor
O pressuposto indispensável para se ser um grande-escritor é, então, o de escrever livros e peças de teatro que sirvam para todos os níveis, do mais alto ao mais baixo. Antes de produzir algum bom efeito, é preciso primeiro produzir efeito: este princípio é a base de toda a existência como grande-escritor. É um princípio miraculoso, eficaz contra todas as tentações da solidão, por excelência o princípio goethiano do sucesso: se nos movermos apenas num mundo que nos é propício, tudo o resto virá por si. Pois quando um escritor começa a ter sucesso dá-se logo uma transformação significativa na sua vida. O seu editor pára de se lamentar e de dizer que um comerciante que se torna editor se parece com um idealista trágico, porque faria muito mais dinheiro negociando com tecidos ou papel virgem. A crítica descobre nele um objecto digno da sua actividade, porque os críticos muitas vezes até nem são más pessoas, mas, dadas as circunstâncias epocais pouco propícias, ex-poetas que precisam de um apoio do coração para poderem pôr cá fora os seus sentimentos;são poetas do amor ou da guerra, consoante o capital interior que têm de aplicar com proveito, e por isso é perfeitamente compreensível que escolham o livro de um grande-escritor e não o de um comum escritor.
Há Mais de Meia Hora
Há mais de meia hora
Que estou sentado à secretária
Com o único intuito
De olhar para ela.
(Estes versos estão fora do meu ritmo.
Eu também estou fora do meu ritmo.)
Tinteiro grande à frente.
Canetas com aparos novos à frente.
Mais para cá papel muito limpo.
Ao lado esquerdo um volume da “Enciclopédia Britânica”.
Ao lado direito —
Ah, ao lado direito
A faca de papel com que ontem
Não tive paciência para abrir completamente
O livro que me interessava e não lerei.Quem pudesse sintonizar tudo isto!
Como somos uma espécie condenada, prisioneira num barco, como tudo é uma farsa de mau gosto, desempenhemos, afinal de contas, nosso papel; mitiguemos as penas dos nossos companheiros de prisão. Decoremos o calabouço com flores e almofadas; sejamos o mais corretos possível.
Mais Nada se Move em Cima do Papel
mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridescente pressagia
o destino deste corpoos dedos cintilam no húmus da terra
e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterradoencosto a cabeça na luz e tudo esqueço
no interior desta ânfora alucinadadesço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul
e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagemo mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusãoassim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração
Conselhos para o Ensino
Vou falar de questões que, independentemente do espaço e do tempo, sempre estiveram e sempre estarão relacionadas com a educação. Nesta tentativa não posso dizer que sou uma autoridade, particularmente tão inteligente e bem-intencionado como os homens que ao longo do tempo trataram dos problemas da educação e que certamente exprimiram repetidas vezes os seus pontos de vista acerca destas matérias. Com que base posso eu, um leigo no âmbito da pedagogia, arranjar coragem para exprimir opiniões sem qualquer fundamento, excepto a minha experiência pessoal e a minha convicção pessoal? Quando se trata de uma matéria científica, é fácil uma pessoa sentir-se tentada a ficar calada com base nestas considerações.
Contudo, tratando-se de assuntos respeitantes ao ser humano, é diferente. Neste caso, o conhecimento apenas da verdade não é suficiente; pelo contrário, este conhecimento deve ser continuamente renovado à custa de um esforço contínuo, sob pena de se perder. Lembra uma estátua de mármore no deserto que está continuamente em perigo de ser enterrada pela areia em movimento. As mãos de serviço têm de estar continuamente a trabalhar para que o mármore continue indefinidamente a brilhar ao sol. A este grupo de mãos também pertencem as minhas.
A escola sempre foi o mais importante meio de transferência da riqueza da tradição de uma geração para a seguinte.
Devo-te
Devo-te tanto como um pássaro
deve o seu voo à lavada
planície do céu.Devo-te a forma
novíssima de olhar
teu corpo onde às vezes
desce o pudor o silêncio
de uma pálpebra mais nada.Devo-te o ritmo
de peixe na palavra,
a genesíaca, doce
violência dos sentidos;
esta tinta de sol
sobre o papel de silêncio
das coisas – estes versos
doces, curtos, de abelhas
transportando o pólen
levíssimo do dia;
estas formigas na sombra
da própria pressa e entrando
todas em fila no tempo:
com uma pergunta frágil
nas antenas, um recado invisível, o peso
que as deixa ser e esquece;
e a tua voz que compunha
uma casa, uma rosa
a toda a volta – ó meu amor vieste
rasgar um sol das minhas mãos!
Diferentes Caminhos para uma Felicidade Sempre Insuficiente
O objectivo para o qual o princípio do prazer nos impele — o de nos tornarmos felizes — não é atingível; contudo, não podemos — ou melhor, não temos o direito — de desistir do esforço da sua realização de uma maneira ou de outra. Caminhos muito diferentes podem ser seguidos para isso; alguns dedicam-se ao aspecto positivo do objectivo, o atingir do prazer; outros o negativo, o evitar da dor. Por nenhum destes caminhos conseguimos atingir tudo o que desejamos. Naquele sentido modificado em que vimos que era atingível, a felicidade é um problema de gestão da libido em cada indivíduo. Não há uma receita soberana nesta matéria que sirva para todos; cada um deve descobrir por si qual o método através do qual poderá alcançar a felicidade. Toda a espécie de factores irá influenciar a sua escolha. Depende da quantidade de satisfação real que ele irá encontrar no mundo externo, e até onde acha necessário tornar-se independente dele. Por fim, na confiança que tem em si próprio do seu poder de modificar conforme os seus desejos. Mesmo nesta fase, a constituição mental do indivíduo tem um papel decisivo, para além de quaisquer considerações externas. O homem que é predominantemente erótico irá escolher em primeiro lugar relações emocionais com os outros;
A glória não é uma medalha, mas uma moeda: de um lado tem a Figura, do outro uma indicação de valor. Para os valores maiores não há moedas: são de papel, e esse valor é sempre pouco.