O Ofício
Escrevo para sentir nas veias
o voo da pedra.Antecipação da paz
neste país de granadas
moldadas
no silêncio dos frutos.Escrevo como quem escava
no bojo da sombra
um mar de claridade.Pedras vivas de possibilidade
as palavras levantam
o crime, os pássaros do pântanoEscrevo
no grande espaço obscuro
que somos e nos inunda.
Passagens sobre Palavras
1853 resultadosVerdade e Mentira
Sei que há imensas coisas na história de uma família que são pura fantasia. Qualquer família. as histórias vão passando de geração em geração e a verdade vai-se perdendo. Quem conta um conto acrescenta um ponto, como se costuma dizer. Alguns talvez achem que isto significa que a verdade não consegue competir com a mentira. Mas eu cá não acredito nisso. Cá para mim, depois de todas as mentiras terem sido contadas e esquecidas, a verdade perdura ainda. Não anda a fugir de um lado para o outro e não muda com o passar do tempo. É impossível corrompê-la, assim como é impossível salgar o sal. É impossível corrompê-la porque é pura, sem adornos. É a matéria de que são feitas as nossas palavras. Já ouvi compará-la à rocha – talvez a bíblia – e não discordo dessa ideia. Mas a verdade permanecerá, mesmo quando a rocha tiver desaparecido. Tenho a certeza que certas pessoas discordam isto. Bastantes, aliás. Mas nunca cheguei a perceber em que é que nenhuma delas acredita.
A Sociedade Destroça o Indivíduo
Trata-se dum conjunto, dum todo, a sociedade, e, podre, uma vez que é preciso contar com ela ao mesmo tempo que se não deve contar. Quer dizer, é como um conjunto estável, composto por elementos instáveis. Ora é impossível viver no interior, sem sofrer essa instabilidade, esse monte de mentiras. Surge então o medo de utilizar o mínimo pormenor que participe dessa instabilidade. É a revolta. Você duvida do valor das palavras, dos gestos, do que representam as palavras, das ideias, das simples associações de ideias, dos sonhos e até da realidade, das sensações mais claras, mais agudas. Você duvida mesmo da sua dúvida, da organização que toma, da forma que adopta. Não lhe fica nada, nada. Já não é nada, é um camaleão, um eco, uma sombra. Isso é obra da sociedade, compreende?
J.-M. G.
Vida e poesia se comunicam através de túneis de palavras.
A Primeira Palavra que em Toda a Minha Vida me Esgotou o Ser
Uma palavra. Disse-a. Amo-te – uma palavra breve. Quantos milhões de palavras eu disse durante a vida. E ouvi. E pensei. Tudo se desfez. Palavras sem inteira significação em si, o professor devia ter razão. Palavras que remetiam umas para as outras e se encostavam umas às outras para se aguentarem na sua rede aérea de sons. Mas houve uma palavra – meu Deus. Uma palavra que eu disse e repercutiu em ti, palavra cheia, quente de sangue, palavra vinda das vísceras, da minha vida inteira, do universo que nela se conglomerava, palavra total. Todas as outras palavras estavam a mais e dispensavam-se e eram uma articulação ridícula de sons e mobilizavam apenas a parte mecânica de mim, a parte frágil e vã. Palavra absoluta no entendimento profundo do meu olhar no teu, palavra infinita como o verbo divino. Recordo-a agora – onde está? Como se desfez? Ou não desfez mas se alterou e resfriou e absorveu apenas a fracção de mim onde estava a ternura triste, o conforto humilde, a compaixão. Não haverá então uma palavra que perdure e me exprima todo para a vida inteira? E não deixe de mim um recanto oculto que não venha à sua chamada e vibre nela desde os mais finos filamentos de si?
Luta de Classes
Não contem comigo para defender o elitismo cultural. Pelo contrário, contem comigo para rebentar cada detalhe do seu preconceito.
A cultura é usada como símbolo de status por alguns, alfinete de lapela, botão de punho. A raridade é condição indispensável desse exibicionismo. Só pertencendo a poucos se pode ostentar como diferenciadora. Essa colecção de símbolos é descrita com pronúncia mais ou menos afectada e tem o objectivo de definir socialmente quem a enumera.
Para esses indivíduos raros, a cultura é caracterizada por aqueles que a consomem. Assim, convém não haver misturas. Conheço melhor o mundo da leitura, por isso, tomo-o como exemplo: se, no início da madrugada, uma dessas mulheres que acorda cedo e faz limpeza em escritórios for vista a ler um determinado livro nos transportes públicos, os snobs que assistam a essa imagem são capazes de enjeitá-lo na hora. Começarão a definir essa obra como “leitura de empregadas de limpeza” (com muita probabilidade utilizarão um sinónimo mais depreciativo para descrevê-las).
Este exemplo aplica-se em qualquer outra área cultural que possa chegar a muita gente: música, cinema, televisão, etc. Aquilo que mais surpreende é que estes “argumentos”, esta forma de falar e de pensar seja utilizada em meios supostamente culturais por indivíduos supostamente cultos,
O acaso é uma palavra sem sentido. Nada pode existir sem causa.
Canção à Ausente
Para te amar ensaiei os meus lábios…
Deixei de pronunciar palavras duras.
Para te amar ensaiei os meus lábios!Para tocar-te ensaiei os meus dedos…
Banhei-os na água límpida das fontes.
Para tocar-te ensaiei os meus dedos!Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!
Pus-me a escutar as vozes do silêncio…
Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!E a vida foi passando, foi passando…
E, à força de esperar a tua vinda,
De cada braço fiz mudo cipreste.A vida foi passando, foi passando…
E nunca mais vieste!
Não Durmo Ainda
Não durmo ainda
Só na cama
o tempo
ainda é meucomo a palavra
Discretamente
me agito
no colchãoNão penso em Deus
na morteImprimo
Aqueço-me
Escutoconservo a posição
A Elsa dorme
Só na cama
o tempo ainda é delacomo um fruto
Uma ferida cura-se melhor que uma palavra.
Não há palavras adequadas para o sofrimento causado pela fome. Até ao dia de hoje sinto necessidade de mostrar à fome que escapei ao seu alcance. Desde que eu parei de ter fome, eu literalmente como a vida em si. E quando como, estou trancado dentro do gosto de comer. Durante sessenta anos, desde que voltei do acampamento, tenho comido contra a fome.
Quando a emoção transparece nas palavras que proferimos, a ênfase surge espontaneamente. Se as nossas mãos tiverem de expressar alguma coisa, elas próprias se encarregarão de o fazer sem a nossa intervenção. Se algo tiver de assomar aos nossos olhos, assomará. Não somos nós que temos de o trazer ao nosso olhar. Se assim for, será tudo uma hipocrisia.
A Palavra
Eleva-se entre a espuma, verde e cristalina
e a alegria aviva-se em redonda ressonância.
O seu olhar é um sonho porque é um sopro indivisível
que reconhece e inventa a pluralidade delicada.
Ao longe e ao perto o horizonte treme entre os seus cílios.Ela encanta-se. Adere, coincide com o ser mesmo
da coisa nomeada. O rosto da terra se renova.
Ela aflui em círculos desagregando, construindo.
Um ouvido desperta no ouvido, uma língua na língua.
Sobre si enrola o anel nupcial do universo.O gérmen amadurece no seu corpo nascente.
Nas palavras que diz pulsa o desejo do mundo.
Move-se aqui e agora entre contornos vivos.
Ignora, esquece, sabe, vive ao nível do universo.
Na sua simplicidade terrestre há um ardor soberano.
A Mais Bela Noite do Mundo
Hoje,
será o fim!Hoje
nem este falso silêncio
dos meus gestos malogrados
debruçando-se
sobre os meus ombros nus
e esmagados!Nem o luar, pano baço de cenário velho,
escutando
a minha prisão de viver
a lição que me ditavam:
– Menino! acende uma vela na tua vida,
que o sol, a luz e o ar
são perfumes de pecado.
Tem braços longos e tentadores – o dia!– Menino! recolhe-te na sombra do meu regaço
que teus pés
são feitos de barro e cansaço!(Era esta a voz do papão
pintado de belo
na máscara de papelão).Eram inúteis e magoadas as noites da minha rua…
Noites de lua
que lembravam as grilhetas
da minha vida parada.– Amanhã,
terás os mestres, as aulas, os amigos e os livros
e o espectáculo da morgue
morando durante dias
nos teus sentidos gorados.Amanhã,
será o ultrapassar outra curva
no teu caminho destinado.(Era esta a voz do papão
que acendia a vela,
As acções são a primeira tragédia da vida, as palavras são a segunda. Sem dúvida, são as palavras a pior tragédia. As palavras são impiedosas.
Toda esta tagarelice dos homens não constitui uma verdadeira palavra, suporto-a para poder gozar o silêncio que passa através dela.
Se Pudesses Estar Comigo Vinte e Quatro horas do Dia
Se pudesses estar comigo durante as vinte e quatro horas do dia, observar cada gesto meu, dormir comigo, comer comigo, trabalhar comigo, tudo isto não poderia ter lugar. Quando me vejo afastado de ti, penso em ti constantemente e isso dá cor a tudo o que eu diga ou faça. Se soubesses o quão fiel te sou! Não apenas fisicamente, mas mentalmente, moralmente, espiritualmente. Aqui não há qualquer tentação para mim, absolutamente nenhuma. Estou imune a Nova Iorque, aos meus velhos amigos, ao passado, a tudo. Pela primeira vez na minha vida, estou completamente centrado em outro ser… Em ti. Sinto-me capaz de dar tudo, sem ter medo de ficar exaurido ou de me ver perdido. Quando ontem escrevi no meu artigo que «se eu nunca tivesse ido para a Europa…», não era a Europa que tinha em mente, mas sim tu.
Mas não posso dizer isso ao mundo num artigo. Tu és a Europa. Pegaste em mim, um homem despedaçado, e tornaste-me completo. E não hei-de desintegrar-me — não existe o menor perigo disso. Mas agora vejo-me mais sensível, mais receptivo a qualquer sinal de perigo. Se te persigo loucamente, se te imploro para ouvires, se fico à tua porta e espero por ti,
Deixar Sempre as Coisas a Meio
A grandeza, o verdadeiro luxo, está nessa displicência algo aristocrática, não na pior aceção da palavra, de deixar sempre as coisas a meio: esse copo de conhaque que se abandona na varanda do bar, as moedas que nunca mais se acabam de recolher da bandejinha em que o criado nos trazia o troco, os pratos por limpar, as tardes inteiras de torpor e moleza, desperdiçadas sem culpa porque sobra vida, porque haverá tempo. Essa é a atitude que se opõe à do miserável a quem a necessidade mais visceral e mesquinha faz ver poesia nesse sorver até à última gota o que a vida lhe oferece. E não deita nada fora, então, e guarda para amanhã, e mesquinhamente esconde as sobras para as aproveitar depois como um cão saciado que enterra os ossos junto de uma árvore para não desperdiçar nem um grama de alimento; e molha no chocolate todos os churros que fazem parte da dose, mesmo a rebentar de cheio, caibam ou não dentro do seu estômago. E mil vezes preferível deixar sempre qualquer coisa no prato, desdenhar com elegância de parte do festim; jantar, por exemplo, com uma senhora admirável e permitir graciosamente que escape viva. E,
A palavra mais necessária nos tempos em que vivemos é a palavra não. Não a muita coisa, não a uma quantidade de coisas que eu me dispenso de enumerar.
Homem superior é aquele que começa por pôr em prática as suas palavras e em seguida fala de acordo com as suas acções.