Passagens sobre Escuridão

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É assim tão longínqua a felicidade? No tempo, refiro-me à sua distância no tempo; em termos de perspetiva, não está longe nem perto, a felicidade é algo por que se espera, que se procura, e quando começas a cansar-te de esperar, o dono do local onde marcaste encontro com ela tem pressa em fechar o estabelecimento (espere, espere, não me empurre, por favor, deixe-me acabar esse copo). À tua frente, a porta em direção à qual ele te empurra, e lá fora estende-se a noite que terás de enfrentar sozinho, a escuridão que assusta a criança, e não queres mergulhar nesse negrume.

Tentei fugir da mancha mais escura

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão…

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.

Memória Consentida

Neste lugar sem tempo nem memória,
nesta luz absoluta ou absurda,
ou só escuridão total, relances há
em que creio, ou se me afigura,
ter tido, alguma vez, passado

com biografia, onde se misturam
datas, nomes, caras, paisagens
que, de tão rápidas, me deixam
apenas a lembrança agoniada
de não mais poder lembrá-las.

Sobra, por vezes, um estilhaço
ou fragmento, como o latido
de um cão na tarde dolente
e comprida de uma remota infância.
Ou o indistinto murmúrio de vozes

junto de um rio que, como as vozes,
não existe já quando para ele
volvo, surpreso, o olhar cansado.
Insidiosas, rangem tábuas no soalho,
ou é o sussurro brando do vento

no zinco ondulado, na fronde umbrosa
dos eucaliptos de perfil no horizonte,
com o mar ao fundo. Que soalho,
de que casa, que vento em que paragens,
onde o mar ao longe que, entrevistos,

os não vejo já ou, sequer, recordo
na brevidade do instante cruel?
De que sonho, ou vida, ou espaço de outrem
provêm tais sombras melancólicas,

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A alegoria chega quando descrever a realidade já não nos serve. Os escritores e artistas trabalham nas trevas e, como cegos, tacteiam na escuridão.

Psicologia De Um Vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

O Que Amamos Está Sempre Longe de Nós

O que amamos está sempre longe de nós:
e longe mesmo do que amamos – que não sabe
de onde vem, aonde vai nosso impulso de amor.

O que amamos está como a flor na semente,
entendido com medo e inquietude, talvez
só para em nossa morte estar durando sempre.

Como as ervas do chão, como as ondas do mar,
os acasos se vão cumprindo e vão cessando.
Mas, sem acaso, o amor límpido e exacto jaz.

Não necessita nada o que em si tudo ordena:
cuja tristeza unicamente pode ser
o equívoco do tempo, os jogos da cegueira

com setas negras na escuridão.

O Palácio da Ventura

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busca anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura…
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formusura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…
Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d’ouro, com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!

Mudançar

Repor
na planta da cor brancura
em pedra solicitada

Reler
por vacilação das sílabas
em escuridão afundada

Rever
por olho areado com águas
a imagem contaminada

Reter
no músculo oxigenado vaso
areal terra aterrada

Resistir
ao cântico suado no temor
a evolução revoltada

Reaver
do padre eterno esquecido
fé febril equivocada

Rematar
pontilhados no voo manual
asa de vazio blindada

Reacordar
quando o tempo do morto é
vício pele reciclada

Recomeçar
linguajar contínua marcha
vivente reinventada.

A Poesia

… Quantas obras de arte… Já não cabem no mundo… Temos de as pendurar fora dos quartos… Quantos livros… Quantos livrecos… Quem será capaz de os ler?… Se fossem comestíveis… Se numa panela de grande calado os fizéssemos em salada, os picássemos, os alinhássemos… Já não se pode mais… Estamos até ao pescoço… O mundo afoga-se na maré… Reverdy dizia-me: «Avisei o correio para que não me trouxesse mais livros… Não poderia abri-los. Não tenho espaço. Trepam pelas paredes, temi uma catástrofe, ruiriam em cima da minha cabeça»… Todos conhecem Eliot… Antes de ser pintor, de dirigir teatros, de escrever luminosas críticas, lia os meus versos… Sentia-me lisonjeado… Ninguém os compreendia melhor… Até que um dia começou a ler-me os seus e eu, egoisticamente, corri a protestar: «Não mos leia, não mos leia»… Fechei-me no quarto de banho, mas Eliot, através da porta, lia-mos… Fiquei muito triste… O poeta Frazer, da Escócia, estava presente… Increpou-me: «Porque tratas assim Eliot?»… Respondi: «Não quero perder o meu leitor. Cultivei-o. Conhece até as rugas da minha poesia… Tem tanto talento… Pode fazer quadros… Pode escrever ensaios… Mas eu quero manter este leitor, conservá-lo, regá-lo como planta exótica… Compreendes-me, Frazer?»… Porque a verdade, se isto continua,

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Olhar para as Coisas com alguma Distância

Percorrendo as ruas fui descobrindo coisas espantosas que lá ocorriam desde sempre, disfarçadas sob uma máscara ténue de normalidade: um viúvo que, depois de se reformar, passava as tardes sentado no carro, a porta aberta, a perna esquerda fora, a direita dentro; um sujeito tão magro que se podia tomar por uma figura de cartão, ideia reforçada por andar de bicicleta e, sobretudo, por nela carregar o papelão que recolhia nos contentores do lixo; a mulher que, com uma regularidade cronométrica, vinha à janela, olhava para um lado e para o outro, como se aguardasse há muito a chegada de alguém. Eram três exemplos de situações que – creio ser esta a melhor formulação – aconteciam desde sempre e pela primeira vez. Se olharmos para as coisas com alguma distância, retirando-as do contexto, deixando-nos contaminar pela estranheza, tudo, tudo mesmo, adquire uma aura macabra e repetitiva, singular, reconhecível, que se mistura com a substância dos sonhos, a matéria das mentes perturbadas. Penso sempre, não sei porque, que talvez a resposta esteja naquela revista antiga que não resistiu às traças: nos sobreviventes de Hiroxima, no clarão absoluto que os cegou, no mundo irreal em que foram condenados a viver a partir desse momento,

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Oh Retrato da Morte, oh Noite Amiga

Oh retrato da morte, oh noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha do meu pranto,
Des meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.

Há Metafísica Bastante em não Pensar em Nada

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

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Se te afastares do ‘amor da terra’ e subires bem alto, aonde não chega a energia da Terra, estarás mais próximo do Sol, mas lá encontrarás a absoluta escuridão e um frio de 270º C abaixo de zero. Quanto maior a altura, mais intendo é o frio.

O Tempo Vive

O tempo vive, quando os homens, nele,
se esquecem de si mesmos,
ficando, embora, a contemplar o estreme
reduto de estar sendo.
O tempo vive a refrescar a sede
dos animais e do vento,
quando a estrutura estremece
a dura escuridão que, desde dentro,
irrompe. E fica com o uivo agreste
espantando o seu estrondo de silêncio.

Dai À Obra De Marta Um Pouco De Maria

Dai à obra de Marta um pouco de Maria,
Dai um beijo de sol ao descuidado arbusto;
Vereis neste florir o tronco ereto e adusto,
E mais gosto achareis naquela e mais valia.

A doce mãe não perde o seu papel augusto,
Nem o lar conjugal a perfeita harmonia.
Viverão dous aonde um até ‘qui vivia,
E o trabalho haverá menos difícil custo.

Urge a vida encarar sem a mole apatia,
Ó mulher! Urge pôr no gracioso busto,
Sob o tépido seio, um coração robusto.

Nem erma escuridão, nem mal-aceso dia.
Basta um jorro de sol ao descuidado arbusto,
Basta à obra de Marta um pouco de Maria.

As Realidades do Sonho

O sonho é a explosão dos súbditos na ausência do rei. Se o homem fosse um ser único, não sonharia. Mas cada um de nós é uma tribo em que somente um chefe tem os privilégios da vida iluminada. O chefe é a pessoa reconhecida pelos semelhantes, o «mim» legal da sociedade e da razão, obrigado a uma concordância fixa consigo mesmo. Só ele tem relações expressas com o mundo exterior e o único a reinar nas horas de vigília. Mas abaixo dele há um pequeno povo de cadetes expulsos, de insurrectos punidos, de hóspedes indesejáveis – exilados da zona da consciência, mas donos do subconsciente, encerrados no subterrãneo, mas prontos para a evasão, vencidos mas não mortos. Há a criança que foi renegada pelo jovem, o delinquente imobilizado pela moral e a lei, o louco que todos os dias estende armadilhas à razão raciocinadora, o poeta que a prática condenou ao silêncio, o bobo dominado pelas amarguras, o antepassado bárbaro que ainda se recorda do machado de pedra e dos festins de Tiestes.
O eu quotidiano e vulgar, o respeitável, o vigilante, o vitorioso, dominou essa tribo de larvas inimigas, de irmãos renegados e moribundos. E como a alma tem o seu subsolo,

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