Textos sobre Sociedade

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Textos de sociedade escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

O Homem não Deseja a Paz

Que estranho bicho o homem. O que ele mais deseja no convívio inter-humano não é afinal a paz, a concórdia, o sossego colectivo. O que ele deseja realmente é a guerra, o risco ao menos disso, e no fundo o desastre, o infortúnio. Ele não foi feito para a conquista de seja o que for, mas só para o conquistar seja o que for. Poucos homens afirmaram que a guerra é um bem (Hegel, por exemplo), mas é isso que no fundo desejam. A guerra é o perigo, o desafio ao destino, a possibilidade de triunfo, mas sobretudo a inquietação em acção. Da paz se diz que é «podre», porque é o estarmos recaídos sobre nós, a inactividade, a derrota que sobrevém não apenas ao que ficou derrotado, mas ainda ou sobretudo ao que venceu. O que ficou derrotado é o mais feliz pela necessidade iniludível de tentar de novo a sorte. Mas o que venceu não tem paz senão por algum tempo no seu coração alvoroçado. A guerra é o estado natural do bicho humano, ele não pode suportar a felicidade a que aspirou. Como o grupo de futebol, qualquer vitória alcançada é o estímulo insuportável para vencer outra vez.

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A Sociabilidade é Proporcional à Vulgaridade

O homem inteligente aspirará, antes de tudo, à ausência de dor, à serenidade, ao sossego e ao ócio, logo, procurará uma vida tranquila, modesta e o menos conflituosa possível; por conseguinte, após travar algum conhecimento com aqueles que chamamos de homens, escolherá o reatraimento e, no caso de um grande espírito, até a solidão. Pois, quanto mais alguém tem em si mesmo, menos precisa do mundo exterior e menos também os outros lhe podem ser úteis. Por isso, a eminência do espírito conduz à insociabilidade. Sim, se a qualidade da sociedade pudesse ser substituída pela quantidade, valeria a pena viver até no grande mundo, mas infelizmente cem néscios empilhados não dão um único homem razoável. Já aquele que está no outro extremo, assim que a necessidade lhe permitir recobrar o ânimo, procurará passatempo e companhia a qualquer preço, e a tudo se acomodará facilmente, de nada fugindo a não ser de si.
Pois é na solidão, onde cada um está entregue a si mesmo, que se mostra o que ele tem em si mesmo. Nela, sob a púrpura, o simplório suspira, carregando o fardo irremovível da sua mísera individualidade, enquanto o mais talentoso povoa e vivifica com os seus pensamentos o ambiente mais ermo.

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O Adoçamento da Pílula Vocabular

É curioso verificar através da língua — espelho fiel de cada sociedade e de cada época — como em certos aspectos essenciais da vida não houve práticamente progresso nenhum, consistindo tudo quanto se fez num puro e vazio eufemismo de designação. Escravo, servo, criado, empregado, assalariado … ; demoníaco, possesso, maluco, doido, doente, nevrosado…

A Amizade como Auxiliar da Virtude

A maioria dos homens, na sua injustiça, para não dizer na sua imprudência, quer possuir amigos tais como eles próprios não seriam. Exigem o que não têm. O que é justo é que, primeiro, sejamos homens de bem e em seguida procuremos o que nos pareça sê-lo. Só entre homens virtuosos se pode estabelecer esta conveniência em amizade, sobre a qual insisto há muito tempo. Unidos pela benevolência, guiar-se-ão nas paixões a que se escravizam os outros homens. Amarão a justiça e a equidade. Estarão sempre prontos a tudo empreender uns pelos outros, e não se exigirão reciprocamente nada que não seja honesto e legítimo. Enfim, terão uns para os outros, não somente deferências e ternuras, mas, também, respeito. Eliminar o respeito da amizade é podar-lhe o seu mais belo ornamento.
É pois erro funesto crer que a amizade abre via livre às paixões e a todos os géneros de desordens. A natureza deu-nos a amizade, não como cumplice do vício, mas como auxiliar da virtude.
A fim de que a virtude, que, sozinha, não poderia chegar ao ápice, pudesse atingi-lo com o auxílio e o apoio de tal companhia. Aqueles para quem esta aliança existe, existiu ou existirá,

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Amor não Tem Número

Se você não tomar cuidado vira número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classificam-no com um número. Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com número, e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento — tudo é número.
Se é dos que abrem crediário, para eles você é um número. Se tem propriedade, também. Se é sócio de um clube tem um número. Se é imortal da Academia Brasileira de Letras tem o número da cadeira.
É por isso que vou tomar aulas particulares de Matemática. Preciso saber das coisas. Ou aulas de Física. Não estou brincando: vou mesmo tomar aulas de Matemática, preciso saber alguma coisa sobre cálculo integral.
Se você é comerciante, seu alvará de localização o classifica também.
Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência também é solicitado por um número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negócio recebe um número. Para tomar um avião,

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Toda a Comunidade nos Torna Vulgares

Viver com uma imensa e orgulhosa calma; sempre para além. – Ter e não ter, arbitrariamente, os seus afectos, o seu pró e contra, condescender com eles por umas horas; montar sobre eles como em cavalos, frequentemente como em burros; – é que se deve saber aproveitar a sua estupidez tal como a sua fogosidade. Conservar os seus trezentos primeiros planos; também os óculos escuros; pois há casos em que ninguém nos deve olhar nos olhos e muito menos ainda nas nossas «razões». E escolher, para companhia, aquele vício matreiro e sereno, a cortesia. E ficar senhor das suas quatro virtudes, a coragem, a perspicácia, a simpatia, a solidão. Pois a solidão é entre nós uma virtude, como tendência e impulso sublimes do asseio que adivinha como, no contacto de homem para homem – «em sociedade» – tudo é, inevitavelmente, sujo, Toda a comunidade nos torna de qualquer modo, em qualquer parte, em qualquer altura – «vulgares».

Os Professores

O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegámos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos actualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.

O material que é trabalhado pelos professores não pode ser quantificado. Não há números ou casas decimais com suficiente precisão para medi-lo. A falta de quantificação não é culpa dos assuntos inquantificáveis, é culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores não vendem o material que trabalham, oferecem-no. Nós, com o tempo, com os anos, com a distância entre nós e nós, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos esse material. Por ironia ou capricho, é nesse momento que o trabalho dos professores se efectiva.

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A Moralidade Pública Degradada

As crianças ficam todas contentes quando encontram na praia alguns calhaus coloridos; nós preferimos enormes colunas variegadas, importadas das areias do Egipto ou dos desertos do Norte de África para a construção de algum pórtico ou de um salão de banquetes com capacidade para uma multidão. Olhamos com admiração paredes recobertas de placas de mármore, embora cientes do material que lá está por baixo. Iludimos os nossos próprios olhos: quando recobrimos os tectos a ouro o que fazemos senão deleitar-nos com uma mentira ? Sabemos bem que por baixo desse ouro se oculta reles madeira! Mas não são só as paredes ou os tectos que se recobrem de uma ligeira camada: também a felicidade destes aparentes grandes da nossa sociedade é uma felicidade «dourada»! Observa atentamente, e verás a corrupção que se esconde sob essa leve capa de dignidade. Desde que o dinheiro (que tanto atrai a atenção de inúmeros magistrados e juízes e tantos mesmo promove a magistrados e juízes!…), desde que o dinheiro, digo, começou a merecer honras, a honra autêntica começou a perder terreno; alternadamente vendedores ou objectos postos à venda, habitua-mo-nos a perguntar pela quantidade, e não pela qualidade das coisas. Somos boas pessoas por interesse,

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Novo Ano

Eu desejaria que o Novo Ano trouxesse no ventre morte, peste e guerra. Morte à senilidade idealista e à retórica embalsamada; peste para um certo código cultural que age sobre os grupos e os transforma em colectividades emocionais; guerra à recuperação da personalidade duma cultura extinta que nada tem a ver com a cultura em si mesma.

Eu desejaria que o Novo Ano trouxesse nos braços a vida, a energia e a paz. Vida o suficientemente despersonalizada no caudal urbano para que os desvios individuais não sejam convite ao eterno controlo e expressão das pessoas; energia para desmascarar o sectarismo da sociedade secularizada em que o estado afectivo é mais forte do que a acção; paz para os homens de boa e de má vontade.

(31 de

Mensagem aos Portugueses

O que quero de todos os portugueses é o seguinte: sejam curiosos; e que a organização em sociedade possa ser de tal maneira que eles possam satisfazer essa curiosidade completamente. E não para ganhar dinheiro, não para fazer figura, nem para ganhar cargo, mas para ser plenamente aquilo que é. Alguma coisa que ele sinta que o está desenvolvendo na mensagem única que tem que dar do mundo, de maneira que a minha mensagem para qualquer aluno de qualquer escola é: faça favor de cuidar da sua mensagem e não da minha. A minha foi, é só para dizer «cuide da sua», porque essa é que tem importância. E a mensagem será vossa na medida em que for o mais diferente possível da minha, ou de qualquer outra. Senão, para quê duplicados no mundo? Não é preciso. Para isso é que inventaram os carimbos. Eu não sou um carimbo de ninguém.

Nunca Mostrar Espírito e Entendimento

Como ainda é inexperiente quem supõe que, ao mostrar espírito e entendimento, recorre a um meio seguro para fazer-se benquisto em sociedade! Na verdade, na maioria das pessoas, tais qualidades despertam ódio e rancor, que serão tão mais amargos quanto quem os sentir não tiver o direito de externar o motivo, chegando até a dissimulá-lo para si mesmo. Isso acontece da seguinte forma: se alguém nota e sente uma grande superioridade intelectual naquele com quem fala, então conclui tacitamente e sem consciência clara que este, em igual medida, notará e sentirá a sua inferioridade e a sua limitação. Essa conclusão desperta o ódio, o rancor e a raiva mais amarga.
(…) Mostrar espírito e entendimento é uma maneira indirecta de repreender nos outros a sua incapacidade e estupidez. Ademais, o indivíduo comum revolta-se ao avistar o seu oposto, sendo a inveja o seu instigador secreto. A satisfação da vaidade é, como se pode ver diariamente, um prazer que as pessoas colocam acima de qualquer outro, mas que só é possível por intermédio da comparação delas próprias com os demais. No entanto, nenhum mérito torna o homem mais orgulhoso do que o intelectual: só neste repousa a sua superioridade em relação aos animais.

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A Felicidade Pertence aos que se Bastam a si Próprios

Cada um deve ser e proporcionar a si mesmo o melhor e o máximo. Quanto mais for assim e, por conseguinte, mais encontrar em si mesmo as fontes dos seus deleites, tanto mais será feliz. Com o maior dos acertos, diz Aristóteles: A felicidade pertence aos que se bastam a si próprios. Pois todas as fontes externas de felicidade e deleite são, segundo a sua natureza, extremamente inseguras, precárias, passageiras e submetidas ao acaso; podem, portanto, estancar com facilidade, mesmo sob as mais favoráveis circunstâncias; isso é inevitável, visto que não podem estar sempre à mão.
Na velhice, então, quase todos se esgotam necessariamente, pois abandonam-nos o amor, o gracejo, o prazer das viagens, o prazer da equitação e a propensão para a sociedade. Até os amigos e parentes nos são levados pela morte. É quando, mais do que nunca, importa saber o que alguém tem em si mesmo. Pois isso se conservará por mais tempo. Mas também em cada idade isso é e permanece a única fonte genuína e duradoura da felicidade. Em qualquer parte do mundo, não há muito a buscar: a miséria e a dor preenchem-no, e aqueles que lhes escaparam são espreitados em todos os cantos pelo tédio.

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Um Cérebro Sempre Jovem

A sociedade está a ser varrida por um movimento chamado nova velhice. A norma social para as pessoas de idade era passiva e sombria; confinadas a cadeiras de baloiço, esperava-se que entrassem em declínio físico e mental. Agora o inverso é verdade. As pessoas mais velhas têm expetativas mais elevadas de que permanecerão ativas e com vitalidade. Consequentemente, a definição de velhice mudou. Num inquérito perguntou-se a uma amostra de baby boomers: “Quando tem início a velhice?” A resposta média foi aos 85. À medida que aumentam as expetativas, o cérebro deve claramente manter-se a par e adaptar-se à nova velhice. A antiga teoria do cérebro fixo e estagnado sustentava ser inevitável um cérebro que envelhecesse. Supostamente as células cerebrais morriam continuamente ao longo do tempo à medida que uma pessoa envelhecia, e a sua perda era irreversível.

Agora que compreendemos quão flexível e dinâmico é o cérebro, a inevitabilidade da perda celular já não é válida. No processo de envelhecimento — que progride à razão de 1% ao ano depois dos trinta anos de idade — não há duas pessoas que envelheçam de maneira igual. Até os gémeos idênticos, nascidos com os mesmos genes, terão muito diferentes padrões de atividade genética aos setenta anos,

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O Efeito Benéfico da Riqueza na Sociedade

Apesar do seu egoísmo e rapacidade, embora pensem apenas nos seus próprios interesses, embora o único fim que se propõem alcançar a partir de milhares de empregados ao seu serviço seja a gratificação dos seus próprios desejos vãos e insaciáveis, os ricos partilham com os pobres o produto de todos os seus progressos. São guiados por uma mão invisível que os leva a fazer uma distribuição dos bens necessários à vida praticamente equivalente à que teria sido feita se a terra tivesse sido dividida por todos os seus habitantes em partes iguais, e assim, sem o pretenderem ou sem que o saibam, promover o interesse da sociedade, e proporcionar os meios para a multiplicação da espécie.

Vantagens e Desvantagens dos Hábitos

Os pensamentos dos homens são muito concordantes com as suas inclinações; as suas palavras e os seus discursos concordam com as suas opiniões infusas ou apreendidas; mas as suas acções resultam daquilo a que estão acostumados. Eis porque, como Maquiavel muito bem notou (ainda que num exemplo mal inspirado), ninguém deve confiar na força da natureza, nem na jactância das palavras, se não estiverem corroboradas pelo hábito. O exemplo que ele apresenta é que, na execução de uma conspiração ousada, ninguém se deve fiar na ferocidade aparente ou nas promessas resolutas de qualquer pessoa, e que o empreendimento deve ser confiado a quem tiver já alguma vez manchado as suas mãos com sangue.
(…) A predominância do costume é por toda a parte visível; de tal maneira que ficaríamos admirados de ouvir os homens declarar, protestar, prometer, fazer solenes juramentos, e depois vê-los proceder como tinham feito antes: como se fossem imagens mortas ou engenhos movidos apenas pelas rodas do costume. Vemos também o que é o reino ou a tirania do costume.
(…) Já que o costume é o principal magistrado da vida humana, deve o homem por todos os meios prover à obtenção de bons costumes.

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A Solidão não Constitui Alimento, apenas Jejum

Se não temos aptidão para fazer amigos, remodelemo-nos até consegui-la. A solidão só vale como remédio, como jejum – não constitui alimento; o carácter, como Goethe o viu com tanta clareza, só se forma no tumulto da vida. Se nos tornamos excessivamente introspectivos, estamos na senda da perdição, ainda que o nosso negócio seja a psicologia; olhar com persistência excessiva para dentro de nós mesmos é provocar o desastre do jogador de ténis que conscientemente mede a distância, os ângulos e a força dos golpes, ou como o pianista que pensa nos dedos. Os amigos são necessários, não só porque nos ouvem, como porque se riem para nós; através dos amigos conseguimos um pouco de objectividade, um pouco de modéstia, um pouco de cortesia; com eles também aprendemos as regras da vida, tornando-nos melhores jogadores dos jogos que a compõem.
Se queres ser amado, sê modesto; se queres ser admirado, sê orgulhoso; se queres as duas coisas, usa externamente a modéstia e internamente o orgulho. Mas o próprio orgulho pode ser modesto, raramente se deixando ver, e nunca se deixando ouvir.
Não revelar muita agudeza: os epigramas tornam-se odiosos quando farpeiam fundo a carne; e adoptar como lema o De vivis nil nisi bonum.

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As Culturas de Indivíduo, Grupo, e Sociedade

O termo cultura tem associações diferentes conforme temos em mente o desenvolvimento de um indivíduo, de um grupo ou classe ou de toda uma sociedade. É parte da minha tesse que a cultura do indivíduo está dependente da cultura de um grupo ou classe, e que a cultura do grupo ou classe está dependente da cultura de toda a sociedade a que esse grupo ou classe pertence. Por isso, é a cultura da sociedade que é fundamental, e é o significado do termo «cultura» em relação a toda a sociedade que se devia examinar primeiro. Quando o termo «cultura» se aplica à manipulação de organismos inferiores – ao trabalho do bacteriologista ou do agricultor – o significado é bastante claro porque podemos obter unanimidade a respeito dos fins a serem atingidos, e podemos concordar quanto a tê-los atingidos ou não. Quando se aplica ao aperfeiçoamento do intelecto e espíritos humanos, é menos provável que concordemos em relação ao que a cultura é. O termo em si, significando alguma coisa a que se deve conscientemente aspirar em assuntos humanos, não tem uma uma história longa.

Como alguma coisa a ser alcançada com esforço deliberado, a «cultura» é relativamente inteligível quando nos preocupamos com o acto do indivíduo se autocultivar,

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Todos os Escritos Possuem um Sentido

Não queremos ter vergonha de escrever e não sentimos a necessidade de falar para não dizer nada. De resto, ainda que o desejássemos, não o conseguiríamos: ninguém pode conseguir isso. Todos os escritos possuem um sentido, mesmo que esse sentido esteja muito afastado daquele que o autor tenha pensado dar-lhe. Para nós, com efeito, o escritor não é Vestal nem Ariel: está «metido no caso», faça o que fizer, marcado, comprometido, mesmo no seu mais profundo afastamento. Se, em certas épocas, utiliza a sua arte para forjar bugigangas de inanidade bem soante, até isso é significativo: é porque há uma crise das letras e, sem dúvida, da sociedade.

Personalidade e Individualidade

Todas as sociedades se têm esforçado por nos iludir e persuadir-nos a concentrar a nossa atenção na personalidade como se ela fosse a nossa individualidade. A personalidade é aquilo que nos é dado pelos outros. A individualidade é aquilo com que nascemos e é a natureza do nosso eu: não pode ser-nos dada por ninguém, nem pode ser-nos tirada por ninguém. A personalidade pode ser dada e tirada. Consequentemente, quando nos identificamos com a nossa personalidade, começamos a ter medo de perdê-la, e sempre que surge uma fronteira além da qual temos de nos fundir, a nossa personalidade recolhe-se. É incapaz de ir além dos limites do que conhece. Trata-se de uma camada muito fina, que nos é imposta. No amor profundo, evapora-se. Numa grande amizade, é impossível discerni-la.

A morte da personalidade nunca é absoluta em nenhum tipo de comunhão.
E nós identificamo-nos com a personalidade: os nossos pais, professores, vizinhos e amigos disseram-nos que somos assim, todos moldaram a nossa personalidade e lhe deram uma forma, fazendo de nós algo que não somos e que nunca poderemos ser. Por isso, somos infelizes, vivendo enclausurados nesta personalidade. É a nossa prisão. No entanto, também temos medo de sair dela,

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Controlar a Vida a 360 Graus

Vivemos numa sociedade dominada cada vez mais pelo mito do controlo. E o seu postulado dogmático é este: a receita para uma vida realizada é a capacidade de controlá-la a 360 graus. Não percebemos até que ponto uma mentalidade assim representa a negação do princípio de realidade. Isto para dizer como somos pouco ajudados a lidar com a irrupção do inesperado que hoje o sofrimento representa. Sentimos a dor como uma tempestade estranha que se abate sobre nós, tirânica e inexplicável. Quando ela chega, só conseguimos sentir-nos capturados por ela, e os nossos sentidos tornam-se como persianas que, mesmo inconscientemente, baixamos. A luz já não nos é tão grata, as cores deixam de levar-nos consigo na sua ligeireza, os odores atormentam-nos, ignoramos o prazer, evitamos a melodia das coisas. Damos por nós ausentes nessa combustão silenciosa e fechada onde parece que o interesse sensorial pela vida arde. «A dor é tão grande, a dor sufoca, já não tem ar. A dor precisa de espaço», escreve Marguerite Duras nas páginas autobiográficas do volume a que chamou «A Dor». E descobrimo-nos mais sós do que pensávamos no meio desse incêndio íntimo que cresce. Nas etapas de sofrimento a impotência parece aprisionar enigmaticamente todas as nossas possibilidades.

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