Segunda Nota Explicativa
Se uma palavra toca noutra ou mesmo sem tocar
lhe queda próxima, põem-se as duas
a dedilhar lembranças na ária
da carne azada.Passa-se isto
na poesia dos poetas e na linguagem
da rua. Os ganhos
são mútuos e ficam mal lembradosou julgados inconvenientes se
pouco prosados ultrapassam
a discreta função de fundo
musical na paisagem ambiente.Ganham em sentidos o que perdem
em concisão. Para que servem os muros
que nos cercam senão para dar ganas
de os saldar?
Passagens sobre Função
162 resultadosPor vezes a ambição faz aceitar as funções mais baixas; é assim que se sobe, na mesma postura em que se desce.
A Vantagem do Esquecimento
O esquecimento não é só uma vis inertioe, como crêem os espíritos superfinos; antes é um poder activo, uma faculdade moderadora, à qual devemos o facto de que tudo quanto nos acontece na vida, tudo quanto absorvemos, se apresenta à nossa consciência durante o estado da «digestão» (que poderia chamar-se absorção física), do mesmo modo que o multíplice processo da assimiliação corporal tão pouco fatiga a consciencia. Fechar de quando em quando as portas e janelas da consciência, permanecer insensível às ruidosas lutas do mundo subterrâneo dos nossos orgãos; fazer silêncio e tábua rasa da nossa consciência, a fim de que aí haja lugar para as funções mais nobres para governar, para rever, para pressentir (porque o nosso organismo é uma verdadeira oligarquia): eis aqui, repito, o ofício desta faculdade activa, desta vigilante guarda encarregada de manter a ordem física, a tranquilidade, a etiqueta. Donde se coligue que nenhuma felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança, nenhum gozo presente poderiam existir sem a faculdade do esquecimento.
O gênio é uma força que atua em função do meio.
Quanto mais grave é uma doença, maior tem de ser a esperança. Porque a função da esperança é preencher o que nos falta.
A Função do Amor é Fabricar Desconhecimento
a função do amor é fabricar desconhecimento
(o conhecido não tem desejo;mas todo o amor é desejar)
embora se viva às avessas,o idêntico sufoque o uno
a verdade se confunda com o facto,os peixes se gabem de pescare os homens sejam apanhados pelos vermes(o amor pode não se
importar
se o tempo troteia,a luz declina,os limites vergam
nem se maravilhar se um pensamento pesa como uma estrela
—o medo tem morte menor;e viverá menos quando a morte acabar)que afortunados são os amantes(cujos seres se submetem
ao que esteja para ser descoberto)
cujo ignorante cada respirar se atreve a esconder
mais do que a mais fabulosa sabedoria teme ver(que riem e choram)que sonham,criam e matam
enquanto o todo se move;e cada parte permanece quieta:
pode não ser sempre assim;e eu digo
que se os teus lábios,que amei,tocarem
os de outro,e os teus ternos fortes dedos aprisionarem
o seu coração,como o meu não há muito tempo;
se no rosto de outro o teu doce cabelo repousar
naquele silêncio que conheço,ou naquelas
grandiosas contorcidas palavras que,dizendo demasiado,
Imaginação ou Sensibilidade?
Não é certo que para a criação de uma obra literária a imaginação e a sensibilidade sejam qualidades equivalentes, e que a segunda possa sem grande inconveniente substituir a primeira, do mesmo modo que há pessoas cujo estômago é incapaz de digerir e que encarregam os intestinos dessa função. Um homem que nasceu sensível e que não tenha imaginação poderá apesar disso escrever romances admiráveis. O sofrimento que os outros lhe causarão, os esforços para o evitar, os conflitos que esse sofrimento e a outra pessoa cruel irão criar, tudo isso, interpretado pela inteligência, poderá constituir matéria para um livro não apenas tão belo como se tivesse sido imaginado, inventado, mas também tão exterior aos sonhos, do autor, se este, feliz, se tivesse deixado arrastar por si mesmo, tão surpreendente para ele próprio, tão acidental como um capricho fortuito da imaginação.
Por mais brilhante que seja qualquer ato, não deve ser considerado grande senão em função de um grande motivo.
A Cultura Deve Ser Uma Descoberta Individual de Cada um de Nós
Não se deve intervir, não nos devemos meter nos problemas que cada um tem com a leitura. Não devemos sofrer por causa das crianças que não lêem, perder a paciência. Trata-se da descoberta do continente da leitura. Ninguém deve encorajar nem incitar outra pessoa a ir ver como ele é. Já existe excessiva informação no mundo acerca da cultura. Devemos partir sós para esse continente. Descobri-lo sozinhos. Operarmos sozinhos esse nascimento.
Por exemplo, em relação a Baudelaire, devemos ser os primeiros a descobrir o seu esplendor. E somos os primeiros. E, se não formos os primeiros, nunca seremos leitores de Baudelaire. Todas as obras-primas do mundo deveriam ser encontradas pelas crianças nos despejos públicos, e lidas às escondidas dos pais e dos mestres.
Por vezes, o facto de se ver alguém a ler um livro no metro, com grande atenção, pode provocar a compra desse livro. Mas não quanto aos romances populares. Aí, ninguém se engana quanto à natureza do livro. Os dois géneros nunca estão juntos nas mesmas mãos. Os romances populares são impressos em milhões de exemplares. Com a mesma grelha aplicada, em princípio, há uns cinquenta anos, os romances populares desempenham a sua função de identificação sentimental ou erótica.
A Base e o Progresso da Civilização
Os homens mais felizes e mais úteis são feitos de um conjunto harmonioso de actividades intelectuais e morais. E é a qualidade destas actividades e a igualdade do seu desenvolvimento que que conferem a este tipo a sua superioridade sobre os outros. Mas a sua intensidade determina o nível social de um dado indivíduo e faz dele um comerciante ou um director de banco, um pequeno médico ou um professor célebre, um presidente de uma junta de freguesia ou um presidente dos Estados Unidos. O desenvolvimento de seres humanos completos dever ser o objectivo dos nossos esforços. Só neles pode assentar uma civilização sólida.
Existe ainda uma classe de homens que, apesar de tão desarmónicos como os criminosos e os loucos, são indispensáveis à sociedade moderna. São os génios. Estes indivíduos caracterizam-se pelo crescimento monstruoso de uma das actividades psicológicas. Um grande artista, um grande cientista, um grande filósofo é geralmente um homem comum em que uma função se hipertrofiou. Pode também ser comparado a um tumor que se tivesse desenvolvido num organismo normal. Estes seres não equilibrados são, em geral, infelizes. Mas produzem grandes obras, das quais toda a sociedade beneficia. A sua desarmonia gera o progresso da civilização.
O Teatro e a Sátira Política
O teatro político coloca toda uma série de problemas. Há que evitar os sermões a todo o custo. A objectividade é essencial, deve-se deixar as personagens respirar o seu próprio ar. O autor não pode confiná-las nem obrigá-las a satisfazer o seu próprio gosto, inclinações ou preconceitos. Tem de estar preparado para as abordar sob uma grande variedade de ângulos, um leque de perspectivas diversas, apanhá-las de surpresa, talvez, de vez em quando, mas deixando-lhes a liberdade de seguirem o seu próprio caminho. Isto nem sempre funciona. E a sátira política, é evidente, não obedece a nenhum destes preceitos; faz exactamente o inverso, e é essa a sua função principal.
A defesa não quer dizer o panegírico da culpa ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos legais.(O dever do advogado)
A única função do tempo é consumir-se: ele arde sem deixar cinzas.
Tudo o que se realiza em função de outra coisa é feito apenas de maneira parcial, e a verdadeira excelência só pode ser alcançada, em obras de todos os géneros, quando elas foram produzidas em função de si mesmas e não como meios para fins ulteriores.
Nunca releio o que escrevo. Prefiro viver em função do futuro.
O Mal-Entendido Universal
O mundo só caminha através do mal-entendido. É através do mal-entendido universal que toda a gente se põe de acordo. Porque se, por infelicidade, as pessoas se compreendessem, nunca poderiam pôr-se de acordo.
O homem de espírito, aquele que nunca se porá de acordo com ninguém, deve aplicar-se a amar a conversa dos imbecis e a leitura dos maus livros. Extrairá funções amargas que lhe compensarão largamente a fadiga.
O Espírito Desfaz a Ordem das Coisas
O espírito aprendeu que a beleza nos faz bons, maus, estúpidos ou sedutores. Disseca uma ovelha e um penitente e encontra em ambos humildade e paciência. Analisa uma substância e descobre que, tomada em grandes quantidades, pode ser um veneno, e em pequenas doses, um excitante. Sabe que a mucosa dos lábios tem afinidades com a do intestino, mas também sabe que a humildade desses lábios tem afinidades com a humildade de tudo o que é sagrado. O espírito desfaz a ordem das coisas, dissolve-as e volta a recompô-las de forma diferente. O bem e o mal, o que está em cima e o que está em baixo não são para ele noções de um relativismo céptico, mas termos de uma função, valores que dependem do contexto em que se encontram. Os séculos ensinaram-lhe que os vícios se podem transformar em virtudes e as virtudes em vícios, e conclui que, no essencial, só por inépcia se não consegue fazer de um criminoso um homem útil no tempo de uma vida. Não reconhece nada como lícito ou ilícito, porque tudo pode ter uma qualidade graças à qual um dia participará de um novo e grande sistema. Odeia secretamente como a morte tudo aquilo que se apresenta como se fosse definitivo,
O Português não Gosta de Trabalhar
O português não gosta de trabalhar. Se há uma tecnologia que trabalhe por ele, ela que avance. Ele tem coisas mais interessantes para fazer como poeta, do que a trabalhar. (…) O português trabalhou e trabalhou e trabalha sempre que for preciso. O que têm feito os emigrantes pelo mundo? Aonde eles vão e é preciso trabalhar, eles trabalham. (…) O português, dentro de determinadas condições, se a vida lhe fosse inteiramente favorável, ele gostaria muito mais de contemplar e poetar do que trabalhar. Mas quando é levado a uma função em tem que trabalhar, ele trabalha.
Quando um homem assume uma função pública, deve considerar-se propriedade do público.
Apto e Inapto, Verdade e Mentira
A duração, seja os séculos para as civilizações, seja os anos e as dezenas de anos para o indivíduo, tem uma função darwiniana de eliminação do inapto. O que está apto para tudo é eterno. É apenas nisto que reside o valor daquilo a que chamamos a experiência. Mas a mentira é uma armadura com a qual o homem, muitas vezes, permite ao inapto que existe em si sobreviver aos acontecimentos que, sem essa armadura, o aniquilariam (bem como ao orgulho para sobreviver às humilhações), e esta armadura é como que segregada pelo inapto para prevenir uma situação de perigo (o orgulho, perante a humilhação, adensa a ilusão interior). Subsiste na alma uma espécie de fagocitose; tudo o que é ameaçado pelo tempo, para não morrer, segrega a mentira e, proporcionalmente, o perigo de morte. É por isso que não existe amor pela verdade sem uma admissão ilimitada da morte. A cruz de Cristo é a única porta do conhecimento.