Saber Aconselhar
Quando queres dar a entender a alguém que está errado, começa por falar-lhe doutras coisas, acabando por chegar, como por acaso, aos actos que merecem reprovação. Descreve-os, então, de modo caricatural, diz todo o mal que pensas deles, mas fá-los acompanhar de circunstâncias diferentes, de modo a que a pessoa que queres aconselhar não se sinta directamente atingida. Procura que te escute de boa vontade, sem zangar-se; alegra a conversa com algumas piadas e, se de súbito o vires fazer má cara, mostra um ar cândido e interroga-o nesse sentido. Finalmente, misturando-as com considerações diversas, aborda as souluções a considerar num caso como o que te preocupa.
Passagens sobre Ato
492 resultadosA confiança é um acto de fé, e esta dispensa raciocínio.
A literatura é essencialmente solidão. Escreve-se em solidão, lê-se em solidão e, apesar de tudo, o acto de leitura permite uma comunicação entre dois seres humanos.
Contrair dívidas é o mesmo que fazer dos outros donos dos nossos atos.
A ficar dando conselhos, é preferível dar exemplos por meio de atos. A ficar pensando hesitante, é preferível agir decididamente. Uma boa idéia não colocada em prática é uma idéia em vã.
A ignorância é o abismo da fé, porque a fé é um acto da inteligência.
Execute cada ato da sua vida como se ele fosse o último.
O Amor Certo
Penso em tudo o que os homens sentem pelas mulheres que amam e tento dizer o que nos une nesse amor. Fora dos pormenores e das particularidades. Sei que as mulheres que nos amam não nos amam de maneira diferente mas, como nunca se sabe, deixei-as de fora, falando apenas pelo meu género: a malta.
Minha amada querida. O meu pai, logo depois de se ter apaixonado pela minha mãe, disse-lhe, em pleno namoro (ela uma mulher inglesa casada, com uma filha pequena; ele um solteirão português): «Se soubesses quanto eu te amava, destruías-me já.» E disse a verdade. Era tanto o amor e o ciúme que lhe tinha, que fez mal à mulher que amava, minha mãe, e mal ao homem que a amava: ele próprio, meu pai.
O amor é um castigo: é um desespero: é um medo. O amor vai contra todos os nossos instintos de sobrevivência. Instiga-nos a cometer loucuras. Instiga-nos a comprometermo-nos. Obriga-nos a cumprir promessas que não somos capazes de cumprir. Mas cumprimos.
Eu amo-te. E não me custa. É um acto de egoísmo. Mesmo que tu me odiasses mas te odiasses tanto a ti própria que não te importasses de ficar comigo,
Controlar a Ira
Se deste vazão à ira, fica certo de que, além do mal nela implícito, revigoraste o hábito e acrescentaste lenha à fogueira. Quando és vencido por uma tentação da carne, não consideres isso simples derrota: considera, também, que revigoraste os teus hábitos dissolutos. Os hábitos e as faculdades são necessariamente afectados pelos actos correspondentes. Os que antes não existiam, agora aparecem; os demais cobram vigor e domínio. Esta é a versão que os Filósofos dão das moléstias da mente: supõe que algum dia cobiçaste ter dinheiro: se a razão, em dose suficiente para provocar a consciência do mal, intervir, a cobiça é anulada e a mente recupera imediatamente a sua autoridade original; contudo, se não recorreres a nenhum remédio, jamais poderás esperar tal recuperação; ao contrário, a próxima vez em que for excitada pelo objecto correspondente, a chama do desejo irromperá mais prontamente do que antes. Pela frequência da repetição, a mente, ao fim e ao cabo, fica calejada e, assim, esta moléstia mental produz Avareza confirmada.
Quando alguém teve febre, mesmo depois de voltar à normalidade, não se encontra nas mesmas condições de saúde que antes, a menos que a sua cura seja completa. Algo de semelhante ocorre com as moléstias da mente.
Bondade e Sabedoria devem ser Inocentes
Quando a bondade se mostra abertamente já não é bondade, embora possa ainda ser útil como caridade organizada ou como acto de solidariedade. Daí: «Não dês as tuas esmolas diante dos homens, para seres visto por eles». A bondade só pode existir quando não é percebida, nem mesmo por aquele que a faz; quem quer que se veja a si mesmo no acto de fazer uma boa obra deixa de ser bom; será, no máximo, um membro útil da sociedade ou zeloso membro de uma igreja. Daí: «Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita.»
(…) O amor à sabedoria e o amor à bondade, que se resolvem nas actividades de filosofar e de praticar boas acções, têm em comum o facto de que cessam imediatamente – cancelam-se, por assim dizer – sempre que se presume que o homem pode ser sábio ou ser bom. Sempre houve tentativas de dar vida ao que jamais pode sobreviver ao momento fugaz do próprio acto, e todas elas levaram ao absurdo.
A Castração da Personalidade
O homem é um animal gregário. Político, dizia Aristóteles, ou seja, membro da cidade. Mas não só da cidade – de todas as greis espontâneas ou artificiais, estáveis ou precárias, onde quer que se encontre. Não pode suportar a ideia de estar só, consigo – quer ser unidade e não individualidade. Tem necessidade de se sentir cotovelo com cotovelo, pele com pele, no calor de uma multidão, ligado, seguro, uniforme, conforme. Se o leão anda só, em nós predomina o instinto ovino, do rebanho – os próprios individualistas, para afirmar o seu individualismo, congregam-se: sempre segundo a prática ovina.
O homem, quando só, sente-se incompleto – tem medo. Opor-se à grei significa separar-se, permanecer só, morrer. Os conceitos do bem e do mal nascem da necessidade de convivência. É bem o que aproveita ao grupo, mal o que o prejudica ou não beneficia. O rebanho não quer que cada ovelha pense demasiado em si, e como a privilegiada é a que obtém a boa opinião das outras, vê-se forçada, ainda que contra os seus gostos e interesses, a agir no sentido do bem supremo do rebanho. Há que pagar, com a castração da personalidade, a segurança contra o medo.
Salvar a vida, até onde é possível, mesmo à custa da morte. É o acto do suicida.
Conhecer-se a Si Próprio
Conhece-te a ti próprio – eis o que é difícil. Ainda posso conhecer os outros, mas a mim mesmo não consigo conhecer-me. Um fio – instintos e um fantasma… Dos outros faço ideia mais ou menos aproximada, de mim não faço ideia nenhuma.
Há uma disparidade entre mim e mim. Há em mim o homem correcto, o homem igual a todos os homens – e o homem que lá dentro sonha, grita e é capaz, por insignificâncias, de imaginar um terramoto ou de desejar uma catástrofe. O que eu me tenho desfeito dos meus inimigos – o que é razoável – mas dos meus amigos que me fazem sombra!…
O meu verdadeiro ser não é aquele que compus, recalcando lá para o fundo os instintos e as paixões; o meu verdadeiro ser é uma árvore desgrenhada – é o fantasma que nos momentos de exaltação me leva a rasto para actos que reprovo. Só a custo o contenho. Parece que está morto, e está mais vivo que o histrião que represento. Asseguro este simulcaro até à cova com os hábitos de compressão que adquiri. Não sei se a maior parte dos homens é assim – eu sou assim: sou um fantasma desesperado.
Quantos parecem ignorar que a massa, a quem iludem, escreve com carvão as palavras, com tinta os actos.
Nunca se Escreve para Si Mesmo
O escritor não prevê nem conjectura: projecta. Acontece por vezes que espera por si mesmo, que espera pela inspiração, como se diz. Mas não se espera por si mesmo como se espera pelos outros; se hesita, sabe que o futuro não está feito, que é ele próprio que o vai fazer, e, se não sabe ainda o que acontecerá ao herói, isto quer simplesmente dizer que não pensou nisso, que não decidiu nada; então, o futuro é uma página branca, ao passo que o futuro do leitor são as duzentas páginas sobrecarregadas de palavras que o separam do fim.
Assim, o escritor só encontra por toda a parte o seu saber, a sua vontade, os seus projectos, em resumo, ele mesmo; atinge apenas a sua própria subjectividade; o objecto que cria está fora de alcance; não o cria para ele. Se relê o que escreveu, já é demasiado tarde; a sua frase nunca será a seus olhos exactamente uma coisa. Vai até aos limites do subjectivo, mas sem o transpor; aprecia o efeito dum traço, duma máxima, dum adjectivo bem colocado; mas é o efeito que produzirão nos outros; pode avaliá-lo, mas não senti-lo.
Proust nunca descobriu a homossexualidade de Charlus,
A clemência, que passa por ser uma virtude, é, umas vezes, um acto de vaidade, outras, de preguiça, muitas, resultado do medo, mas é quase sempre a combinação dos três.
O Acto de Criar
Todos queremos ser amados, mas o artista quer sê-lo de uma maneira tão total, tão desalmada, que é impossível. Por isso cria. Mas o acto de criar tem muita lama: não é limpo, é mesmo um pouco sórdido, como nascer. O que oferecemos separa-se de nós. Como um segredo violado fica parecido com algo inefável ao ser tocado por uma impura mão.
Liberdade e Constrangimento São Dois Aspectos da Mesma Necessidade
Liberdade e constrangimento são dois aspectos da mesma necessidade, que é ser aquele e não um outro. Livre de ser aquele, não livre de ser um outro. (…) Não há quem o não saiba. Os que reclamam a liberdade reclamam a moral interior, para que nem assim o homem deixe de ser governado. O gendarme – dizem eles de si para si – está no interior. E os que solicitam a coacção afirmam-te que ela é liberdade de espírito. Tu, na tua casa, tens a liberdade de atravessar as antecâmaras, de medir a passos largos as salas, uma por uma, de empurrar as portas, de subir ou descer as escadas. E a tua liberdade cresce à medida que aumentam as paredes e as peias e os ferrolhos. E dispões de um número tanto maior de actos possíveis onde escolher aquele que hás-de praticar, quantas mais obrigações te impôs a duração das tuas pedras. E, na sala comum, onde assentas arraiais no meio da desordem, deixas de dispor de liberdade, passa a haver dissolução.
E, afinal de contas, todos sonham com uma e a mesma cidade. Mas um reclama para o homem, tal como ele é, o direito de agir.
Discursos passam, mas os atos ficam.
Pensar Portugal
Pensar Portugal é pensá-lo no que ele é e não iludirmo-nos sobre o que ele é. Ora o que ele é é a inconsciência, um infantilismo orgânico, o repentismo, o desequilíbrio emotivo que vai da abjecção e lágrima fácil aos actos grandiosos e heróicos, a credulidade, o embasbacamento, a difícil assumpção da própria liberdade e a paralela e cómoda entrega do próprio destino às mãos dos outros, o mesquinho espírito de intriga, o entendimento e valorização de tudo numa dimensão curta, a zanga fácil e a reconciliação fácil como se tudo fossem rixas de família, a tendência para fazermos sempre da nossa vida um teatro, o berro, o espalhafato, a desinibição tumultuosa, o despudor com que exibimos facilmente o que devia ficar de portas adentro, a grosseria de um novo-rico sem riqueza, o egoísmo feroz e indiscreto balanceado com o altruísmo, se houver gente a ver ou a saber, a inautenticidade visível se queremos subir além de nós, a superficialidade vistosa, a improvisação de expediente, o arrivismo, a trafulhice e o gozo e a vaidade de intrujar com a nossa «esperteza saloia», o fatalismo, a crendice milagreira, a parolice. Decerto, temos também as nossas virtudes. Mas, na sua maioria, elas têm a sua raiz nestas misérias.