Passagens sobre Padres

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A Débil

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

“Ela aí vem!” disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, — talvez que não o suspeites! –
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens,

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O Lema «Conhece-te a ti mesmo» não Leva a Nada de Proveitoso

Conhece-te a ti mesmo! — De que me há de servir? Se a mim me conhecesse, desatava a fugir. […] Com isto confesso que a grande tarefa — Conhece-te a ti mesmo! —, que soa tão importante, sempre me pareceu suspeita, como um ardil de padres secretamente coligados que quisessem perturbar o homem por meio de exigências inatingíveis e desviá-lo da actividade no mundo externo para uma falsa contemplação interior. [… ] Cada novo objecto, bem observado, abre em nós um novo órgão. Do máximo proveito nesse sentido são, porém, os nossos semelhantes, que têm a vantagem de nos compararem com o mundo a partir de seu próprio ponto de vista, e por isso atingem um melhor conhecimento de nós que nós mesmos podemos alcançar.

Se sou um cruel satirista pelo menos eu não sou um hipócrita: Eu nunca julgo o que outras pessoas fazem. Nem um político, nem um padre, eu nunca censuro o que os outros fazem. Nem um filósofo, um psiquiatra, eu nunca incomodo tentando analisar e resolver meus medos e neuroses.

Os meus escritores de referência são Montaigne, Cervantes, o padre António Vieira, Gogol e Kafka. O padre António Vieira era um jesuíta do século XVII. Nunca se escreveu na língua portuguesa com tanta beleza como ele o fez.

Quando Chegar a Hora

Quando eu, feliz! morrer, oiça, Sr. Abbade,
Oiça isto que lhe peço:
Mande-me abrir, alli, uma cova á vontade,
Olhe: eu mesmo lh’a meço…

O coveiro é podão, fal-as sempre tão baixas…
O cão pode lá ir:
Diga ao moço, que tem a pratica das sachas,
Que m’a venha elle abrir.

E o sineiro que, em vez de dobrar a finados,
Que toque a Alléluia!
Não me diga orações, que eu não tenho peccados:
A minha alma é dia!

Será meu confessor o vento, e a luz do raio
A minha Extrema-Uncção!
E as carvalhas (chorae o poeta, encommendae-o!)
De padres farão.

Mas as aguias, um dia, em bando como astros,
Virão devagarinho,
E hão-de exhumar-me o corpo e leval-o-ão de rastros,
Em tiras, para o ninho!

E ha-de ser um deboche, um pagode, o demonio,
N’aquelle dia, ai!
Aguias! sugae o sangue a vosso filho Antonio,
Sugae! sugae! sugae!

Raro têm de comer. A pobreza consome
As aguias, coitadinhas!
Ao menos, n’esse dia, eu matarei a fome
A essas desgraçadinhas…

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A Piedosa Beppa

Enquanto o meu corpo for belo
É pecado ser piedosa,
É sabido que Deus gosta das mulheres,
E das bonitas sobretudo.
Ele perdoará, tenho a certeza,
Facilmente ao pobre fradezinho
Que tanto procura a minha companhia
Como muitos outros fradezinhos.

Não é um velhorro padre da Igreja,             .
Não, é jovem, muitas vezes vermelho,
Muitas vezes, apesar da mais cinzenta tristeza,
Pleno de desejo e de ciúme.
Não gosto dos velhos.
Ele não gosta das velhas:
Que admiráveis e sábios
São os caminhos do Senhor!

A Igreja sabe viver,
Sonda os corações e os rostos,
Insiste em perdoar-me…
Quem não me perdoará, então?
Três palavras na ponta da língua,
Uma reverência e ide embora:
O pecado deste minuto
Apagará o antigo.

Bendito seja Deus na Terra,
Gosta das raparigas bonitas
E perdoa de bom grado
Os tormentos do amor.
Enquanto o meu corpo for belo
É pena ser piedosa;
Case o diabo comigo
Quando eu já não tiver dentes.

A Crença só se Mantém pela Ritualização

Uma verdade racional é impessoal e os factos que a sustentam ficam estabelecidos para sempre. Sendo, ao contrário, pessoais e baseadas em concepções sentimentais ou místicas, as crenças são submetidas a todos os factores susceptíveis de impressionar a sensibilidade. Deveriam, portanto, ao que parece, modificar-se incessantemente.
As suas partes essenciais mantêm-se, contudo, mas cumpre que sejam constantemente alentadas. Qualquer que seja a sua força no momento do seu triunfo, uma crença que não é continuamente defendida logo se desagrega. A história está repleta de destroços de crenças que, por essa razão, tiveram apenas uma existência efémera. A codificação das crenças em dogmas constitui um elemento de duração que não poderia bastar. A escrita unicamente modera a acção destruidora do tempo.
Uma crença qualquer, religiosa, política, moral ou social mantém-se sobretudo pelo contágio mental e por sugestões repetidas. Imagens, estátuas, relíquias, peregrinações, cerimônias, cantos, música, prédicas, etc., são os elementos necessários desse contágio e dessas sugestões.
Confinado num deserto, privado de qualquer símbolo, o crente mais convicto veria rapidamente a sua fé declinar. Se, entretanto, anacoretas e missionários a conservam, é porque incessantemente relêem os seus livros religiosos e, sobretudo, se sujeitam a uma multidão de ritos e de preces.

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Se Eu Fosse Um Padre

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
– muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições…
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
… a um belo poema – ainda que de Deus se aparte –
um belo poema sempre leva a Deus!

Nem Sequer Sou Poeira

Não quero ser quem sou. A avara sorte
Quis-me oferecer o século dezassete,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, dá a véspera,
A palestra do padre ou do barbeiro,
A solidão que o tempo vai deixando
E uma vaga sobrinha analfabeta.
Já sou entrado em anos. Uma página
Casual revelou-me vozes novas,
Amadis e Urganda, a perseguir-me.
Vendi as terras e comprei os livros
Que narram por inteiro essas empresas:
O Graal, que recolheu o sangue humano
Que o Filho derramou pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de ouro,
Os ferros, as ameias, as bandeiras
E as operações e truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá percorriam
Os reinos que há na terra, na vingança
Da ultrajada honra ou querendo impor
A justiça no fio de cada espada.
Queira Deus que um enviado restitua
Ao nosso tempo esse exercício nobre.
Os meus sonhos avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e solitária.
Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,
Serei o paladino.

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Pobre Tysica!

Quando ella passa á minha porta,
Magra, livida, quazi morta,
E vae até á beira-mar,
Labios brancos, olhos pizados:
Meu coração dobra a finados,
Meu coração poe-se a chorar…

Perpassa leve como a folha,
E suspirando, ás vezes, olha
Para as gaivotas, para o Ar:
E, assim, as suas pupillas negras
Parecem duas toutinegras,
Tentando as azas para voar!

Veste um habito cor de leite,
Saiinha liza, sem enfeite,
Boina maruja, toda luar:
Por isso, mal na praia alveja,
As mais suspiram com inveja:
«Noiva feliz, que vaes cazar…»

Triste, acompanha-a um Terra-Nova
Que, dentro em pouco, á fria cova
A irá de vez acompanhar…
O chão desnuda com cautella,
Que Boy conhece o estado d’ella:
Quando ella tosse, poe-se a uivar!

E, assim, sósinha com a aia,
Ao sol, se assenta sobre a praia,
Entre os bébés, que é o seu logar…
E o Oceano, tremulo avôzinho,
Cofiando as barbas cor de linho,
Vem ter com ella a conversar…

Fallam de sonhos, de anjos,

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Tenho uma Saudade tão Braba

Tenho uma saudade tão braba
Da ilha onde já não moro,
Que em velho só bebo a baba
Do pouco pranto que choro.

Os meus parentes, com dó,
Bem que me querem levar,
Mas talvez que nem meu pó
Mereça a Deus lá ficar.

Enfim, só Nosso Senhor
Há-de decidir se posso
Morrer lá com esta dor,
A meio de um Padre Nosso.

Quando se diz «Seja feita»
Eu sentirei na garganta
A mão da Morte, direita
A este peito, que ainda canta.

Prece A Anchieta

Santo: erguesses a cruz na selva escura;
Herói: plantasses nossa velha aldeia;
Mestre: ensinasses a doutrina pura;
Poeta: escrevesses versos sobre a areia!

Golpeia a cruz a foice inculta e dura;
Invade a vila multidão alheia;
Morre a voz santa entre a distância e a altura;
Apaga o poema a onda espumejante e cheia…

Santo, herói, mestre e poeta: — Pela glória
que destes a esta Terra e a sua História,
Pela dor que sofremos sempre nós.

Pelo bem que quisesses a este povo,
O novo Cristo deste Mundo Novo,
Padre José de Anchieta, orai por nós!

Às vezes no amor ilícito está toda a pureza do corpo e alma, não abençoado por um padre, mas abençoado pelo próprio amor.

Respondiam-lhe que durante muitos anos tinham ficado sem padre, arranjando os negócios da alma diretamente com Deus, e haviam perdido a malícia do pecado mortal.

Enterro de Ophelia

Morreu, Vae a dormir, vae a sonhar… Deixal-a!
(Fallae baixinho: agora mesmo se ficou…)
Como padres orando, os choupos formam ala,
Nas margens do ribeiro onde ella se afogou…

Toda de branco vae, n’esse habito de opala,
Para um convento: não o que o Hamlet lhe indicou,
Mas para um outro, horror! que tem por nome Valla,
D’onde jamais saiu quem, lá, uma vez entrou!…

O lindo Por-do-Sol, que era doido por ella,
Que a perseguia sempre, em palacio e na rua,
Vede-o, coitado! mal pode suster a vela…

Como damas de honor, nymphas seguem-lhe os rastros,
E, assomando no céu, sua Madrinha, a Lua,
Por ella vae desfiando as suas contas, Astros!

Não Creio nesse Deus

I

Não sei se és parvo se és inteligente
— Ao disfrutares vida de nababo
Louvando um Deus, do qual te dizes crente,
Que te livre das garras do diabo
E te faça feliz eternamente.

II

Não vês que o teu bem-estar faz d’outra gente
A dor, o sofrimento, a fome e a guerra?
E tu não queres p’ra ti o céu e a terra..
— Não te achas egoísta ou exigente?

III

Não creio nesse Deus que, na igreja,
Escuta, dos beatos, confissões;
Não posso crer num Deus que se maneja,
Em troca de promessas e orações,
P’ra o homem conseguir o que deseja.

IV

Se Deus quer que vivamos irmãmente,
Quem cumpre esse dever por que receia
As iras do divino padre eterno?…
P’ra esses é o céu; porque o inferno
É p’ra quem vive a vida à custa alheia!