Anti-Soneto
Ao Mário Saa
O nosso drama de portugueses,
O nosso maior drama entre os maiores
Dos dramas portugueses,
É este apego hereditário à Forma:
Ao modo de dizer, aos pontinhos nos ii,
Às vírgulas certas, às quadras perfeitas,
À estilística, à estética, à bombástica,
À chave de ouro do soneto vazio
– Que põe molezas de escravatura
Por dentro do que pensamos
Do que sentimos
Do que escrevemos
Do que fazemos
Do que mentimos.
Passagens sobre Drama
55 resultadosO drama da vida é haver vidas instaladas na nossa, somos uma junção de vários pedaços e perder alguém é como uma amputação.
Soneto Da Perdida Esperança
Perdi o bonde e a esperança
Volto pálido para casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
porque não? na noite escassacom um insolúvel flautim.
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.
Em termos absolutos, o homem é um valor imponderável, inteiro e perfeito como um dogma. Mas em termos relativos, sociais, o homem é o que vale para os seus semelhantes. E é na contradição de medida que vai de próximo a próximo que consiste o drama de ninguém conseguir ser ao mesmo tempo amado em Tebas e Atenas.
O pensamento voa e as palavras vão a pé: eis o drama do escritor.
Soneto 510 Malocatário
Soneto é um apertado apartamento
num vasto condomínio de inquilinos.
A mesma planta e vários seus destinos:
um drama urbano em cada pavimento.Dois quartos, pouca luz e muito vento,
que podem ser alcovas ou cassinos,
paróquias parcas, clubes clandestinos,
abrigo do autor brega ou do briguento.Agora virou zona, mas um dia
foi casa de família e regra tinha:
conversa só começa se o pai pia.Além da comezinha escrivaninha,
só tem privada, cama, mesa e pia.
Sem sala, o papo acaba na cozinha.
O Sonho
O universo é o sonho de Deus
e Deus é o sonho dos homens.
Em nossa vigília suprema sonhamos a realidade
de um Deus que cria o sol e as estrelas.Este é o nosso drama. Jamais saberemos
se sonhamos ou estamos acordados.
A noite habita o dia. No sonho sou um peixe
que apodrece na praia.
A Subfelicidade
O que mais dói não é – desengana-te – a infelicidade. A infelicidade dói. Magoa. Martiriza. É intensa; faz gritar, sofrer, saltar, chorar. Mas a infelicidade não é o que mais dói. A infelicidade é infeliz – mas não é o que mais dói.
O que mais dói é a subfelicidade. A felicidade mais ou menos, a felicidade que não se faz felicidade, que fica sempre a meio de se ser. A quase felicidade. A subfelicidade não magoa – vai magoando; a subfelicidade não martiriza – vai martirizando. Não é intensa – mas é imensa; faz gritar, sofrer, saltar, chorar – mas em silêncio, em surdina, em anonimato. Como se não fosse. Mas é: a subfelicidade é. A subfelicidade faz-te ficar refém do que tens – mas nem assim te impede de te sentires apeado do que não tens e gostarias de ter. Do que está ali, sempre ali, sempre à mão de semear – e que, mesmo assim, nunca consegues tocar. A subfelicidade é o piso -1 da felicidade. E não há elevador algum que te leve a subir de piso. Tens de ser tu a pegar nas tuas perninhas e a subir as escadas. Anda daí.
Nossa capacidade de amar é limitada, e o amor infinito; este é o drama.
O Poder que Alterna entre o Dinheiro e o Sangue
Um poder só pode ser derrubado por outro poder, e não por um princípio, e nenhum poder capaz de defrontar o dinheiro resta, a não ser este.O dinheiro só é derrubado e abolido pelo sangue. A vida é alfa e ómega, o contínuo fluxo cósmico em forma microcósmica. É o facto de factos no mundo-como-história… Na História é a vida e só a vida – qualidade rácica, o triunfo da vontade-de-poder – e não a vitória de verdades, descobertas ou dinheiro que importa. A história do mundo é o tribunal do mundo, e decidiu sempre a favor da vida mais forte, mais completa e mais confiante em si – decretou-lhe, nomeadamente, o direito de existir, sem querer saber se os seus direitos resistiriam perante um tribunal de consciência despertada. Sacrificou sempre a vontade e a justiça ao poder e à raça e lavrou sentença de morte a homens e povos para os quais a verdade valia, mais do que os feitos e a justiça, mais que a força. E assim o drama de uma alta Cultura – esse maravilhoso mundo de divindades, artes, pensamentos, batalhas e cidades – termina com o regresso dos factos prístinos do eterno sangue que é uma e a mesma coisa que o sempre-envolvente fluxo cósmico…
A Fernando Pessoa
(Depois de ler seu drama estático “O marinheiro” em “Orfeu I”)
Depois de doze minutos
Do seu drama O Marinheiro,
Em que os mais ágeis e astutos
Se sentem com sono e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz rima das veladoras
Com langorosa magia
De eterno e belo há apenas o sonho.
Por que estamos nós falando ainda?Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras…
A Vida Que Nos Escapa Entre os Dedos
Volta-se o rico para os prazeres da carne e a maior parte do mundo faz o mesmo. E não sem acerto, porque todas as coisas agradáveis devem ser tidas como inocentes, e até que se provem culpadas todas as presunções pendem a seu favor. A vida já é bastante penosa para que ainda a agravemos com proibições e obstáculos aos seus deleites; tão arisca se mostra a felicidade que todas as portas por onde ela queira entrar devem permanecer escancaradas. A carne enfraquece muito precocemente – e os olhos olham com melancolia para os prazeres de outrora. Muito rápidamente todas as alegrias perdem a vivacidade – e admiramo-nos de como pudessem ter-nos interessado tanto. O próprio amor torna-se grotesco logo que atinge os seus fins. Guardemos o ascetismo para a estação própria – a velhice.
É este o grande drama do prazer; todas as coisas agradáveis acabam por amargar; todas as flores murcham quando as colhemos, e o amor morre tanto mais depressa quanto é mais retribuído. Por isso o passado parece-nos sempre melhor que o presente; esquecemos os espinhos das rosas colhidas; saltamos por cima dos insultos e injúrias e demoramo-nos sobre as vitórias. O presente parece muito mesquinho diante de um passado do qual só retemos na memória o bom,
O género humano sempre meteu a ridículo os próprios dramas. Como é que os poderia ter suportado de outro modo? É por isso que tudo o que o género humano levou a sério releva do lado cómico das coisas.
O Noivado do Sepulcro
Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.Que paz tranquila!… mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D’entre os sepulcros a cabeça ergueu.Ergueu-se, ergueu-se!… na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.Ergueu-se, ergueu-se!… com sombrio espanto
Olhou em roda… não achou ninguém…
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:“Mulher formosa, que adorei na vida,
“E que na tumba não cessei d’amar,
“Por que atraiçoas, desleal, mentida,
“O amor eterno que te ouvi jurar?“Amor! engano que na campa finda,
“Que a morte despe da ilusão falaz:
“Quem d’entre os vivos se lembrara ainda
“Do pobre morto que na terra jaz?
Soneto de Separação
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
Mais do que as doenças, mais do que a crise económica, mais do que as derrotas que todos os dias acontecem, o grande drama do mundo é a conformação.
A Arte de Representar
A base da representação é a falsidade. A arte do ator consiste em servir-se do drama do autor para mostrar por meio dele a sua capacidade de interpretação. A peça é como uma barra onde o actor mostra as suas habilidades ginásticas. É apenas limitado pelas condições necessárias de uma barra: pode fazer com ela apenas um número limitado de coisas, mas pode fazer de mil formas individuais.
A representação, repito, tem todo o atractivo de uma falsificação. Todos adoramos um falsificador. É um sentimento muito humano e completamente instintivo. Todos adoramos a trapaça e a imitação. A representação une e intensifica, por meio do carácter material e vital das suas manifestações, todos os baixos instintos do instinto artístico — o instinto do enigma, o instinto do trapézio (…). É popular e apreciado por estas razões, ou antes, por esta razão.
A sede de glória do artista é feita carne na sede de aplauso do actor. Todo o aparecimento em público é baixo. Todas as assembleias são multidões, e se não suadas de corpo, pelo menos suadas de emoções.
Todos os espíritos grosseiros adoram falar. Ser falador é já por si vulgar. A única coisa que torna a verbosidade interessante é a profanidade e a obscenidade,
Não sou hindu, nem muçulmano sou eu! Sou este corpo, um jogo De cinco elementos; um drama do espírito dançando com alegria e tristeza.
O Drama de Amar
O drama de amar é não haver sucedâneos.
E tudo o resto sabe a merda. Porque houve o teu abraço, porque existe o teu cheiro. Amei-te para sempre mesmo que já não te ame. Ficou em mim a tarde em que pela primeira vez o nosso corpo (o teu arfar a mostrar-me que língua se fala no cėu, a tua boca a mostrar-me o tamanho de um beijo), e a partir daí fiquei órfão de um corpo sempre que não fosse o teu corpo. E quando chegou o dia da despedida eu soube que tinha chegado o dia de para sempre.
O drama de amar é não admitir a morte.
Há uma mulher a mais sempre que amo um corpo que não é o teu. E um homem a menos. Deito-me, aperto, espremo (o encaixe perfeito das tuas costas nos meus braços, o cheiro dos teus lábios no suor do meu pescoço). E até um orgasmo comprova a hipocrisia da carne. Despedi-me de orgasmos quando me despedi de ti. Já me deitei com tantas e é sempre o teu boa-noite que me adormece.
O drama de amar é só criar réplicas.
Tudo o que amo és tu.
A presença de Deus no seio da humanidade não se realizou num mundo ideal, idílico, mas neste mundo real, marcado por tantas coisas boas e más, marcado por divisões, malvadezes, pobreza, prepotências e guerras. Ele optou por habitar a nossa história como ela é, com todo o peso dos seus limites e dos seus dramas, das nossas dificuldades, dos nossos pecados.