A Minha Arte é Ser Eu
Se faço estas análises de um modo lasso e casual, não é senão porque assim retrato mais o que sou. De uma análise propriamente profunda não só sou incapaz, mas sou também artista de mais para a pensar em fazer; pensar em faze-la seria pensar em dar de mim a idea de que sou uma criatura disciplinada e coerente, quando o que sou é um analisador disperso e subtilmente desconcentrado. A minha arte é ser eu. Eu sou muitos. Mas, com o ser muitos, sou muitos em fluidez e imprecisão.
Muitos crêem coisas falsas ou incompletas de mim; e eu, falando com eles, faço tudo por deixa-los continuar nessa crença. Perante um que me julgue um mero crítico, eu só falo crítica. A princípio fazia isto espontaneamente. Depois decidi que isto era porque, no meu perpétuo anseio de não levantar atritos, (…)
Passagens sobre Criaturas
218 resultadosA Imortalidade
Ser imortal é coisa sem importância. Excepto o homem, todas as criaturas o são, porque ignoram a morte. O divino, o terrível, o incompreensível, é considerar-se imortal. Já notei que, embora desagrade às religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e muçulmanos professam a imortalidade, mas a veneração que dedicam ao primeiro século prova que apenas crêem nele, e destinam todos os outros, em número infinito, para o premiar ou para o castigar.
Mais razoável me parece o círculo descrito por certas religiões do Indostão. Nesse círculo, que não tem princípio nem fim, cada vida é uma consequência da anterior e engendra a seguinte, mas nenhuma determina o conjunto… Doutrinada por um exercício de séculos, a república dos homens imortais tinha conseguido a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que num prazo infinito ocorrem a qualquer homem todas as coisas. Pelas suas passadas ou futuras virtudes, qualquer homem é credor de toda a bondade, mas também de toda a traição pelas suas infâmias do passado ou do futuro. Assim como nos jogos de azar as cifras pares e ímpares permitem o equilíbrio, assim também se anulam e se corrigem o engenho e a estupidez.
(…) Ninguém é alguém,
Atenção ao Estilo Rebuscado e Cheio de Adornos
Quando vires alguém com um estilo rebuscado e cheio de adornos podes ter a certeza de que a sua alma apenas se ocupa igualmente de bagatelas. Uma alma verdadeiramente grande é mais tranquila e senhora de si a falar, e em tudo quanto diz há mais firmeza do que preocupação estilística. Tu conheces bem os nossos jovens elegantes, com a barba e o cabelo todo aparado, que parecem acabadinhos de sair da fábrica! De tais criaturas nada terás a esperar de firme ou sólido. O estilo é o adorno da alma: se for demasiado penteado, maquilhado, artificial, em suma, só provará que a alma carece de sinceridade e tem em si algo que soa a falso. Não é coisa digna de homens o cuidado extremo com o vestuário! Se nos fosse dado observar “por dentro” a alma de um homem de bem — oh! que figura bela e venerável, que fulgor de magnificente tranquilidade nós contemplaríamos, que brilho não emitiriam a justiça, a coragem, a moderação e a prudência! E não só estas virtudes, mas ainda a frugalidade, o autodomínio, a paciência, a liberalidade, a gentileza e essa virtude, incrivelmente rara no homem, que é a humanidade — também estas fariam jorrar sobre a alma o seu sublime esplendor!
O Machismo Português e as Traições Amorosas
Na gíria portuguesa, os palitos são a versão económica, e mais moderna, dos cornos. Os cornos, à semelhança do que aconteceu com os automóveis e os computadores, tornaram-se demasiado volumosos e pesados para as exigências do homem de hoje. Daí a crescente popularidade dos mais portáteis e menos onerosos palitos. Contudo, visto que se vive presentemente um período de transição, em que os novos palitos ainda se vêem lado a lado com os tradicionais cornos, continuam a existir algumas sobreposições. Uma delas, herdada do antigamente, deve-se ao facto dos palitos não se saldarem numa diminuição proporcional de sofrimento. Ou seja, não dão uma mera dor de palito — dão à mesma, incontrovertivelmente, dor de corno. Não é mais carinhoso, por isso, pôr os «palitos» a alguém — continua a ser exactamente o mesmo que pôr os outros.
Tudo isto vem a propósito da forma atípica, entre os povos latinos, que assume o machismo português. Não se trata do machismo triunfalmente dominador, género «Aqui quem manda sou eu!», do brutamontes que não dá satisfações à mulher. Não — o machismo português, imortalizado pelo fado «Não venhas tarde», é um machismo apologético, todo «desculpa lá ó Mafalda», que alcança os seus objectivos de uma maneira mais eficaz.
Nós somos criaturas de tal modo volúveis que até acabamos por sentir os sentimentos que fingimos.
A Génese de um Poema
A maior parte dos escritores, sobretudo os poetas, preferem deixar supor que compõem numa espécie de esplêndido frenesim, de extática intuição; literalmente, gelar-se-iam de terror à ideia de permitir ao público que desse uma espreitadela por detrás da cena para ver os laboriosos e incertos partos do pensamento, os verdadeiros planos compreendidos só no último minuto, os inúmeros balbucios de ideias que não alcançaram a maturidade da plena luz, as imaginações plenamente amadurecidas e, no entanto, rejeitadas pelo desespero de as levar a cabo, as opções e as rejeições longamente ponderadas, as tão difíceis emendas e acrescentas, numa palavra, as rodas e as empenas, as máquinas para mudança de cenário, as escadas e os alçapões, o vermelhão e os postiços que em 99% dos casos constituem os acessórios do histrião literário.
(…) No que a mim diz respeito, não compartilho da repugnância de que falei e nunca senti a mínima dificuldade em rememorar a marcha progressiva de todas as minhas obras. Escolho O Corvo por ser a mais conhecida. Proponho-me demonstrar claramente que nenhum pormenor da sua composição se pode explicar pelo acaso ou pela intuição, que a obra se desenvolveu, a par e passo, até à sua conclusão com a precisão e o rigor lógico de um problema matemático.
Todos Temos Duas Almas
Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. (…) Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma…
– Não?
– Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder,
Andamento
De que estarei me despedindo hoje?
Há em mim uma clara ressonância de
despedida.
Mas não devo saber,
nem é preciso saber.
Creio que vim
pra dizer um dia
na cara do mundo:
hoje estou me despedindo.
E as criaturas boas do meu sangue
abririam a boca
que lhes cortasse o ímpeto inexpresso.
Claro que estou me despedindo.
Hoje sou mais criança do que nunca.
Sensibilidade no Tom Certo
Quanto mais aprofundamos, com a vida, a própria sensibilidade, mais ironicamente nos conhecemos. Aos 20 anos eu cria no meu destino funesto; hoje conheço o meu destino banal. Aos 20 anos aspirava aos Principados do Oriente; hoje contentar-me-ia, sem pormenores nem perguntas, com um fim da vida tranquilo aqui nos subúrbios, dono de uma tabacaria vagarosa.
O pior que há para a sensibilidade é pensarmos nela, e não com ela. Enquanto me desconheci ridículo, pude ter sonhos em grande escala. Hoje que sei quem sou, só me restam os sonhos que delibero ter.
(…) O ridículo é o couce da inteligência; há muito que da inteligência não possuo senão o couce.
Se faço estas análises de um modo lasso e casual, não é senão porque assim retrato mais o que sou. De uma análise propriamente profunda não só sou incapaz, mas sou também artista demais para a pensar em fazer; pensar em fazê-la seria pensar em dar de mim a ideia de que sou uma criatura disciplinada e coerente, quando o que sou é um analisador disperso e subtilmente desconcentrado. A minha arte é ser eu. Eu sou muitos. Mas, com o ser muitos, sou muitos em fluidez e imprecisão.
Deus não previu a felicidade para as suas criaturas, previu apenas compensações.
O maior pensar da criatura humana é comer; desde que o homem nasce até que morre anda a procurar o pão para a boca.
Será possível amar a coletividade sem nunca ter amado profundamente criaturas humanas individuais?
O homem é a única criatura que consome sem produzir.
Cultura
É um fenómeno eterno: a ávida vontade vai sempre encontrar um meio de fixar as suas criaturas na vida através de uma ilusão espalhada sobre as coisas, forçando-as a continuar a viver. Este vê-se amarrado pelo prazer socrático do conhecimento e pela ilusão de poder, através do mesmo, curar a eterna ferida da existência; aquele vê-se envolvido pedo véu sedutor da arte ondeando diante dos seus olhos; aquele, por seu turno, pela consolação metafísica de que sob o remoinho dos fenómenos continua a fluir, impreturbável, a vida eterna: para não falar das ilusões mais comuns, e talvez mais vigorosas, que a vontade tem preparadas em qualquer instante.
Aqueles três níveis de ilusão destinam-se apenas às naturezas mais nobremente apetrechadas, nas quais a carga e o peso da existência são em geral sentidos com um desagrado mais profundo e que podem ser ilusoriamente desviadas desse desagrado através de estimulantes seleccionados. É nestes estimulantes que consiste tudo o que chamamos cultura.
Elegia dos Amantes Lúcidos
Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
O contorno lunar da noite que te finge!Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exacta dum violino
Que fosse a sensibilidade deste pensamento
Com que a minha sombra vai pensando o meu destinoE não houvesse o sono dum telhado
Entre ter de haver eu e haver o tecto;
E a eternidade não estivesse ao lado
A colocar-nos nas costas as asas dum insectoMeu amor, meu amor, teu gesto nasce
Para partir de ti e ser ao longe
A cor duma cidade que nos pasce
Como a ausência de deus pastando um mongeAh, se uma súbita mão na hora a pique
Tangendo harpas geladas por segredos
Desprendesse uma aragem de repiques
Destes sinos parados pelo medo!Mas só porque vieste fez-se tarde,
Ou é a vida que nasce já tardia
Como uma estrela que se acende e arde
Porque não cabe na rapidez do dia?
O homem é a criatura que não pode sair de si, que só conhece os outros em si, e, dizendo o contrário, mente.
O Tabu e a Metáfora
A metáfora é provavelmente a potência mais fértil que o homem possui. A sua eficiência chega a raiar os confins da taumaturgia e parece uma ferramenta de criação que Deus deixou esquecida dentro de uma das suas criaturas na ocasião em que a formou, como o cirurgião distraído deixa um instrumento no ventre do operado.
Todas as demais potências nos mantêm inscritos no interior do real, do que já é. O mais que podemos fazer é somar ou subtrair as coisas entre si. Só a metáfora nos facilita a evasão e cria entre as coisas reais recifes imaginários, floração de leves ilhas.
É verdadeiramente estranha a existência no homem desta actividade mental que consiste em substituir uma coisa por outra, não tanto no esforço de chegar à segunda como no intento de esquivar a primeira. A metáfora escamoteia um objecto mascarando-o por meio de outro, e não teria sentido se não víssemos nela um instinto que induz o homem a evitar as realidades.
Ao interrogar-se sobre qual poderia ser a origem da metáfora, um psicólogo recentemente descobriu, surpreendido, que uma das suas raízes se encontra no espírito do tabu. Houve uma época em que o medo foi a máxima inspiração humana,
A democracia permite que criaturas abomináveis conquistem o poder.