Minha Mãe, Minha Mãe!
Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,
E a Lua branca, além, por entre as oliveiras,
Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!…
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,
Eu balbuciava a minha infantil oração,
Pedindo ao Deus que está no azul do firmamento
Que mandasse um alívio a cada sofrimento,
Que mandasse uma estrela a cada escuridão.
Por todos eu orava e por todos pedia.
Pelos mortos no horror da terra negra e fria,
Por todas as paixões e por todas as mágoas…
Pelos míseros que entre os uivos das procelas
Vão em noite sem Lua e num barco sem velas
Errantes através do turbilhão das águas.
Passagens sobre Saudades
548 resultadosNa Ribeira Do Eufrates Assentado
Na ribeira do Eufrates assentado,
discorrendo me achei pela memória
aquele breve bem, aquela glória,
que em ti, doce Sião, tinha passado.Da causa de meus males perguntado
me foi: Como não cantas a história
de teu passado bem, e da vitória
que sempre de teu mal hás alcançado?Não sabes, que a quem canta se lhe esquece
o mal, inda que grave e rigoroso?
Canta, pois, e não chores dessa sorte.Respondo com suspiros: Quando crece
a muita saudade, o piadoso
remédio é não cantar senso a morte.
Mocidade
Ah! esta mocidade! — Quem é moço
Sente vibrar a febre enlouquecida
Das ilusões, da crença mais florida
Na muscular artéria de Colosso…Das incertezas nunca mede o poço…
Asas abertas — na amplidão da vida,
Páramo a dentro — de cabeça erguida,
Vê do futuro o mais alegre esboço…Chega a velhice, a neve das idades
E quem foi moço, volve, com saudades,
Do azul passado, o fulgido compêndio…Ai! esta mocidade palpitante,
Lembra um inseto de ouro, rutilante,
Em derredor das chamas de um incêndio!
Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade Solto para onde estás, e fico de ti perto! Como, depois do sonho, é triste a realidade! Como tudo, sem ti, fica depois deserto! Trecho- O Sonho
Poeta Castrado, Não!
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:Da fome já não se fala
– é tão vulgar que nos cansa –
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?Do frio não reza a história
– a morte é branda e letal –
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
O Valor da Crónica de Jornal
A crónica é como que a conversa íntima, indolente, desleixada, do jornal com os que o lêem: conta mil coisas, sem sistema, sem nexo, espalha-se livremente pela natureza, pela vida, pela literatura, pela cidade; fala das festas, dos bailes, dos teatros, dos enfeites, fala em tudo baixinho, como quando se faz um serão ao braseiro, ou como no Verão, no campo, quando o ar está triste. Ela sabe anedotas, segredos, histórias de amor, crimes terríveis; espreita, porque não lhe fica mal espreitar. Olha para tudo, umas vezes melancolicamente, como faz a Lua, outras vezes alegre e robustamente, como faz o Sol; a crónica tem uma doidice jovial, tem um estouvamento delicioso: confunde tudo, tristezas e facécias, enterros e actores ambulantes, um poema moderno e o pé da imperatriz da China; ela conta tudo o que pode interessar pelo espírito, pela beleza, pela mocidade; ela não tem opiniões, não sabe do resto do jornal; está nas suas colunas contando, rindo, pairando; não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do crítico; tem uma pequena voz serena, leve e clara, com que conta aos seus amigos tudo o que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando.
Olhos de Lobas
Teus olhos lembram círios
Acesos n’um cemitério…Têm um fulgor estranho singular
Os teus olhos febris… Incendiados!…Como os Clarões Finais… – Exaustinados
Dos restos dos archotes, desdeixados…
— Nas criptas d’um Jazigo Tumular!…— Como a Luz que na Noute Misteriosa
— Fantástica – Fulgisse nas Ogivas
Das Janelas de Estranho Mausoléu!…— Mausoléu, das Saudades do Ideal!…
— Oh Saudades… Oh Luz Transcendental!
— Oh memórias saudosas do Ido ao Céu!…— Oh Pérpetuas Febris!… – Oh Sempre Vivas!…
— Oh Luz do Olhar das Lobas Amorosas!…
Estes Sítios!
Olha bem estes sítios queridos,
Vê-os bem neste olhar derradeiro…
Ai! o negro dos montes erguidos,
Ai! o verde do triste pinheiro!
Que saudade que deles teremos…
Que saudade! ai, amor, que saudade!
Pois não sentes, neste ar que bebemos,
No acre cheiro da agreste ramagem,
Estar-se alma a tragar liberdade
E a crescer de inocência e vigor!
Oh! aqui, aqui só se engrinalda
Da pureza da rosa selvagem,
E contente aqui só vive Amor.
O ar queimado das salas lhe escalda
De suas asas o níveo candor,
E na frente arrugada lhe cresta
A inocência infantil do pudor.
E oh! deixar tais delícias como esta!
E trocar este céu de ventura
Pelo inferno da escrava cidade!
Vender alma e razão à impostura,
Ir saudar a mentira em sua corte,
Ajoelhar em seu trono à vaidade,
Ter de rir nas angústias da morte,
Chamar vida ao terror da verdade…
Ai! não, não… nossa vida acabou,
Nossa vida aqui toda ficou
Diz-lhe adeus neste olhar derradeiro,
Dize à sombra dos montes erguidos,
Dize-o ao verde do triste pinheiro,
Há quem tenha saudades da crítica literária, substituída pela crítica universitária.
Saudades Trágico-Marítimas
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Na praia, de bruços,
fico sonhando, fico-me escutando
o que em mim sonha e lembra e chora alguém;
e oiço nesta alma minha
um longínquo rumor de ladainha,
e soluços,
de além…Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
São meus Avós rezando,
que andaram navegando e que se foram,
olhando todos os céus;
são eles que em mim choram
seu fundo e longo adeus,
e rezam na ânsia crua dos naufrágios;
choram de longe em mim, e eu oiço-os bem,
choram ao longe em mim sinas, presságios,
de além, de além…Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Naufraguei cem vezes já…
Uma, foi na nau S. Bento,
e vi morrer, no trágico tormento,
Dona Leonor de Sá:
vi-a nua, na praia áspera e feia,
com os olhos implorando
– olhos de esposa e mãe –
e vi-a, seus cabelos desatando,
cavar a sua cova e enterrar-se na areia.
– E sozinho me fui pela praia além…
Idílio
Praias, que banha o Tejo caudaloso:
Ondas, que sôbre a areia estais quebrando:
Ninfas, que ides escumas levantando:
Escutai os suspiros dum saüdoso.E vós também, ó côncavos rochedos,
Que dos ventos em vão sois combatidos,
Ouvi o triste som de meus gemidos,
já que de Amor calais tantos segredos.Ai, amada Tircéa, se eu pudera
os teus formosos olhos ver agora,
Que depressa o pesar, que esta alma chora,
No gôsto mais feliz se convertera!Oh, como então ficaras conhecendo
Quanto te amo, se visses a violência
Com que estão de meus olhos nesta ausência
Estas saüdosas lágrimas correndo!Tanto neste pesar, que estou sentindo,
O triste coração se desfalece,
e tanto me atormenta, que parece
Que ao sofrimento a alma vai fugindo.Mas oh, qual há de ser a crueldade
Deste terrível mal, em que ando envolto,
Se a qualquer parte, emfim, que os olhos volto,
Imagens estou vendo de saudade.
LXXV
Clara fonte, teu passo lisonjeiro
Pára, e ouve-me agora um breve instante;
Que em paga da piedade o peito amante
Te será no teu curso companheiro.Eu o primeiro fui, fui o primeiro,
Que nos braços da ninfa mais constante
Pude ver da fortuna a face errante
Jazer por glória de um triunfo inteiro.Dura mão, inflexível crueldade
Divide o laço, com que a glória, a dita
Atara o gosto ao carro da vaidade:E para sempre a dor ter n’alma escrita,
De um breve bem nasce imortal saudade,
De um caduco prazer mágoa infinita.
Conto de Fadas
Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, Amor!
E para as tuas chagas o unguento
Com que sarei a minha própria dor.Os meus gestos são ondas de Sorrento…
Trago no nome as letras de uma flor…
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento…Dou-te o que tenho: o astro que dormita,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é d’oiro, a onda que palpita.Dou-te comigo o mundo que Deus fez!
– Eu sou Aquela de quem tens saudade,
A Princesa do conto: “Era uma vez…”
As Saudades Curtas
Também as versões-formiga dos maiores sentimentos têm tanto direito ao respeito como os leões e as impalas. Até por serem muito mais numerosas e frequentes, como está a multidão de insectos para com a pequena minoria dos vertebrados.
A minha formiguinha emocional são as saudades curtas que eu tenho da Maria João. Plenas não posso ter, graças a ela e a Deus, porque são poucos os momentos em que ela não está comigo. Mesmo não sendo muitas, essas faltas, por muito felizmente pequenas e provocadas pela necessidade, são suficientes para incutir em mim a dor, nem que seja por cinco minutos apenas, de estar separado dela.
Parecem estúpidas as saudades curtas. São certamente insensíveis e solipsistas, perante as saudades longas e profundas, que não têm cura nem, por serem insolúveis, têm a esperança de, um dia, deixarem de existir.
São saudades de uma hora, de um almoço perdido, de uma tarde interrompida. Parecem irracionais e ingratas, estas saudades curtas, de que sofrem as pessoas apaixonadas e felizes ou infelizes.
Mas não são. Daqui a um X número de horas, vou morrer. Daqui a um Y número de horas, vai morrer a Maria João. Morra quem morra,
Dos nossos planos é que tenho mais saudade.
Ter saudades do passado é correr atrás do vento.
Só faz versos quem tem a alma cheia de saudades ou de esperanças.
Meu Bebé para Dar Dentadas
Meu Bebé pequeno e rabino:
Cá estou em casa, sozinho, salvo o intelectual que está pondo o papel nas paredes (pudera! havia de ser no tecto ou no chão!); e esse não conta. E, conforme prometi, vou escrever ao meu Bebezinho para lhe dizer, pelo menos, que ela é muito má, excepto numa cousa, que é na arte de fingir, em que vejo que é mestra.
Sabes? Estou-te escrevendo mas «não estou pensando em ti». Estou pensando nas saudades que tenho do meu tempo da «caça aos pombos»; e isto é uma cousa, como tu sabes, com que tu não tens nada…
Foi agradável hoje o nosso passeio — não foi? Tu estavas bem-disposta, e eu estava bem-disposto, e o dia estava bem-disposto também. (O meu amigo, Sr. A.A. Crosse está de saúde — uma libra de saúde por enquanto, o bastante para não estar constipado.)
Não te admires de a minha letra ser um pouco esquisita. Há para isso duas razões. A primeira é a de este papel (o único acessível agora) ser muito corredio, e a pena passar por ele muito depressa; a segunda é a de eu ter descoberto aqui em casa um vinho do Porto esplêndido,
Ruínas
Cobrem plantas sem flor crestados muros;
Range a porta anciã; o chão de pedra
Gemer parece aos pés do inquieto vate.
Ruína é tudo: a casa, a escada, o horto,
Sítios caros da infância.
Austera moça
Junto ao velho portão o vate aguarda;
Pendem-lhe as tranças soltas
Por sobre as roxas vestes.
Risos não tem, e em seu magoado gesto
Transluz não sei que dor oculta aos olhos;
— Dor que à face não vem, — medrosa e casta,
Íntima e funda; — e dos cerrados cílios
Se uma discreta muda
Lágrima cai, não murcha a flor do rosto;
Melancolia tácita e serena,
Que os ecos não acorda em seus queixumes,
Respira aquele rosto. A mão lhe estende
O abatido poeta. Ei-los percorrem
Com tardo passo os relembrados sítios,
Ermos depois que a mão da fria morte
Tantas almas colhera. Desmaiavam,
Nos serros do poente,
As rosas do crepúsculo.
“Quem és? pergunta o vate; o sol que foge
No teu lânguido olhar um raio deixa;
— Raio quebrado e frio; — o vento agita
Tímido e frouxo as tuas longas tranças.
A saudade é um parafuso que quando a rosca cai só entra se for torcendo porque batendo não vai. Mas quando enferruja dentro nem distorcendo não sai.