Construir a Realidade
A pura verdade Ă© que no mundo acontece a todo instante, e, portanto, agora, infinidade de coisas. A pretensĂŁo de dizer o que Ă© que acontece agora no mundo deve ser entendida, pois, como ironizando-se a si mesma. Mas assim como Ă© impossĂvel conhecer directamente a plenitude do real, nĂŁo temos outro remĂ©dio senĂŁo construir arbitrariamente uma realidade, supor que as coisas sĂŁo de certa maneira. Isto proporciona-nos um esquema, quer dizer, um conceito ou entretecido de conceitos. Com ele, como atravĂ©s de uma quadrĂcula, olhamos depois a efectiva realidade, e entĂŁo, sĂł entĂŁo, conseguimos uma visĂŁo aproximada dela. Nisto consiste o mĂ©todo cientĂfico. Mais ainda: nisto consiste todo uso do intelecto. Quando ao ver chegar o nosso amigo pela vereda do jardim dizemos: «Este Ă© o Pedro», cometemos deliberadamente, ironicamente, um erro. Porque Pedro significa para nĂłs um esquemático repertĂłrio de modos de se comportar fĂsica e moralmente – o que chamamos «carácter» –, e a pura verdade Ă© que o nosso amigo Pedro nĂŁo se parece, em certos momentos, em quase nada Ă ideia «o nosso amigo Pedro».
Todo o conceito, o mais vulgar como o mais tĂ©cnico, vai incluso na ironia de si mesmo, nos entredentes de um sorriso tranquilo, como o geomĂ©trico diamante vai implĂcito na dentadura de ouro de seu engaste. Ele diz muito seriamente: «Esta coisa Ă© A, e esta outra coisa Ă© B». Mas Ă© a sua a seriedade de um pince-sans-rire. É a seriedade instável de quem engoliu uma gargalhada e se nĂŁo aperta bem os lábios a vomita. Ele sabe muito bem que nem esta coisa Ă© A, assim, Ă valentona, nem a outra Ă© B, sem reservas. O que o conceito pensa a rigor Ă© um pouco outra coisa que o que diz, e nesta duplicidade consiste a ironia. O que verdadeiramente pensa Ă© isto: eu sei que, falando com todo rigor, esta coisa nĂŁo Ă© A, nem aquela B; mas, admitindo que sĂŁo A e B, eu entendo-me comigo mesmo para os efeitos do meu comportamento vital diante de uma ou de outra coisa.