Se uma imagem vale mais do que mil palavras, então diga isto com uma imagem.
Passagens sobre Palavras
1853 resultadosEscrevias pela Noite Fora
Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava
o que ia ficando nas pausas entre cada
sorriso. Por ti mudei a razão das coisas,
faz de conta que não sei as coisas que não queres
que saiba, acabei por te pensar com crianças
à volta. Agora há prédios onde havia
laranjeiras e romãs no chão e as palavras
nem o sabem dizer, apenas apontam a rua
que foi comum, o quarto estreito. Um livro
é suficiente neste passeio. Quando não escreves
estás a ler e ao lado das árvores o silêncio
é maior. Decerto te digo o que penso
baixando a cabeça e tu respondes sempre
com a cabeça inclinada e o fumo suspenso
no ar. As verdades nunca se disseram. Queria
prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. Mantêm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
está aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo.
É melhor que fale por nós a nossa vida, que as nossas palavras.
As Palavras de Amor
Esqueçamos as palavras, as palavras:
As ternas, caprichosas, violentas,
As suaves de mel, as obscenas,
As de febre, as famintas e sedentas.Deixemos que o silêncio dê sentido
Ao pulsar do meu sangue no teu ventre:
Que palavra ou discurso poderia
Dizer amar na língua da semente?
Não há espelho que melhor reflita a imagem do homem do que de suas palavras.
Aquilo que realmente une um casal são os interesses em comum, as prestações a pagar, as dívidas contraídas a meias. Pedes um empréstimo a vinte anos e estás a assegurar um casamento para metade da vida. O verdadeiro amor é isso. Palavras, leva-as o vento.
Canção da Minha Tristeza
Meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.
Nada acontece. Nada. Nem, ao menos, tu
virás despentear os meus cabelos.Nem, ao menos, tu, neste tempo de angústia
vens dizer o meu nome ou cobrir-me de beijos.
Ah, meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.A cidade enlouquece os meus olhos de pássaro.
Eu recuso as palavras. Sei o nome da chuva.
Quero amar-te, sim. Mas tu hoje não voltas.
Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.Nada acontece. Nada. E eu procuro-te
por dentro da noite, com mãos de surpresa.
Meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.E tu, longe, longe. Onde estás meu amor,
que não vens despentear os meus cabelos?
Eu quero amar-te. Mas tu hoje não voltas.
Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.
Nunca Me Tinha Apaixonado Verdadeiramente
Escrevi até o princípio da manhã aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pêlo dos gatos. O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silêncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercício, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.
Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois,
Testamento do Homem Sensato
Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: «Ele era assim…»
mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.Porém, se, um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
com uma luz, mais que distante, breve.
Estado Frenético de Tagarelice
Assola o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensembles, coros. Desde os píncaros de Castro Laboreiro ao Ilhéu de Monchique fervem rumorejos, conversas, vozeios, brados que abafam e escamoteiam a paciência de alguns, os vagares de muitos e o bom senso de todos. O falatório é causa de inúmeros despautérios, frouxas produtividades e más-criações.
Fala-se, fala-se, fala-se, em todos os sotaques, em todos os tons e décibeis, em todos os azimutes. O país fala, fala, desunha-se a falar, e pouco do que diz tem o menor interesse. O país não tem nada a dizer, a ensinar, a comunicar. O país quer é aturdir-se. E a tagarelice é o meio de aturdimento mais à mão.
(…) Telefones móveis! Soturna apoquentação! Um país tagarela tem, de um momento para o outro, dez milhões de íncolas a querer saber onde é que os outros param, e a transmitir pensamentos à distância.
Afortunados ventos que batem todas as altitudes e pontos cardeais e levam as mais das palavras, às vezes frases inteiras, parágrafos, grosas deleas, para as afogar no mar, embeber nos lameiros de Espanha, gelar nos confins da Sibéria,
Tu Ensinaste-me a Fazer uma Casa
Tu ensinaste-me a fazer uma casa:
com as mãos e os beijos.
Eu morei em ti e em ti meus versos procuraram
voz e abrigo.
E em ti guardei meu fogo e meu desejo. Construí
a minha casa.
Porém não sei já das tuas mãos. Os teus lábios perderam-se
entre palavras duras e precisas
que tornaram a tua boca fria
e a minha boca triste como um cemitério de beijos.Mas recordo a sede unindo as nossas bocas
mordendo o fruto das manhãs proibidas
quando as nossas mãos surgiam por detrás de tudo
para saudar o vento.E vejo teu corpo perfumando a erva
e os teus cabelos soltando revoadas de pássaros
que agora se recolhem, quando a noite se move,
nesta casa de versos onde guardo o teu nome.
A um Jovem Poeta
Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode serque em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheçascomo diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.
Conhecer-se a Si Próprio
Conhece-te a ti próprio – eis o que é difícil. Ainda posso conhecer os outros, mas a mim mesmo não consigo conhecer-me. Um fio – instintos e um fantasma… Dos outros faço ideia mais ou menos aproximada, de mim não faço ideia nenhuma.
Há uma disparidade entre mim e mim. Há em mim o homem correcto, o homem igual a todos os homens – e o homem que lá dentro sonha, grita e é capaz, por insignificâncias, de imaginar um terramoto ou de desejar uma catástrofe. O que eu me tenho desfeito dos meus inimigos – o que é razoável – mas dos meus amigos que me fazem sombra!…
O meu verdadeiro ser não é aquele que compus, recalcando lá para o fundo os instintos e as paixões; o meu verdadeiro ser é uma árvore desgrenhada – é o fantasma que nos momentos de exaltação me leva a rasto para actos que reprovo. Só a custo o contenho. Parece que está morto, e está mais vivo que o histrião que represento. Asseguro este simulcaro até à cova com os hábitos de compressão que adquiri. Não sei se a maior parte dos homens é assim – eu sou assim: sou um fantasma desesperado.
Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas
É melhor ser rei do teu silêncio do que escravo das tuas palavras.
Um dos méritos da poesia, que muita gente não percebe, é que ela diz mais que a prosa e em menos palavras que a prosa.
Na Leitura e na Escrita Encontramo-nos Todos naquilo que Temos de Mais Humano
A escrita, ou a arte, para ser mais abrangente, cumpre funções que mais nenhuma área consegue cumprir. (…) Sinto que há poucas experiências tão interessantes como quando se lê um livro e se percebe “já senti isto, mas nunca o tinha visto escrito”, procurar isso, ou procurar escrever textos que façam sentir isso, é uma das minhas buscas permanentes. Trata-se de ordenar, de esquematizar, não só sentimentos como ideias que temos de uma forma vaga mas que entendemos melhor quando os vemos em palavras. Trata-se também de construir empatia: através da leitura temos oportunidade de estar na pele de outras pessoas e de sentir coisas que não fazem parte da nossa vida, mas que no momento em que lemos conseguimos perceber como é. E isso faz-nos ser mais humanos. Na leitura e na escrita encontramo-nos todos naquilo que temos de mais humano.
Sou o médico de quem às vezes se fala neste romance com palavras pouco lisonjeiras. Quem entende de psicanálise sabe como interpretar a antipatia que o paciente me dedica.
Disputas Empobrecedoras
As disputas deviam ser regulamentadas e punidas como outros crimes verbais. Que defeitos não suscitam e acumulam em nós, reguladas e governadas como são pela cólera! Começamos por ser inimigos das razões e acabamos por o ser dos homens. Só aprendemos a discutir para contraditar, e, à força de se contraditar e ser-se contraditado, vem a acontecer que o fruto do discutir é perder e aniquilar-se a verdade. Assim, Platão, na República, proíbe o seu exercício aos espíritos ineptos e mal formados.
Porque nos havemos de pôr a caminho, para descobrir a verdade, com quem não tem passo nem andamento que sirvam? Não se prejudica o assunto quando o deixamos para procurar o meio de o tratarmos; não falo dos meios escolásticos e artificiais, falo dos meios naturais, dum entendimento são. Que sucederá por fim? Cada um puxa para o seu lado; perdem de vista o essencial, põem-no de parte na confusão do acessório.
No fim de uma hora de tormenta já não sabem o que procuram; um está em cima, outro em baixo, outro para o lado. Uns demoram-se com as palavras e com as comparações; outros não entendem o que se lhes objecta, tanto se entusiasmam: só pensam neles,
A Minha única Felicidade és Tu
Até agora ainda nada te disse da nossa vida de família. Devo dizer-te algumas palavras para que saibas com que contar. Temos uma vida muito tranquila, vida que sempre desejei e a que estou realmente habituado. A música ou o teatro vêm por vezes interromper a monotonia desta vida quase monástica. Quando vieres faremos mais ou menos a mesma vida interrompendo no entanto a monotonia pelo teatro, pequenos serões musicais e mesmo dançantes se isso te agradar. Sem isso passaremos os nossos serões ao lado um do outro a conversar e a dar graças ao bom Deus pela nossa felicidade. Devo também falar-te dos meus gostos e das minhas qualidades tanto quanto posso conhecê-los. Sou um grande fumador, um caçador bastante bom, apaixonado pela música e dançarino medíocre. Quanto às qualidades e aos defeitos, já que todos os temos, tenho mais dificuldade em falar deles, já que ninguém é bom juiz em causa própria. Contudo todas as minhas qualidades se fundirão numa só, a de te adorar e não amar a mais ninguém no mundo, anjo da minha vida. Quando estivermos unidos, só viveremos juntos, onde um irá, o outro seguirá, o que um quiser o outro também há-de querer.