Não Somos Capazes de Distinguir o que é Bom e o que é Mau
Quantas vezes um pretenso desastre não foi a causa inicial de uma grande felicidade! Quantas vezes, também, uma conjuntura saudada com entusiasmo não constituiu apenas um passo em direcção ao abismo — elevando um pouco mais ainda alguém em posição eminente, como se em tal posição pudesse estar certo de cair dela sem risco! A própria queda, aliás, não tem em si mesma nada de mal se tomares em consideração o limite para lá do qual a natureza não pode precipitar ninguém. Está bem perto de nós o termo de tudo quanto há, está bem perto, garanto-te, o limite desta existência donde o venturoso se julga expulso e o desgraçado liberto; nós é que, ou por esperanças ou por receios desmesurados, a fazemos mais extensa do que realmente é. Se agires com sabedoria, medirás tudo em função da condição humana, e assim limitarás o espaço tanto das alegrias como dos receios. Vale bem a pena privarmo-nos de duradouras alegrias a troco de não sentirmos duradouros receios!
Por que motivo procuro eu restringir este mal que é o medo? É que não há razão válida para temeres o que quer que seja; nós, isso sim, deixamo-nos abalar e atormentar apenas por vãs aparências. Nunca ninguém analisou o que há de verdade no que nos aflige, mas cada um vai incutindo medo nos outros; nunca ninguém se atreveu a aproximar-se do que lhe perturba o espírito e a averiguar a natureza real e fundamentada do seu medo. Daqui resulta o crédito que se dá a um perigo inexistente, que mantém a sua aparência porque ninguém o contesta a sério. Basta que nos decidamos a abrir bem os olhos para verificarmos como é diminuto, incerto e inofensivo aquilo que receamos. A confusão dos nossos espíritos corresponde perfeitamente à descrição de Lucrécio: «tal como as crianças no meio da escuridão tremem com medo de tudo, assim nós tememos em plena luz!». Pois bem, não seremos nós mais insensatos do que as crianças, nós que tememos em plena luz? A verdade, porém, Lucrécio, é que nós não tememos em plena luz, criamos, sim, trevas a toda a nossa volta! Não somos capazes de distinguir o que é bom e o que é mau; passamos toda a vida a correr, a tropeçar às cegas, e nem por isso somos capazes de parar ou de tomar atenção onde pomos os pés. Estás a imaginar como é coisa de loucos andar a correr no escuro! Valham-me os deuses! Não conseguimos mais nada senão termos de regressar de mais longe; sem saber para onde nos dirigimos, continuamos teimosamente a caminhar para onde o instinto nos leva. No entanto, se o quisermos, poderá fazer-se luz em nós. De um único modo: adquirirmos o conhecimento das coisas divinas e humanas, um conhecimento interiorizado, e não meramente superficial; meditarmos nessas ideias já adquiridas, comprovarmos a sua validade pela nossa própria experiência; investigarmos o que é bom e o que é mau, e a que coisas se atribui falsamente um ou outro destes adjectivos; averiguarmos em que consiste o bem e o mal éticos — e, finalmente, o que é a providência.