Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.
Passagens sobre Dia
2705 resultadosRomance de uma Freira Indo às Caldas
Belisa, aquela beldade,
Cujas perfeições são tais,
Que a formosura e juízo
Vivem nela muito em paz;
Aquela Circe das almas,
Cuja voz sempre será
Encanto dos alvedrios
E o pasmo de Portugal;
Enferma, bem que sublime,
De uns achaques mostras dá,
Pois às deidades também
Os males se atrevem já.
Por se livrar das moléstias
Que a costumam magoar,
Se negou remédio às vidas,
Por remédio às Caldas vai.
Aquele sol escondido
Entre as nuvens de um saial,
Se ocaso faz de um convento,
Do campo eclíptica faz.
Mas, logo que os campos lustra,
Alento e desmaios dá
Ao dia para luzir,
Ao Sol para se eclipsar.
Aos prados, a quem o Estio
Despe a gala natural,
Quando os olhos podem ver,
Flores tornam a enfeitar.
Dando-lhe a música os bosques
Com citara de cristal,
Parece entre os ramos verdes
Cada rouxinol um Brás.
A viração que entre as folhas
Sempre buliçosa está,
Ou já murmure ou suspire,
Faz de cada assopro um ai.
Nocturno a Duas Vozes
— Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?— Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação.— Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre doutra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.— Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que meus dedos têm
para colher na noite.— Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos,
e um rumor de água
vem no vento.— Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.— Cala-te, as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Lua nova trovejada, trinta dias é molhada.
Conduta e Poesia
Quando o tempo nos vai comendo com o seu relâmpago quotidiano decisivo, as atitudes fundadas, as confianças, a fé cega se precipitam e a elevação do poeta tende a cair como o mais triste nácar cuspido, perguntamo-nos se já chegou a hora de envilecermos. A hora dolorosa de ver como o homem se sustém a puro dente, a puras unhas, a puros interesses. E como entram na casa da poesia os dentes e as unhas e os ramos da feroz árvore do ódio. É o poder da idade, ou proventura, a inércia que faz retroceder as frutas no próprio bordo do coração, ou talvez o «artístico» se apodere do poeta e, em vez do canto salobro que as ondas profundas devem fazer saltar, vemos cada dia o miserável ser humano defendendo o seu miserável tesouro de pessoa preferida?
Aí, o tempo avança com cinza, com ar e com água! A pedra que o lodo e a angústia morderam floresce com prontidão com estrondo de mar, e a pequena rosa regressa ao seu delicado túmulo de corola.
O tempo lava e desenvolve, ordena e continua.
E que fica então das pequenas podridões, das pequenas conspirações do silêncio, dos pequenos frios sujos da hostilidade?
Rosas, pensou, sarcasticamente. Bobagens, minha cara. Pois em verdade, quando se tem de comer, beber e deitar, tanto nos bons como nos maus dias, a vida não tem nada a ver com rosas.
A Formação como Homem
Nos dias melhores, permitia-se acreditar que, se ela deixava as portas abertas entre as salas públicas e privadas, era sobretudo por causa dele. Mas, detectada a sua presença, tudo nos gestos dela passava a ser ponderado em função de o deixar de fora daquela intimidade.
De resto, sempre que ouvia os movimentos de Luísa no jardim, saía-lhe ao caminho com uma desculpa qualquer. Uns dias estava nervosa, resplandecente, elegante como um cavalo de corrida. Outros estava triste e silenciosa. E, contudo, era como se as coisas continuassem a ganhar vida à sua passagem. As coisas e ele próprio, sonhando em plena meia-idade, como se ainda não fosse demasiado tarde para concluir a sua formação como homem.
O dia abre os olhos e penetra em uma primavera antecipada. Tudo o que minhas mãos tocam voa. O mundo está cheio de pássaros.
Mas, quem sabe? Talvez hoje. Cada dia é um novo dia. É melhor ter sorte. Mas eu prefiro fazer as coisas sempre bem. Então, se a sorte me sorrir, estou preparado.
Um dia tudo será excelente, eis a nossa esperança; hoje tudo corre pelo melhor, eis a nossa ilusão.
Tem a cada dia diante dos olhos a morte, o exílio e tudo o que parece assustador, principalmente a morte: jamais terás então qualquer pensamento baixo ou qualquer desejo excessivo.
Se viveres cada dia como se fosse o teu último, algum dia estarás muito provavelmente certo.
Eu tinha um namorado que me dizia que eu nunca iria ser bem sucedida, nunca haveria de ser nomeada para um Grammy, nunca teria uma canção no top, e que tinha esperança que eu falhasse. E eu disse a ele: «Um dia, quando já não estivermos juntos, não conseguirás pedir uma chávena de café em qualquer sítio sem que me estejas a ouvir ou a ver.».
Hoje em dia é muito perigoso que um marido dê atenção à esposa em público. Isso faz sempre pensar que lhe bate quando estão sós.
Reformar é não Ter Emenda Possível
Todo o dia, em toda a sua desolação de nuvens leves e mornas, foi ocupado pelas informações de que havia revolução. Estas notícias, falsas ou certas, enchem-me sempre de um desconforto especial, misto de desdém e de náusea física. Dói-me na inteligência que alguém julgue que altera alguma coisa agitando-se. A violência, seja qual for, foi sempre para mim uma forma esbugalhada de estupidez humana. Depois, todos os revolucionários são estúpidos, como, em grau menor, porque menos incómodo, o são todos os reformadores.
Revolucionário ou reformador – o erro é o mesmo. Impotente para dominar e reformar a sua própria atitude para com a vida, que é tudo, ou o seu próprio ser, que é quase tudo, o homem foge para querer modificar os outros e o mundo externo. Todo o revolucionário, todo o reformador, é um evadido. Combater é não ser capaz de combater-se. Reformar é não ter emenda possível.
O homem de sensibilidade justa e recta razão, se se acha preocupado com o mal e a injustiça do mundo, busca naturalmente emendá-la, primeiro, naquilo em que ela mais perto se manifesta; e encontrará isso em seu próprio ser. Levar-lhe-á essa obra toda a vida.
Tudo para nós está em nosso conceito do mundo;
Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.
Oh, se os livros falassem, quantas ignorâncias haviam de dizer que consultam com eles de noite, os que de dia se publicam grandes letrados.
Serradura
A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o “Matin” de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.Folhetim da “Capital”
Pelo nosso Júlio Dantas –
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual…O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!…Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta…Isto assim não pode ser…
Mas como achar um remédio?
Como Escrever
Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever. Se tomo um ar hermético, é que não só o principal é não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que o minta — mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que acho bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, eu poderia friamente torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por outro lado, respeito uma certa clareza peculiar ao mistério natural, não substituível por clareza outra nenhuma. E também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo de água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem maior, como todo o mundo que vive.
Ao trabalhar fielmente oito horas por dia, você pode eventualmente chegar a ser chefe e trabalhar doze horas por dia.