Textos sobre Arte

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Textos de arte escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

A Ordem e a Variedade

Não basta mostrar à alma muitas coisas, é necessária mostrá-las com ordem, porque nesse caso lembramo-nos daquilo que vimos e começamos a imaginar o que veremos; a nossa alma alegra-se pelo seu alcance e pela sua capacidade de penetração; mas numa obra onde não existe qualquer ordem, a alma vê vacilar em cada instante quem deseja introduzir-se nela. A sequência que o autor cria confunde-se com aquela que nós fazemos; a alma não retém nada, não prevê nada; é humilhada pela confusão das suas ideias, pela inutilidade que lhe resta; encontra-se verdadeiramente fatigada e não pode apreciar qualquer prazer.
(…) Mas se a ordem é necessária às coisas, é também necessária a variedade: sem ela a alma esmorece, porque as coisas semelhantes lhe parecem as mesmas e, se uma parte de um quadro se assemelhasse a outra que tivéssemos visto, esse objecto seria novo sem o parecer e não proporcionaria qualquer prazer. E, como a beleza das obras de arte, tal como a da natureza, consiste no prazer que nos proporciona, é necessário torná-la o mais possível apta a variar esses prazeres; é necessário fazer a alma ver coisas que nunca viu; é necessário que o sentimento que lhe propocionamos seja diferente do que tem sentido até ali.

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O Ideal é a Vida

A nossa vida sem ideais nenhuns, toda quotidiana, quer no presente quer pelo pensamento do futuro. Perdendo a religião, nada reavemos para a substituir; nem arte, porque a arte é, como religião, para muito poucos; nem ciência, que é para menos ainda, nem filosofia, que é para quase nenhuns.
Não me refiro à conducta mas a ideais. Uma sociedade nunca pode ser grande nem pura sem ideais, porque na moral que nasce, na moral para uso quotidiano e de quotidiana origem, caberá uma certa decência, uma honestidade, razoáveis instintos humanitários, mas não uma nobreza de qualquer espécie, não uma grandeza de carácter. E o ponto importante é este. O ideal é a vida; vamos perdendo o ideal, e a nossa vitalidade vai diminuindo tristemente.

A Serenidade

A serenidade não é feita nem de troça nem de narcisismo, é conhecimento supremo e amor, afirmação da realidade, atenção desperta junto à borda dos grandes fundos e de todos os abismos; é uma virtude dos santos e dos cavaleiros, é indestrutível e cresce com a idade e a aproximação da morte. É o segredo da beleza e a verdadeira substância de toda a arte.
O poeta que celebra, na dança dos seus versos, as magnificências e os terrores da vida, o músico que lhes dá os tons de duma pura presença, trazem-nos a luz; aumentam a alegria e a clareza sobre a Terra, mesmo se primeiro nos fazem passar por lágrimas e emoções dolorosas. Talvez o poeta cujos versos nos encantam tenha sido um triste solitário, e o músico um sonhador melancólico: isso não impede que as suas obras participem da serenidade dos deuses e das estrelas. O que eles nos dão, não são mais as suas trevas, a sua dor ou o seu medo, é uma gota de luz pura, de eterna serenidade. Mesmo quando povos inteiros, línguas inteiras, procuram explorar as profundezas cósmicas em mitos, cosmogonias, religiões, o último e supremo termo que poderão atingir é essa serenidade.

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O Pudor é um Sentimento Masculino

O pudor é um sentimento masculino. Quando uma mulher conhece outra, ao fim de dez minutos está já a explicar-lhe como é que o marido trabalha na cama. Ao fim de dez anos ou de uma vida, um homem não explica a outro como trabalha a mulher. É que o homem não é um novo-rico do sexo. Ou respeita a mulher por simples machismo?
Porque é por machismo, por exemplo, que muitas vezes admira uma mulher que se distinguiu nas artes ou nas ciências. Implicitamente tem-se a ideia de que o normal seria não se distinguir. Se portanto se distingue, é isso tão extraordinário como um trapezista de circo ou coisa assim. Admirando-se então a mulher, simultaneamente se humilha. Dessa humilhação se fazem muitas admirações.

A Fidelidade é a mais Integral de todas as Virtudes Humanas

A fidelidade (…) é a mais integral de todas as virtudes humanas. O homem participa numa batalha e, sem a fidelidade, não conhece a sua luta; apenas usa da violência, interpreta uma vontade, é instrumento de uma opinião. A fidelidade move-o desde a sua origem, é a primeira condição da consciência. Não se efectuam coisas novas sem fidelidade. Não se engrandece a piedade ou se priva com o mais simples sentimento, sem a fidelidade. Uma acção progressiva tem que ter raízes tumulares, raízes naquilo que encerrámos definitivamente – uma era, um conhecimento, uma arte, uma maneira de viver. A fidelidade, disse eu, assegura-nos o tempo de criar e o tempo de destruir o que se tornou inconforme à imagem do homem. Nada é digno de valor, sem fidelidade.

Na Leitura e na Escrita Encontramo-nos Todos naquilo que Temos de Mais Humano

A escrita, ou a arte, para ser mais abrangente, cumpre funções que mais nenhuma área consegue cumprir. (…) Sinto que há poucas experiências tão interessantes como quando se lê um livro e se percebe “já senti isto, mas nunca o tinha visto escrito”, procurar isso, ou procurar escrever textos que façam sentir isso, é uma das minhas buscas permanentes. Trata-se de ordenar, de esquematizar, não só sentimentos como ideias que temos de uma forma vaga mas que entendemos melhor quando os vemos em palavras. Trata-se também de construir empatia: através da leitura temos oportunidade de estar na pele de outras pessoas e de sentir coisas que não fazem parte da nossa vida, mas que no momento em que lemos conseguimos perceber como é. E isso faz-nos ser mais humanos. Na leitura e na escrita encontramo-nos todos naquilo que temos de mais humano.

Disputas Empobrecedoras

As disputas deviam ser regulamentadas e punidas como outros crimes verbais. Que defeitos não suscitam e acumulam em nós, reguladas e governadas como são pela cólera! Começamos por ser inimigos das razões e acabamos por o ser dos homens. Só aprendemos a discutir para contraditar, e, à força de se contraditar e ser-se contraditado, vem a acontecer que o fruto do discutir é perder e aniquilar-se a verdade. Assim, Platão, na República, proíbe o seu exercício aos espíritos ineptos e mal formados.
Porque nos havemos de pôr a caminho, para descobrir a verdade, com quem não tem passo nem andamento que sirvam? Não se prejudica o assunto quando o deixamos para procurar o meio de o tratarmos; não falo dos meios escolásticos e artificiais, falo dos meios naturais, dum entendimento são. Que sucederá por fim? Cada um puxa para o seu lado; perdem de vista o essencial, põem-no de parte na confusão do acessório.
No fim de uma hora de tormenta já não sabem o que procuram; um está em cima, outro em baixo, outro para o lado. Uns demoram-se com as palavras e com as comparações; outros não entendem o que se lhes objecta, tanto se entusiasmam: só pensam neles,

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O Verdadeiro Homem

É evidente que a natureza se preocupa bem pouco com o que o homem tem ou não no espírito. O verdadeiro homem é o homem selvagem, que se relaciona com a natureza tal como ela é. Assim que o homem aguça a sua inteligência, desenvolve as suas ideias e a forma de as exprimir, ou adquire novas necessidades, a natureza opõe-se aos seus desígnios em toda a linha. Só lhe resta violentá-la, continuamente. Ela, pelo seu lado, também não fica quieta. Se ele suspende por momentos o trabalho que se impusera, ela torna-se de novo dominadora, invade-o, devora-o, destrói ou desfigura a sua obra; dir-se-ia que acolhe com impaciência as obras-primas da imaginação e da perícia do homem.

Que importam à ronda das estações, ao curso dos astros, dos rios e dos ventos, o Parténon, São Pedro de Roma e tantas outras maravilhas da arte? Um tremor de terra ou a lava de um vulcão reduzem-nos a nada; os pássaros farão os seus ninhos nas suas ruínas; os animais selvagens irão buscar os ossos dos construtores aos seus túmulos entreabertos.

Nós Estamos num Estado Comparável à Grécia

Nós estamos num estado comparável, correlativo à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma ladroagem pública, mesma agiotagem, mesma decadência de espírito, mesma administração grotesca de desleixo e de confusão. Nos livros estrangeiros, nas revistas, quando se quer falar de um país católico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa – citam-se ao par a Grécia e Portugal. Somente nós não temos como a Grécia uma história gloriosa, a honra de ter criado uma religião, uma literatura de modelo universal e o museu humano da beleza da arte.

Nunca se Escreve para Si Mesmo

O escritor não prevê nem conjectura: projecta. Acontece por vezes que espera por si mesmo, que espera pela inspiração, como se diz. Mas não se espera por si mesmo como se espera pelos outros; se hesita, sabe que o futuro não está feito, que é ele próprio que o vai fazer, e, se não sabe ainda o que acontecerá ao herói, isto quer simplesmente dizer que não pensou nisso, que não decidiu nada; então, o futuro é uma página branca, ao passo que o futuro do leitor são as duzentas páginas sobrecarregadas de palavras que o separam do fim.

Assim, o escritor só encontra por toda a parte o seu saber, a sua vontade, os seus projectos, em resumo, ele mesmo; atinge apenas a sua própria subjectividade; o objecto que cria está fora de alcance; não o cria para ele. Se relê o que escreveu, já é demasiado tarde; a sua frase nunca será a seus olhos exactamente uma coisa. Vai até aos limites do subjectivo, mas sem o transpor; aprecia o efeito dum traço, duma máxima, dum adjectivo bem colocado; mas é o efeito que produzirão nos outros; pode avaliá-lo, mas não senti-lo.
Proust nunca descobriu a homossexualidade de Charlus,

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Felicidade, Glória, Imaginação, Inteligência e Inspiração

Numa vida profundamente atormentada seria possível muitas vezes encontrar-se felicidade para várias outras existências. Da felicidade que um homem malbarata, sem lhe suspeitar o valor, outros homens tirariam alegria para toda a vida, assim como as sobras da mesa do rico dariam para sustento de mais de um pobre.

A glória é um processo de apuramento que nunca pára. À medida que a humanidade envelhece e que as suas recordações se vão amontoando, tornam-se necessárias novas selecções. Séculos inteiros são depurados nesses escrutínios, sem que sobreviva um nome sequer. Um dia os imortais irão unir-se aos anónimos no esquecimento final.

É a imaginação, tocha divina apensa ao espírito do homem, que lhe permite mover-se nas trevas da criação. Assim os peixes das profundezas oceânicas trazem um facho que os ilumina na noite eterna. Sem isto para que lhes serviriam os olhos? Sem imaginação, que utilidade teria para o homem a inteligência?

O homem de letras tem falhas pronunciadas de inteligência, a ponto de parecer estúpido ao homem de negócios. Não deixa porém por isso de se considerar, onde quer que se encontre, o mais inteligente da roda. Nada é mais absurdo do que essa superioridade,

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Manufacturamos Realidades

Damos comummente às nossas ideias do desconhecido a cor das nossas noções do conhecido: se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida. Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes.
Mas assim é toda a vida; assim, pelo menos, é aquele sistema de vida particular a que no geral se chama civilização. A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade. O objecto torna-se realmente outro, porque o tornámos outro.
Manufacturamos realidades. A matéria-prima continua a ser a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efectivamente de continuar sendo a mesma. Uma mesa de pinho é pinho mas também é mesa. Sentamo-nos à mesa e não ao pinho. Um amor é um instinto sexual, porém não amamos com o instinto sexual, mas com a pressuposição de outro sentimento. E essa pressuposição é,

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Só Se Possuem Eternamente os Amigos de Quem Nos Separamos

O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo. Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces, ao encontro de quem vais e que porventura te esperam: aquele que eles vão conhecer será diferente daquele que eu julguei conhecer e creio amar. Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo. Gherardo, não te enganes sobre as minha lágrimas: vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los. Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe, enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela. Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo, assim tu também não és mais para mim do que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver. Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo.
Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.

A Tolerância é um Atributo dos Fortes

A emoção é um campo de energia em contínuo estado de transformação. Produzimos centenas de emoções diárias. Elas organizam-se, desorganizam-se e reorganizam-se num processo contínuo e inevitável. O ideal seria que o círculo de transformação da emoção seguisse uma trajetória prazerosa, ou seja, que um sentimento de alegria se transformasse num sentimento de paz, que se transformasse numa reação de amor, que se transformasse numa experiência contemplativa. Mas, na realidade, o que ocorre na vida de cada ser humano é que a alegria se converte em ansiedade, o prazer em irritabilidade, enfim, as emoções alternam-se.

Não é possível para a natureza humana ter uma emoção continuamente prazerosa. Não existe, como muitos psicólogos pensam, equilíbrio emocional. A emoção passa por inevitáveis ciclos diários. No entanto, a emoção é mais saudável quanto mais estável ela for e quanto mais perdurarem os sentimentos que alimentam o prazer e a serenidade.

A tolerância é um atributo dos fortes e não dos fracos. A tolerância produz profunda estabilidade no campo da energia emocional. Só se constrói a tolerância quando se constrói primeiro a capacidade de compreender as limitações dos outros.

Quanto mais uma pessoa for intolerante, mais será invadida pelos comportamentos dos outros,

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Liberdade

Antes que a ideia de Deus esmagasse os homens, antes dos autos de fé, das perseguições religiosas da Inquisição e do fundamentalismo islâmico, o Mediterrâneo inventou a arte de viver. Os homens viviam livres dos castigos de Deus e das ameaças dos Profetas: na barca da morte até à outra vida, como acreditavam os egípcios. E os deuses eram, em vida dos homens, apenas a celebração de cada coisa: a caça, a pesca, o vinho, a agricultura, o amor. Os deuses encarnavam a festa e a alegria da vida e não o terror da morte.

Antes da queda de Granada, antes das fogueiras da Inquisição, antes dos massacres da Argélia, o Mediterrâneo ergueu uma civilização fundada na celebração da vida, na beleza de todas as coisas e na tolerância dos que sabem que, seja qual for o Deus que reclame a nossa vida morta, o resto é nosso e pertence-nos – por uma única, breve e intensa passagem. É a isso que chamamos liberdade – a grande herança do mundo do Mediterrâneo.

(…) Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos;

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Psicanálise e Arte

As criações, obras de arte, são imaginárias satisfações de desejos inconscientes, do mesmo modo que os sonhos, e, tanto como eles, são, no fundo, compromissos, dado que se vêem forçadas a evitar um conflito aberto com as forças de repressão. Todavia, diferem dos conteúdos narcisistas, associais, dos sonhos, na medida em que são destinadas a despertar o inteesse noutras pessoas e são capazes de evocar e satisfazer os mesmos desejos que nelas se encontram inconscientes. À parte isto, fazem uso do prazer perceptivo da beleza formal, aquilo a que chamei um prémio-estímulo. Aquilo que a psicanálise foi capaz de fazer consistiu em captar as relações entre as impressões da vida do artista, as suas experiências causais e as suas obras e, a partir delas, reconstruir a sua constituição e os impulsos que se movem dentro dele. Não se deve julgar que o salaz que procura uma obra de arte se anule pelo conhecimento obtido pela análise. A este respeito é possível que o profano espere acaso demasiado da análise, mas deve advertir-se que ela não esclarece os dois problemas que são, provavelmente, os mais interessantes para ele: não esclarece quanto à natureza dos dotes do artista, nem pode explicar os meios de que o artista se serve para trabalhar a técnica artística.

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A Vulgaridade Intelectual

Hoje, (…) o homem médio tem as «ideias» mais taxativas sobre quanto acontece e deve acontecer no universo. Por isso perdeu o uso da audição. Para quê ouvir, se já tem dentro de si o que necessita? Já não é época de ouvir, mas, pelo contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir. Não há questão de vida pública em que não intervenha, cego e surdo como é, impondo as suas «opiniões».
Mas não é isto uma vantagem? Não representa um progresso enorme que as massas tenham «ideias», quer dizer, que sejam cultas? De maneira alguma. As «ideias» deste homem médio não são autenticamente ideias, nem a sua posse é cultura. A ideia é um xeque-mate à verdade. Quem queira ter ideias necessita antes de dispor-se a querer a verdade, e aceitar as regras do jogo que ela imponha. Não vale falar de ideias ou opiniões onde não se admite uma instância que as regula, uma série de normas às quais na discussão cabe apelar. Estas normas são os princípios da cultura. Não me importa quais são. O que digo é que não há cultura onde não há normas. A que os nossos próximos possam recorrer.
Não há cultura onde não há princípios de legalidade civil a que apelar.

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A Liberdade não Existe sem Coerção

Que não haja oposição entre a coerção e a liberdade; que, ao contrário, elas se auxiliem – toda a liberdade exerce-se para contornar ou superar uma coerção, e toda a coerção apresenta fissuras ou pontos de menor resistência que são incitações à criação -, nada, sem dúvida, consegue dissipar melhor a ilusão contemporânea de que a liberdade não suporta entraves e de que a educação, a vida social, a arte requerem para desabrochar um acto de fé na omnipotência da espontaneidade: ilusão que certamente não é a causa, mas na qual é possível ver um aspecto significativo da crise que o Ocidente atravessa hoje.

O Poder do Acaso

O acaso é um poder maligno, no qual se deve confiar o menos possível. De todos os doadores, ele é o único que, ao dar, mostra ao mesmo tempo e com clareza que não temos direito nenhum aos seus bens, os quais devemos agradecer não ao nosso mérito, mas tão-só à sua bondade e graça, que nos permitem até nutrir a esperança alegre de receber, no futuro e com humildade, muitos outros bens imerecidos. Eis o acaso: mestre da arte régia de tornar claro o quanto, em oposição ao seu favor e à sua graça, todo o mérito é impotente e sem valor.