Felicidade e Virtude
Como, ao que parece, há muitos fins e podemos buscar alguns em vista de outros: por exemplo, a riqueza, a música, a arte da flauta e, em geral, todos aqueles fins que podem denominar-se instrumentos, é evidente que nenhum desses fins é perfeito e definitivo por si mesmo. Mas o sumo bem deve ser coisa perfeita e definitiva. Por conseguinte, se existe uma só e única coisa que seja definitiva e perfeita, ela é precisamente o bem que procuramos; e se há muitas coisas deste género, a mais definitiva entre elas será o bem. Mas, em nosso entender, o bem que apenas deve buscar-se por si mesmo é mais definitivo que aquele que se procura em vista de outro bem; e o bem que não deve buscar-se nunca com vista noutro bem é mais definitivo que os bens que se buscam ao mesmo tempo por si mesmos e por causa desse bem superior; numa palavra, o perfeito, o definitivo, o completo, é o que é eternamente apetecível em si, e que nunca o é em vista de um objecto distinto dele.
Eis aí precisamente o carácter que parece ter a felicidade; buscamo-la por ela e só por ela, e nunca com mira em outra coisa. Pelo contrário, quando buscamos as honras, o prazer, a ciência, a virtude, sob qualquer forma que seja, desejamos, indubitavelmente, todas essas vantagens por si mesmas; pois que, independentemente de toda outra consequência, desejaríamos cada uma delas; todavia, desejamo-las também com mira na felicidade, porque cremos que todas essas diversas vantagens no-la podem assegurar; enquanto ninguém pode desejar a felicidade, nem com mira nestas vantagens, nem, de maneira geral, com vista em algo, seja o que for, distinto da felicidade mesma.
(…) Todavia, ainda convindo connosco em que a felicidade é, sem contradita, o maior dos bens, o bem supremo, talvez haja quem deseje conhecer melhor a sua natureza.
O meio mais seguro de alcançar esta completa noção é saber qual é a obra própria do homem. (…) Viver é uma função comum ao homem e às plantas, e aqui apenas se busca o que é exclusivamente especial ao homem; é por isso necessário pôr de lado a vida de nutrição e de desenvolvimento. Em seguida vem a vida da sensibilidade, mas esta, por sua vez, mostra-se igualmente comum a todos os seres – o cavalo, o boi, e em geral a todos os animais, tal como ao homem. Resta, portanto, a vida activa do ser dotado de razão. Mas neste ser deve distinguir-se a parte que não possui directamente a razão e se serve dela para pensar. Além disso, como esta mesma faculdade da razão se pode compreender num duplo sentido, devemos não esquecer que se trata aqui, sobretudo, da faculdade em acção, a qual merece mais particularmente o nome que a ambas convém. E assim o próprio do homem será o acto da alma em conformidade com a razão, ou, pelo menos, o acto da alma que não pode realizar-se sem a razão. (…) Mas o bem, a perfeição para cada coisa, varia segundo a virtude especial dessa coisa. Por conseguinte, o bem próprio do homem é a actividade da alma dirigida pela virtude; e, como há muitas virtudes, será a actividade dirigida pela mais alta e a mais perfeita de todas. Acrescente-se também que estas condições devem ser realizadas durante uma vida inteira e completa, porque uma só andorinha não faz a Primavera, nem um só dia formoso; e não pode tão-pouco dizer-se que um só dia de felicidade, nem mesmo uma temporada, bastam para fazer um homem ditoso e afortunado.