Ajuste De Contas
Esta manhã me acorda para a vida
vinda com luz amena no meu rosto.
Pela janela os raios em descida
são aspas de uma lauda sem desgosto.Das queixas não me queixo na acolhida
pois somam menos que o maior imposto.
Vale essa vida até aqui vivida
no tom alegre em que me trago exposto.Mas não me escoro no dever cumprido
porque de ver em muito haver implica
por este olhar ainda não vencido.Quisera essa alegria que me fica
chegar ao chão de muito irmão ferido
de vida desigual que não se explica.
Passagens sobre Chão
316 resultadosLágrimas de Cera
Passou; viu a porta aberta.
Entrou; queria rezar.
A vela ardia no altar.
A igreja estava deserta.Ajoelhou-se defronte
Para fazer a oração;
Curvou a pálida fronte
E pôs os olhos no chão.Vinha trêmula e sentida.
Cometera um erro. A Cruz
É a âncora da vida,
A esperança, a força, a luz.Que rezou? Não sei. Benzeu-se
Rapidamente. Ajustou
O véu de rendas. Ergueu-se
E à pia se encaminhou.Da vela benta que ardera,
Como tranqüilo fanal,
Umas lágrimas de cera
Caíam no castiçal.Ela porém não vertia
Uma lágrima sequer.
Tinha a fé, — a chama a arder, —
Chorar é que não podia.
A fortuna dela estava espalhada pelo chão: tigelas, cestas, pilão. Em volta era o nada, mesmo o vento estava sozinho.
Ignição
Meus versos, desejo-vos na rua,
nas padiolas, pelo chão, encardidos
como quem ganha com eles a vida,
e o papel vá escurecendo ao sol,
a chuva o manche, a capa
ganhe dedadas, a companhia
aderente de um insecto,
as palavras se humildem mais
e chegue a sua vez de comoverem alguém
que compre, um faminto ajudando.Meus versos, desejo-vos nas bibliotecas
itinerantes, gostaríeis de viajar
por aldeias, praias, escolas primárias,
despertar o rápido olhar das crianças,
estar nas suas mãos
completamente indefeso
e, sobretudo, que não vos compreendam.
Oxalá escrevam, risquem, atirem no recreio
umas às outras como pélas os livros
e sonhem, se possível, com algum verso
que súbito se esgueire pela sua alma.
A Alvorada do Amor
Um horror grande e mudo, um silêncio profundo
No dia do Pecado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:“Chega-te a mim! entra no meu amor,
E à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençôo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!Vê! tudo nos repele! a toda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação…
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrelas estão cheias de calefrios;
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu…Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,
Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
O Condenado
Folga a justiça e geme a natureza – Bocage
Alma feita somente de granito,
Condenada a sofrer cruel tortura
Pela rua sombria d’amargura
– Ei-lo que passa – réprobo maldito.Olhar ao chão cravado e sempre fito,
Parece contemplar a sepultura
Das suas ilusões que a desventura
Desfez em pó no hórrido delito.E, à cruz da expiação subindo mudo,
A vida a lhe fugir já sente prestes
Quando ao golpe do algoz, calou-se tudo.O mundo é um sepulcro de tristeza,
Ali, por entre matas de ciprestes,
Folga a justiça e geme a natureza.
Não me importo com as rimas
Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior.Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o levantar-se o vento…
O Poema Ensina a Cair
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excedeaté à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
Galinha come com o bico no chão.
O amor de um homem é um incenso que desce para o chão, quando o ídolo é de barro.
Impossível
Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
“Parece Sexta-Feira de Paixão.
Sempre a cismar, cismar de olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe …O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!
Faça por estar contente! Pois então?! …”
Quando se sofre, o que se diz é vão …
Meu coração, tudo, calado, ouviste …Os meus males ninguém mos adivinha …
A minha Dor não fala, anda sozinha …
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera! …Os males de Anto toda a gente os sabe!
Os meus … ninguém … A minha Dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera! …
Já Estou a Ficar Velho
Já estou a ficar velho, ainda que tenha
esta figura fixa sem idade,
e me mantenha em forma o aparelho
a que todos aqui somos sujeitos:
a correria cega, a suspensão elástica,
o salto em trave e trampolim de folhas,
e outras altas artes de ginástica.
Mas eu bem sei sentir além da aparência,
e já me aconteceu, ao visitar o canto
onde o mundo se acaba em chão de areia,
ali ver o meu fim anunciado.
Quando em tranquilo pouso assim medito,
peso, e calculo tudo aquilo
que não fiz, e não tive, e não alcanço
com o rosto extravagante que me deram,
já tudo bem pensado considero
se não devo encontrar algum consolo
na ciência que conduz o feiticeiro,
e acreditar também, como me diz,
que é, esta vida, emaranhada teia
de mal fiado, mal dobado fio,
e a morte tão somente um singular casulo
de onde sairei transfigurado.
Mas não sei de que valha imaginar
um outro ser incólume e perfeito
que da minha substância seja feito
e tome, noutro mundo,
A única Doença é não Haver Paixão
A única doença é
não haver paixão.Há pessoas que encontram no mundo um mero
local de passagem, pessoas que não sentem o que
vêem, que não tocam o que encontram; há pessoas
que não percebem que tudo o que existe foi criado
para apaixonar, para absolutamente apaixonar.Se não houver paixão
para que serve haver a vida?Há pessoas
e depois existes tu.Tu e a loucura de quereres devorar o que te
rodeia, tu e essa pulsão incontrolável para todos
os segundos serem os finais, para todos os instantes
da vida terem desesperadamente de valer pela vida toda.Se não houver o que tu és
para que serve haver o amor?E depois existo eu. A apaixonada que ensinaste
a apaixonar-se. Antes de ti não havia o tesão, havia
talvez uma ligeira excitação quando algo de muito
grande me acontecia. Antes de ti não sabia a
beleza do medo, a sensação sem igual de um coração nas
mãos. Antes de ti não sabia que um coração ou está
nas mãos ou anda a rastejar pelos chãos.
A Humana Súmula
A Piedade deixaria de existir
Se não fizéssemos nós os Pobres de pedir;
E a Compaixão também acabaria
Se a todos, como nós, feliz chegasse o dia.E a paz se alcança com mútuo terror,
Até crescer o egoísmo do amor:
A Crueldade tece então a sua rede,
E lança seu isco, cuidadosa, adrede.Senta-se depois com temores sagrados,
E de lágrimas os chãos ficam regados;
A raiz da Humildade ali então se gera
Debaixo do seu pé, atenta, espera.Em breve sobre a cabeça se lhe estende
A sombra daquele Mistério que ofende;
É aí que Verme e Mosca se sustentam
Do Mistério que ambos acalentam.E o fruto que gera é o do Engano
Doce ao comer e tão malsano;
E o Corvo o seu ninho ali o faz
No mais espesso da sombra que lhe apraz.Todos os Deuses, quer da terra quer do mar,
P’la Natureza esta Árvore foram procurar;
Mas foi em vão esta procura insana,
Esta Árvore cresce só na Mente Humana.Tradução de Hélio Osvaldo Alves
O Lago Do Cisne
Foram meus olhos, duas asas tontas
que ao teu redor, como ao redor da luz
queimaram suas ânsias e ficaram
mortos no chão, como cigarras mortas…No bailado em que estavas, sobre o palco,
meu desejo – esse fauno de alma triste,
tomaria teu corpo e bailaria
até que o mundo se fundisse ao sonho…Olhos de luar e vinho que me seguem
na ária da solidão em que me envolvo
sem volta, sem partida, sem transcurso…Foram meus olhos que te descobriram
e ficaram vogando esse abandono
de cisne branco sobre o lago imenso…
A Vida Oblíqua
Só agora pressenti o oblíquo da vida. Antes só via através de cortes retos e paralelos. Não percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida é outra. Que viver não é só desenrolar sentimentos grossos — é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e não existe nisso contradição.
A vida oblíqua é muito íntima. Não digo mais sobre essa intimidade para não ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblíquo na sua independência desenvolta.
E conheço também um modo de vida que é suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contínua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excêntrica. Tem um lado da vida que é como no inverno tomar café num terraço dentro da friagem e aconchegada na lã.
Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vento e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante,
Os Teus Beijos, Meu Bem, Tuas Carícias
Os teus beijos, meu bem, tuas carícias,
Teus afagos, teus íntimos abraços,
São apertados nós que dás nos laços
Que prendem nossas ditas vitalícias.Deixa gabar os deuses co’as delícias
Que desfrutam nos seus etéreos Paços,
Que estas, que nós gozamos por espaços
São, Marília, reais, não são fictícias.Ora na tua ideia um pouco finge,
S’um prazer imortal que não se altera
As faces divinais com rosas tinge:Se o chão que em teus olhos reverbera,
Se a ternura sem par que a mim te cinge
Durasse um dia, o sol sua luz perdera.
Minuciosa formiga
Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.Assim devera eu ser
se não fora não querer.
Carta a Manoel
Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,
Foi Coimbra. Foi esta paysagem triste, triste,
A cuja influencia a minha alma não reziste,
Queres noticias? Queres que os meus nervos fallem?
Vá! dize aos choupos do Mondego que se callem…
E pede ao vento que não uive e gema tanto:
Que, emfim, se soffre abafe as torturas em pranto,
Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas
Quanto isto me faz mal! Peor que as sabbatinas
Dos ursos na aula, peor que beatas correrias
De velhas magras, galopando Ave-Marias,
Peor que um diamante a riscar na vidraça!
Peor eu sei lá, Manoel, peor que uma desgraça!
Hysterisa-me o vento, absorve-me a alma toda,
Tal a menina pelas vesperas da boda,
Atarefada mail-a ama, a arrumar…
O vento afoga o meu espirito n’um mar
Verde, azul, branco, negro, cujos vagalhões
São todos feitos de luar, recordações.
Á noite, quando estou, aqui, na minha toca,
O grande evocador do vento evoca, evoca
Nosso verão magnifico, este anno passado,
(E a um canto bate,
Teu Só Sossego aqui Contigo Ausente
Teu só sossego aqui contigo ausente
Na casa que te veste à justa de paredes,
Tenho-te em móveis, nos perfumes, na semente
Dos cuidados que deixas ao partir,
A doce estância toda povoada
Dos mínimos sinais, dos sapatos de plinto
Que te elevam, Terpsícore ou Mnemósine,
Como uma estátua fiel ao labirinto.
Aqui, androceu da flor, o cálice abre aromas,
Farmácia chamo à tua colecção de vidros
Onde, à margem de planos e de somas,
Tenho remédio para os meus alvidros.
O chá é forte e adstringente,
O leite grosso sabe à ordenha,
E até nos quadros vive gente
À espera que a dona venha.
Porque tudo nos tectos é coroa,
No chão as traînes, os passinhos salpicados
Como o vento ainda longe de Lisboa
Escolheu a gaivota do balanço
Que no cais engolfado melhor voa:
Um vácuo, enfim, que o não será — tão logo
Chegues no ar medido e a aço propulso:
Por isso um pouco de fogo
Bate sanguíneo em meu pulso,
Pois o amor de quem espera
É uma graça a vencer.