Passagens sobre Quotidiano

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Frases sobre quotidiano, poemas sobre quotidiano e outras passagens sobre quotidiano para ler e compartilhar. Leia as melhores citações em Poetris.

Não Será Tempo de Voltarmos aos Sentidos?

Não somos apenas o nosso corpo, estamos também integrados num corpus social, que solicita, expande e reprime a nossa sensibilidade. Basta ouvir aquele que foi o maior teórico da comunicação do século XX, Marshall McLuhan, para perceber até que ponto isso é aproveitado pela sociedade de comunicação global, para quem o indivíduo passa a ser uma presa. O que diz McLuhan sobre a televisão, por exemplo, é imensamente elucidativo: «Um dos efeitos da televisão é retirar a identidade pessoal. Só por ver televisão, as pessoas tornam-se num grupo coletivo de iguais. Perdem o interesse pela singularidade pessoal.» Se repararmos, os meios que lideram a comunicação humana contemporânea (da televisão ao telefone, do e-mail às redes sociais) interagem apenas com aqueles dos nossos sentidos que captam sinais à distância: fundamentalmente a visão e a audição. Origina-se assim uma descontrolada hipertrofia dos olhos e ouvidos, sobre os quais passa a recair toda a responsabilidade pela participação no real. «Viste aquilo?», «já ouviste a última do…»: os nossos quotidianos são continuamente bombardeados pela pressão do ver e do ouvir. O mesmo se passa com a locomoção: seja a pilotar um avião, a conduzir um automóvel, ou seja o peão a deslocar-se nas artérias das cidades modernas,

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Uma Declaração de Amor

Uma declaração de amor não é acontecimento do domínio público, uma baleia que vara na praia sob o sol dos desastres e convoca multidões, desalinhando hábitos quotidianos; uma declaração de amor é um acto de grande intimidade que ergue um véu transparente de onde brotam mel e pássaros azuis. As palavras directas ou indirectas, ditas ou escritas, suscitam a carícia única, irrepetível, a leve percussão que desenha no silêncio a imagem do que se ama. E assim terá de se guardar. Num lugar seguro onde os sismos não possam encontrar o mapa do tesouro.

Eu quero a verdade que só me é dada através do seu oposto, de sua inverdade. E não aguento o quotidiano. Deve ser por isso que escrevo. Minha vida é um único dia.

A Inutilidade da Crítica

Que a obra de boa qualidade sempre se destaca é uma afirmação sem valor, se aplicada a uma obra de qualidade realmente boa e se por “destaca” quer-se fazer referência à aceitação na sua própria época. Que a obra de boa qualidade sempre se destaca, no curso de sua futuridade, é verdadeiro; que a obra de boa qualidade, mas de segunda ordem sempre se destaca na sua própria época, é também verdadeiro.
Pois como há-de um crítico julgar? Quais as qualidades que formam, não o incidental, mas o crítico competente? Um conhecimento da arte e da literatura do passado, um gosto refinado por esse conhecimento, e um espírito judicioso e imparcial. Qualquer coisa menos do que isto é fatal ao verdadeiro jogo das faculdades críticas. Qualquer coisa mais do que isto é já espírito criativo e, portanto, individualidade; e individualidade significa egocentrismo e certa impermeabilidade ao trabalho alheio.
Quão competente é, porém, o crítico competente? Suponhamos que uma obra de arte profundamente original surja diante dos seus olhos. Como a julga ele? Comparando-a com as obras de arte do passado. Se for original, porém afastar-se-á em alguma coisa — e quanto mais original mais se afastará — das obras de arte do passado.

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Se Fosse Alguma Coisa, Não Poderia Imaginar

Monotonizar a existência, para que ela não seja monótona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distracção. No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu.
Mas reconheço, entre dois lançamentos, que se tivesse tudo isso, nada disso seria meu.

Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis do Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis do Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me restaria de possível ?
(…) Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de o ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não o deixa sentir.

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Faltam-nos hoje não apenas mestres da vida interior, mas simplesmente da vida, de uma vida total, de uma existência digna de ser vivida. Faltam cartógrafos e testemunhas do coração humano, dos seus infindos e árduos caminhos, mas também dos nossos quotidianos, onde tudo não é e é extraordinariamente simples. Falta-nos uma nova gramática que concilie no concreto os termos que a nossa cultura tem por inconciliáveis: razão e sensibilidade, eficácia e afetos, individualidade e compromisso social, gestão e compaixão, espiritualidade e sentidos, eternidade e instante. Será que do instante dos sentidos podemos fazer uma mística? Não tenhamos dúvidas: o que está dito permanece ainda por dizer.

Leia, Ouça, Veja, mas sobretudo, Pense

Se grandes invenções ou descobertas, como o fogo, a roda ou a alavanca, se fizeram antes que o homem fosse, historicamente, capaz de escrever, também se põe como fora de dúvida que mais rapidamente se avançou quando foi possível fixar inteligência em escrita, quando o saber se pôde transmitir com maior fidelidade do que oralmente, quando biblioteca, em qualquer forma, foi testamento do passado e base de arranque para o futuro. A livro se veio juntar arquivo, para o que mais ligeiro se afigurava; e fora de bibliotecas ou arquivos ficaram os milhões de páginas de discorrer ou emoção humana que mais ligeiras pareceram ainda, ou menos duradouras. Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço, e os limitados braços se põem a abraçar o mundo; a riqueza de outros nos enriquece a nós. Leia.
Milhões de homens, porém, no mundo actual estão incapacitados de escrever e de ler, muito menos porque faltam métodos e meios do que incitamento que os levante acima do seu tão difícil quotidiano e vontade de quem mais pode de que seus reais irmãos mais dependam de si próprios do que de exteriores e quase sempre enganadoras salvações. Mais se comunica falando do que de qualquer outra forma;

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A Escrita Exige Sempre a Poesia

Sou escritor e cientista. Vejo as duas actividades, a escrita e a ciência, como sendo vizinhas e complementares. A ciência vive da inquietação, do desejo de conhecer para além dos limites. A escrita é uma falsa quietude, a capacidade de sentir sem limites. Ambas resultam da recusa das fronteiras, ambas são um passo sonhado para lá do horizonte. A Biologia para mim não é apenas uma disciplina científica mas uma história de encantar, a história da mais antiga epopeia que é a Vida. É isso que eu peço à ciência: que me faça apaixonar. É o mesmo que eu peço à literatura.

Muitas vezes jovens me perguntam como se redige uma peça literária. A pergunta não deixa de ter sentido. Mas o que deveria ser questionado era como se mantém uma relação com o mundo que passe pela escrita literária. Como se sente para que os outros se representem em nós por via de uma história? Na verdade, a escrita não é uma técnica e não se constrói um poema ou um conto como se faz uma operação aritmética. A escrita exige sempre a poesia. E a poesia é um outro modo de pensar que está para além da lógica que a escola e o mundo moderno nos ensinam.

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O Individual como Base do Colectivo

Tudo quanto é apenas colectivo é desordem. A ordem vem da composição individual. Mas a composição individual para formar em si a ordem necessita de que esta também se projecte no colectivo.
A expressão do colectivo é o pânico. O terror só se submete pelo terror. O pânico tem duas expressões de terror: a centrífuga e a centrípeta. A expressão que se desfaz a si mesma e a que permanece estática e se adentra.

A única maneira de aparentar a ordem no colectivo é manejar o pânico. Mas como todo o estado psíquico, por mais inteiro que se apresente tende a suavizar-se se era violento e a tornar-se violento se era suave, é necessário para manter o estado de pânico, que se lhe estabeleçam tantas modalidades diferentes e sucessivas que consigam realmente fazer desviar as atenções da sua insistência. Porém, este processo não tem fim. É o processo da mística colectiva. Filha do desespero individual, a mística colectiva não faz alterar a realidade mas consegue temporáriamente submeter todos os indivíduos às mesmas circunstâncias. E até que se formem as novas élites as místicas colectivas são espera.
Ao vermos os grandes exércitos, reluzentes nas paradas ou disfarçados com a própria cor da terra das batalhas,

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O Amor Social

É necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena sermos bons e honestos. Vivemos já muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade; chegou o momento de reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos serviu. Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por nos colocar uns contra os outros, na defesa dos próprios interesses, provoca o despertar de novas formas de violência e crueldade e impede o desenvolvimento de uma verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente.

O exemplo de Santa Teresa de Lisieux convida-nos a pôr em prática o pequeno caminho do amor, a não perder a oportunidade de uma palavra gentil, de um sorriso, de qualquer pequeno gesto que semeie paz e amizade. Uma ecologia integral é feita também de simples gestos quotidianos, pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do egoísmo. Pelo contrário, o mundo do consumo exacerbado é, simultaneamente, o mundo que maltrata a vida em todas as suas formas.

O amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político,

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A TV Como Instrumento Redutor

Porque é que a TV foi essa «caixinha que revolucionou o mundo»? Faço a pergunta e as respostas vêm em turbilhão. Fez de tudo um espectáculo, fez do longe o mais perto, promoveu o analfabetismo e o atraso mental. De um modo geral, desnaturou o homem. E sobretudo miniturizou-o, fazendo de tudo um pormenor, isturado ao quotidiano doméstico. Porque mesmo um filme ou peça de teatro ou até um espectáculo desportivo perdem a grandeza e metafísica de um largo espaço de uma comunidade humana.

Já um acto religioso é muito diferente ao ar livre ou no interior de uma catedral. Mas a TV é algo de minúsculo e trivial como o sofá donde a presenciamos. Diremos assim e em resumo que a TV é um instrumento redutor. Porque tudo o que passa por lá chega até nós diminuído e desvalorizado no que lhe é essencial. E a maior razão disso não está nas reduzidas dimensões do ecrã, mas no facto de a «caixa revolucionadora» ser um objecto entre os objectos de uma sala.

Mas por sobre todos os males que nos infligiu, ergue-se o da promoção do analfabetismo. Ser é um acto difícil e olhar o boneco não dá trabalho nenhum.

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Educar ajuda a não ceder aos enganos de quem quer fazer crer que o trabalho, o empenhamento quotidiano, o dom de nós mesmos e o estudo não têm valor. Hoje, no mundo trabalho – mas também nos outros meios – é urgente ensinar a percorrer o caminho, luminoso e exigente, da honestidade, fugindo aos atalhos do favoritismo e das recomendações.

A Realidade em Coro

A realidade sempre me atraiu como um íman, torturando-me e hipnotizando-me, e eu queria capturá-la no papel. Comecei então a apropriar-me imediatamente deste género de vozes humanas e confissões, de evidências de testemunhas e documentos. Isto é como eu vejo e ouço o mundo – como um coro de vozes individuais e uma colagem de detalhes quotidianos. Desta forma, todo o meu potencial mental e emocional é realizado em pleno. Desta forma eu posso ser, simultaneamente, uma escritora, uma jornalista, uma socióloga, uma psicóloga e uma pregadora.

Lá fora passarão civilizações, escacharão revoltas, turbilhonarão festas, correrão mansos quotidianos povos.. E nós, ó meu amor irreal, teremos sempre o mesmo gesto inútil, a mesma existência falsa.

Homens de ação, cujos pensamentos estão demasiado absorvidos pelo trabalho quotidiano para verem algo além disso. São essencialmente homens, não podemos passar sem eles, e, no entanto, não devemos permitir que toda a nossa visão seja cerceada pelas limitações de homens de ação.

O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses.

Seguimos a Multidão

Nos nossos contactos quotidianos seguimos a multidão, deixamo-nos levar por esperanças e temores subalternos, tornamo-nos vítimas das nossas próprias técnicas e implementos, e desusamos o acesso que temos ao oráculo divino. É apenas enquanto a alma dorme que nos servimos dos préstimos de tantas maquinarias e muletas engenhosas. De que servem os telégrafos? Qual a utilidade dos jornais? O homem sábio não aguarda os correios nem precisa ler telegramas para descobrir como se sentem os homens no Kansas ou na Califórnia durante uma crise social. Ele ausculta o seu próprio coração. Se eles são feitos como ele é, se respiram o mesmo ar e comem o mesmo trigo, se têm mulheres e filhos, ele sabe que a sua alegria e ressentimento atingem o mesmo ponto que o seu. A alma íntegra está em perpétua comunicação telegráfica com a fonte dos acontecimentos, dispõe de informação antecipada, qual despacho particular, que a exime e alivia do terror que oprime o restante da comunidade.

O quotidiano contém em si o abuso do quotidiano: o quotidiano tem a tragédia do tédio da repetição. Mas há uma escapatória: é que a grande realidade é fora de série, como um sonho nas entranhas do dia.