Obsessão do Mar Oceano
Vou andando feliz pelas ruas sem nome…
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano…
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas… e moças na janelas
Com brincos e pulseiras de coral…
Búzios calçando portas… caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos…
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su’alma perdida e vaga na neblina…
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos…
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas…
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome.
Poemas sobre Portas
155 resultadosBalada do Amor através das Idades
Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigámos, morremos.Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal…
Me suicidei também.Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira…
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Peso do Mundo
A poesia não é, nunca foi
uma enumeração ou composto
de exuberância, bondade,
altitude, nem arado
ou dádiva sobre chão
prenhe de mortos.Nem o arrependimento
de Deus por ter criado o homem
com o rosto da sua memória,
ao lado dos seus vermes.Tão-pouco fôlego dos que amam
abrindo a porta límpida
do corpo e chovendo sobre a terra,
ou carregam como tartarugas
o peso do mundo.Nem reverência por um tigre,
pela leveza maligna de todas as patas,
pela sonolência junto à estirpe
aprisionada também
na dureza de ser tigre.É o milagre de uma arma
total, de uma só palavra
reduzindo o átomo à completa inocência.
Revolução
Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta abertaComo puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vícioComo a voz do mar
Interior de um povoComo página em branco
Onde o poema emergeComo arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação
Uma Vida Esquecida
Para o Fernando Alves dos Santos
Eu conheço o vidro franja por franja
meticulosamente
à porta parado um homem oco
franja por franja no espaço
meticulosamente oco uma porta parada.Um relógio dá dez badaladas ininterruptamente
dez badaladas por brincadeira dança
um homem com pernas de mulher
e um olhar devasso no Marte
passo por passo uma criança chora
uma águia e um vampiro recuados no tempo.
Há Metafísica Bastante em não Pensar em Nada
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Contra a Sedução
1
Não vos deixeis seduzir!
Regresso não pode haver.
O dia já fecha as portas,
Já sentis o frio da noite:
Não haverá amanhã.2
Não vos deixeis enganar,
E que a vida pouco vale!
Sorvei-a a goles profundos!
Pois não vos pode bastar
Que tenhais de a abandonar!3
Não vos contenteis de esp’ranças,
Que o tempo não é demais!
Aos mortos a podridão!
O maior que há é a vida:
E ela já não está pronta.4
Não vos deixeis seduzir
Ao moirejo e à miséria!
Que pode fazer-vos o medo?
Morreis como os bichos todos,
E depois não há mais nada.
Os Lugares-Comuns
Quando o homem que ia casar comigo
chegou a primeira vez na minha casa,
eu estava saindo do banheiro, devastada
de angelismo e carência. Mesmo assim,
ele me olhou com olhos admirados
e segurou minha mão mais que
um tempo normal a pessoas
acabando de se conhecer.
Nunca mencionei o facto.
Até hoje me ama com amor
de vagarezas, súbitos chegares.
Quando eu sei que ele vem,
eu fecho a porta para a grata surpresa.
Vou abri-la como o fazem as noivas
e as amantes. Seu nome é:
Salvador do meu corpo.
Lágrimas de Cera
Passou; viu a porta aberta.
Entrou; queria rezar.
A vela ardia no altar.
A igreja estava deserta.Ajoelhou-se defronte
Para fazer a oração;
Curvou a pálida fronte
E pôs os olhos no chão.Vinha trêmula e sentida.
Cometera um erro. A Cruz
É a âncora da vida,
A esperança, a força, a luz.Que rezou? Não sei. Benzeu-se
Rapidamente. Ajustou
O véu de rendas. Ergueu-se
E à pia se encaminhou.Da vela benta que ardera,
Como tranqüilo fanal,
Umas lágrimas de cera
Caíam no castiçal.Ela porém não vertia
Uma lágrima sequer.
Tinha a fé, — a chama a arder, —
Chorar é que não podia.
A Alvorada do Amor
Um horror grande e mudo, um silêncio profundo
No dia do Pecado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:“Chega-te a mim! entra no meu amor,
E à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençôo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!Vê! tudo nos repele! a toda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação…
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrelas estão cheias de calefrios;
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu…Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,
Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
Contrariedades
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas…O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.
Ah Deixem-me Dormir!
O Poeta
Olá, bom velho! é aqui o Hotel da Cova,
Tens algum quarto ainda para alugar?
Simples que seja, basta-me uma alcova…
(Como eu estou molhado! é de chorar…)
O povoO luar averte as orvalhadas sobre a rua!
Jezus! que lindo…Vamos! depressa! Vem, faze-me a cama,
Que eu tenho somno, quero-me deitar!
Ó velha Morte, minha outra ama!
Para eu dormir, vem dar-me de mamar…
A Sra JuliaSão as Janeiras da Lua!
O CoveiroOs quartos, meu senhor, estão tomados
Mas se quizer na valla (que é de graça…)
Dormem, alli, somente os desgraçados:
Têm bom dormir… bom sitio… ninguem passa…
O Zé dos LodosA lua é a nossa vacca, ó Maria!
Mugindo…Ainda lá, hontem, hospedei um moço
E não se queixa… E ha-de poupal-o a traça,
Porque esses hospedes só trazem osso,
E a carne em si, valha a verdade, é escassa.
O Dr. DelegadoA noite parece dia!
O PoetaEscassa, sim! mas tenho ossada ainda,
Ao Volante
Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem conseqüência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida…Maieável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!,
Noite de Natal
[A um pequenito, vendedor de jornais]
Bairro elegante, – e que miséria!
Roto e faminto, à luz sidéria,
O pequenito adormeceu…Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço
Sobre os jornais, que não vendeu.A noite é fria; a geada cresta;
Em cada lar, sinais de festa!
E o pobrezinho não tem lar…Todas as portas já cerradas!
Ó almas puras, bem formadas,
Vede as estrelas a chorar!Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço
Sobre os jornais, que não vendeu,Em plena rua, que miséria!
Roto e faminto, à luz sidéria,
O pequenito adormeceu…Em torno dele – ó dor sagrada!
Ao ver um círculo sem geada
Na sua morna exalação,Pensei se o frio descaroável
Do pequenino miserável
Teria mágoa e compaixão…Sonha talvez, pobre inocente!
Ao frio, à neve, ao luar mordente,
Com o presépio de Belém…Do céu azul, às horas mortas,
Nossa Senhora abriu-lhe as portas
E aos orfãozinhos sem ninguém…
Do Fim dos Segredos
Quando se conta a outrem um segredo este
desmaia: a palavra
torna-se pele
sem leão lá dentro.Não é mais segredo e não o sendo
finge ser lembrança
de fabrico imperfeito:
um cliqueti no silêncio escancaraa dantes inamovível porta
e virada a página acha-se apenas
uma moeda
que não corre já.
Quando Ela Fala
Quando ela fala, parece
Que a voz da brisa se cala;
Talvez um anjo emudece
Quando ela fala.Meu coração dolorido
As suas mágoas exala,
E volta ao gozo perdido
Quando ela fala.Pudeste* eu eternamente,
Ao lado dela, escutá-la,
Ouvir sua alma inocente
Quando ela fala.Minha alma, já semimorta,
Conseguira ao céu alçá-la
Porque o céu abre uma porta
Quando ela fala.
Carta a Manoel
Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,
Foi Coimbra. Foi esta paysagem triste, triste,
A cuja influencia a minha alma não reziste,
Queres noticias? Queres que os meus nervos fallem?
Vá! dize aos choupos do Mondego que se callem…
E pede ao vento que não uive e gema tanto:
Que, emfim, se soffre abafe as torturas em pranto,
Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas
Quanto isto me faz mal! Peor que as sabbatinas
Dos ursos na aula, peor que beatas correrias
De velhas magras, galopando Ave-Marias,
Peor que um diamante a riscar na vidraça!
Peor eu sei lá, Manoel, peor que uma desgraça!
Hysterisa-me o vento, absorve-me a alma toda,
Tal a menina pelas vesperas da boda,
Atarefada mail-a ama, a arrumar…
O vento afoga o meu espirito n’um mar
Verde, azul, branco, negro, cujos vagalhões
São todos feitos de luar, recordações.
Á noite, quando estou, aqui, na minha toca,
O grande evocador do vento evoca, evoca
Nosso verão magnifico, este anno passado,
(E a um canto bate,
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Guerra & Paz
Pedidos sacrifícios, as imagens
Foram trazidas na maré, enxutas.
Treme a escada torpe, e o cão ladra –
São os antepassados, fixos,
Na água das janelas.
Que podemos fazer, o fumo
Entra nas casas é preciso
Uma porta que nos leve ao mar.
Portugal
Maior do que nós, simples mortais, este gigante
foi da glória dum povo o semideus radiante.
Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado,
seu torrão dilatou, inóspito montado,
numa pátria… E que pátria! A mais formosa e linda
que ondas do mar e luz do luar viram ainda!
Campos claros de milho moço e trigo loiro;
hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro;
trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas;
nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas;
gados nédios; colinas brancas olorosas;
cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas;
selvas fundas, nevados píncaros, outeiros
de olivais; por nogais, frautas de pegureiros;
rios, noras gemendo, azenhas nas levadas;
eiras de sonho, grutas de génios e de fadas:
riso, abundância, amor, concórdia, Juventude:
e entre a harmonia virgiliana um povo rude,
um povo montanhês e heróico à beira-mar,
sob a graça de Deus a cantar e a lavrar!
Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias
conchegadinhas sempre ao torreão de ameias.
Cada vila um castelo. As cidades defesas
por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas;
e, a dar fé, a dar vigor,