Saudade
Saudade – O que será… não sei… procurei sabê-lo
em dicionários antigos e poeirentos
e noutros livros onde não achei o sentido
desta doce palavra de perfis ambíguos.Dizem que azuis são as montanhas como ela,
que nela se obscurecem os amores longínquos,
e um bom e nobre amigo meu (e das estrelas)
a nomeia num tremor de cabelos e mãos.Hoje em Eça de Queiroz sem cuidar a descubro,
seu segredo se evade, sua doçura me obceca
como uma mariposa de estranho e fino corpo
sempre longe – tão longe! – de minhas redes tranquilas.Saudade… Oiça, vizinho, sabe o significado
desta palavra branca que se evade como um peixe?
Não… e me treme na boca seu tremor delicado…
Saudade…
Tradução de Rui Lage
Passagens sobre Estranhos
541 resultadosO Nascimento
Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha,
Rompendo a sombra etérea do crepúsculo!
A paisagem tornou-se mais estranha,
Mais cheia de silêncio e de mistério!
Dormem ainda as árvores e os homens,
E dorme, em alto ramo, a cotovia…
E, se ergue já seu canto, é porque sonha
julga ver, sonhando, a luz do dia!E, pelos negros píncaros, a estrela
É divino sorriso alumiante.
Oh, que esplendor! Que formosura aquela!
É lírio de oiro aberto! É rosa a arder!Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha,
Tão virginal, tão nova, que parece
Sair das mãos de Deus, a vez primeira!E como, sobre os montes, resplandece!
Persegue-a o sol amado… No oriente,
Alastra um nimbo anímico de luz.
E a antiga dor das trevas, suavemente,
Ondula, em transparência e palidez.Aí vem a estrela, alumiando a serra!
E os olhos encantados dos pastores
Voltam-se para a estrela… E cá na terra
Há mágoas e penumbras, a fugir…Como ela voa, cintilando e rindo
Aos penhascos agrestes e desnudos!
O Amor, um Dever de Passagem
Fui envenenado pela dor obscura do Futuro.
Eu sabia já que algo se preparava contra o meu corpo.
Agora torço-me de agonia
nos versos deste poema.
Esta é a terra outrora fértil que os meus dedos dilaceram.
Os meus lábios são feitos desta terra,
são lama quente.
Vou partir pelo teu rosto para mais longe.
A minha fome é ter-te olhado
e estar cego. Agora eu sei que te abres para o fogo
do relâmpago.
Tenho a convicção dos temporais.
já não sei nem o que digo nem o que isso importa. Guia
dos meus cabelos rasos, da melancolia,
da vida efémera dos gestos.
Nesse dia fui melhor actor do que a minha sinceridade.A cesura enerva-me no estômago
Cortei de manhã as pontas dos dedos mas sei já que
elas crescerão de novo a proteger as unhas.
Talvez a vida seja estranha,
talvez a vida seja simples,
talvez a vida seja outra vida.
A linha branca da Beleza é a minha atitude que se transforma.A violência do sono sobe
sobre o meu conhecimento.
Uma Resposta
Não sabes a alegria em que fiquei
ao ler o que escreveste – o teu cartão
veio um pouco aquecer meu coração,
que de há muito na sombra sepultei…A tristeza tornou-se-me uma lei
neste estranho pais da solidão…
– já nem sei como vais, nem como vão
aqueles que há mil anos já deixei…Não penses mais em mim… Sou como um monge,
– não voltarei jamais para a cidade
e o tempo em que me falas vai bem longe…Fizeste bem em não me acompanhar…
Tinhas toda razão… Felicidade
só eu mesmo encontrei neste lugar!…
Depois, só tinha pensamentos de prisioneiro. Aguardava o passeio diário no pátio ou a visita do advogado. O restante do meu tempo eu coordenava muito bem. Nessa época pensei muitas vezes que se me obrigassem a viver dentro de um tronco seco de árvore, sem outra ocupação além de olhar a flor do céu acima da minha cabeça, eu teria me habituado aos poucos. Teria esperado a passagem dos pássaros ou os encontros entre as nuvens tal como esperava aqui as estranhas gravatas do advogado, e, como num outro mundo, esperava até sábado para estreitar nos meus braços o corpo de Marie. Ora, a verdade, afinal é que eu não estava numa árvore seca. Havia pessoas mais infelizes do que eu. Era, aliás, uma idéia de mamãe, e ela repetia com frequência que acabávamos acostumando-nos a tudo.
O personagem «leitor» é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reacções próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor.
Visionários
Armam batalhas pelo mundo adiante
Os que vagam no mundos visionários,
Abrindo as áureas portas de sacrários
Do Mistério soturno e palpitante.O coração flameja a cada instante
Com brilho estranho, com fervores vários,
Sente a febre dos bons missionários
Da ardente catequese fecundante.Os visionários vão buscar frescura
De água celeste na cisterna pura
Da Esperança, por horas nebulosas…Buscam frescura, um outro novo encanto…
E livres, belos através do pranto,
Falam baixo com as almas misteriosas!
Fim
Nem foi mesmo preciso que você falasse,
era um pressentimento antigo dentro de mim,
há muito, na expressão que havia em sua face
via que o nosso amor ia chegando ao fim…Hoje, para encontrá-la, eu quase que não vim…
Era o medo covarde deste desenlace…
E tudo terminou… e foi melhor assim
talvez, para você, que tudo terminasse…Nosso amor, – e ninguém há de saber por que,
morreu (bem que o sentimos pelo nosso olhar),
e não somos culpados nem eu, nem você…E o que é estranho afinal é que tudo acabasse,
sem que nenhum de nós falasse em terminar,
– e assim como se tudo ainda continuasse…
O Mar Agita-se, como um Alucinado
O Mar agita-se, como um alucinado:
A sua espuma aflui, baba da sua Dor…
Posto o escafandro, com um passo cadenciado,
Desce ao fundo do Oceano algum mergulhador.Dá-lhe um aspecto estranho a campânula imensa:
Lembra um bizarro Deus de algum pagode indiano:
Na cólera do Mar, pesa a sua Indiferença
Que o torna superior, e faz mesquinho o Oceano!E em vão as ondas se lhe enroscam à cabeça:
Ele desce orgulhoso, impassível, sem pressa,
Com suprema altivez, com ironias calmas:Assim devemos nós, Poetas, no Mundo entrar,
Sem nos deixarmos absorver por esse Mar
— Pois a Arte é, para nós, o escafandro das Almas!
Não há beleza perfeita que não contenha algo de estranho nas suas proporções.
Último Vestígio
Tu deves te lembrar: aquela casa antiga
entre o verde bambual e a frondosa mangueira,
– a varanda, a esconder-se sob a trepadeira,
e o riacho a marulhar sua velha cantiga…As flores… o jardim… a estrada, uma alva esteira
onde nós a sonhar andamos sem fadiga
olhando para o céu – tudo isto, minha amiga,
mudou… A nossa vida é mesmo passageira…As paisagens de outrora, estranhos transformaram:
– o jardim… o bambual… a estrada, e até nem sei
se as águas do regato os anos não pararam…Uma cousa, porém, existe, eu vi depois:
– é aquele coração com os nomes que gravei
no tronco da mangueira a relembrar nós dois!…
Dar é Viver
Dá-te.
Dar é viver.
Ninguém, por muito pouco que receba, viverá em alegria se não der nada a ninguém. Dá-se um sorriso, uma mão, um beijo, um abraço, um conselho, uma ideia, uma palavra, uma hora, duas ou três, de silêncio ou de ouvidos em alerta para o outro poder desabafar, chorar ou libertar-se. Dá-se boleia, dão-se sugestões, brinca-se, dá-se o corpo, dá-se prazer, dão-se pistas, dá-se tanta coisa. Tanta coisa que custa zero mas vale tanto. E quanto mais dermos de nós, mais recebemos. Nem sempre daqueles a quem damos, é um facto, faz parte da experiência de aprender a lidar com a expectativa, o apego e a cobrança, mas se dermos de coração, e só porque nos faz sentir bem, recebemos sempre e quase sempre de onde menos esperamos.
Quando somos incondicionais podemos ser surpreendidos a qualquer momento.
É tão bom. Sabe tão bem. Dar e nunca saber de onde podemos vir a receber. Torna os dias surpreendentes. A vida agiganta-se. Acaba-se a agonia do «tem de ser» e de repente é tudo novidade. É como dizer «Amo-te» a alguém que amo, e porque o senti naquele instante, e não ficar à espera de ouvir o mesmo dessa pessoa no segundo a seguir.
O olfacto é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente.
Toda a minha experiência na escola foi estranha, com mais trevas do que luz. E assim se tornou a minha imagem da sociedade.
Nem Senhor nem Escravo
A única disciplina é estar diante da natureza e não dos homens. Depender de uma vontade estranha, é ser escravo. Porém, esse é o destino de todos os homens. O escravo depende do senhor e o senhor do escravo. Condição que se torna ou suplicante ou tirânica ou as duas simultaneamente. Pelo contrário, diante da natureza inerte, não temos outro remédio que não seja pensar.
Defeito de Fabrico
Quando nasci, trazia de origem
um farol que despejava luz a jorros
sobre o que quer que fosse,
mormente sobre as dobras
pérfidas da noite.Mas, por estranho que pareça,
também os faróis estão sujeitos
às leis da erosão,e o meu farol deliu-se. Hoje não é
mais do que um triste farolim de bicicleta
que apenas me alumia dois palmos de noite.Amanhã estará reduzido
a uma simples lanterna de bolso
com que mal poderei reconhecer
o lugar onde estou.Até que um dia será, está bom de ver,
o mais fiável cúmplice da noite –– da noite que devia dissipar,
e não fundir-se nela.Defeito de fabrico.
Mas a garantia caducou e o fabricante
nega-se a ressarcir-me do escuro.
A Timidez
A verdade é que vivi muitos dos meus primeiros anos, e talvez os segundos e os terceiros, como uma espécie de surdo-mudo.
Ritualmente vestido de negro desde muito novinho, tal como se vestiam os verdadeiros poetas do século passado, tinha uma vaga impressão de não me apresentar muito mal. Mas, em vez de me aproximar das raparigas, ciente de que gaguejaria ou coraria diante delas, preferia passar de lado e afastar-me, ostentando um desinteresse que estava longe de sentir. Todas eram, para mim, um grande mistério. Preferiria morrer queimado naquela fogueira secreta, afogar-me naquele poço de enigmática profundidade, mas não me atrevia a atirar-me ao fogo ou à água. Ora, como não encontrava ninguém que me desse um empurrão, passava pelas margens dessas fascinações sem olhar sequer e muito menos sorrir.Acontecia outro tanto com os adultos, gente mínima, funcionários de caminho-de-ferro e de correios e suas «senhoras esposas», assim intituladas porque a pequena burguesia se escandaliza, intimidada, diante da palavra mulher. Eu escutava as conversas à mesa do meu pai. Mas, no dia seguinte, se esbarrava na rua com quem tinha comido na noite anterior em minha casa, não me atrevia a cumprimentar e até mudava de rumo para evitar o mau bocado.
É preciso que a Terra seja um lugar deveras estranho para a virtude, uma vez que ela aqui apenas sofre.
Mundo Inaccessível
Tu’alma lembra um mundo inaccessível
Onde só astros e águias vão pairando,
Onde só se escuta, trágica, cantando,
A sinfonia da Amplidão terrível!Alma nenhuma, que não for sensível,
Que asas não tenha para as ir vibrando,
Essa região secreta desvendando,
Falece, morre, num pavor incrível!É preciso ter asas e ter garras
Para atingir aos ruídos de fanfarras
Do mundo da tu’alma augusta e forte.É preciso subir ígneas montanhas
E emudecer, entre visões estranhas,
Num sentimento mais sutil que a Morte!
Em Portugal cada um Quer Tudo
E quando os homens são de tal condição, que cada um quer tudo para si, com aquilo com que se pudera contentar a quatro, é força que fiquem descontentes três. O mesmo nos sucede. Nunca tantas mercês se fizeram em Portugal, como neste tempo; e são mais os queixosos, que os contentes. Porquê? Porque cada um quer tudo. Nos outros reinos com uma mercê ganha-se um homem; em Portugal com uma mercê, perdem-se muitos. Se Cleofas fora português, mais se havia de ofender da a metade do pão que Cristo deu ao companheiro, do que se havia de obrigar da outra metade, que lhe deu a ele. Porque como cada um presume que se lhe deve tudo, qualquer cousa que se dá aos outros, cuida que se lhe rouba. Verdadeiramente, que não há mais dificultosa coroa que a dos reis de Portugal: por isto mais, do que por nenhum outro empenho.
(…) Em nenhuns reis do mundo se vê isto mais claramente que nos de Portugal. Conquistar a terra das três partes do mundo a nações estranhas, foi empresa que os reis de Portugal conseguiram muito fácil e muito felizmente; mas repartir três palmos de terra em Portugal aos vassalos com satisfação deles,