Marília de Dirceu
(excerto)
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
que viva de guardar alheio gado,
de tosco trato, de expressões grosseiro,
dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas ovelhinhas tiro o leite
e mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela, graças à minha estrela!Eu vi o meu semblante numa fonte:
dos anos inda não está cortado;
os pastores que habitam este monte
respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
que inveja até me tem o próprio Alceste:
ao som dela concerto a voz celeste,
nem canto letra que não seja minha.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!Mas tendo tantos dotes da ventura,
só apreço lhes dou, gentil pastora,
depois que o teu afeto me segura
que queres do que tenho ser senhora.
E bom, minha Marília, é bom ser dono
de um rebanho, que cubra monte e prado;
porém, gentil pastora, o teu agrado
vale mais que um rebanho e mais que um trono.
Passagens sobre Rosto
553 resultadosO Dia Em Que Eu Nasci, Moura E Pereça
O dia em que eu nasci, moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar,
não torne mais ao mundo, e, se tornar,
eclipse nesse passo o sol padeça.luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova
o ar, a mãe ao próprio filho não conheça.s pessoas pasmadas de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.Ó gente temerosa, não te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!
Não quero adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.
Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente.
Último Soneto
Já da noite o palor me cobre o rosto,
Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!Do leito, embalde num macio encosto,
Tento o sono reter!… Já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece…
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!O adeus, o teu adeus, minha saudade,
Fazem que insano do viver me prive
E tenha os olhos meus na escuridade.Dá-me a esperança com que o ser mantive!
Volve ao amante os olhos, por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!
Ninguém pode, por muito tempo, ter um rosto para si mesmo e outro para a multidão sem no final confundir qual deles é o verdadeiro.
Ode Marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Tenho Fome da Tua Boca
Tenho fome da tua boca, da tua voz, do teu cabelo,
e ando pelas ruas sem comer, calado,
não me sustenta o pão, a aurora me desconcerta,
busco no dia o som líquido dos teus pés.Estou faminto do teu riso saltitante,
das tuas mãos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra das tuas unhas,
quero comer a tua pele como uma intacta amêndoa.Quero comer o raio queimado na tua formosura,
o nariz soberano do rosto altivo,
quero comer a sombra fugaz das tuas pestanase faminto venho e vou farejando o crepúsculo
à tua procura, procurando o teu coração ardente
como um puma na solidão de Quitratue.
A Voz que Ouço quando Leio
Quando leio, há uma voz que lê dentro de mim. Paro o olhar sobre o texto impresso, mas não acredito que seja o meu olhar que lê. O meu olhar fica embaciado. É essa voz que lê. Quando é séria, ouço-a falar-me de assuntos sérios. Às vezes, sussurra-me. Às vezes, grita-me. Essa voz não é a minha voz. Não é a voz que, em filmagens de festas de anos e de natais, vejo sair da minha boca, do movimento dos meus lábios, a voz que estranho por, num rosto parecido com o meu, não me parecer minha. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas não é minha. Não é a voz dos meus pensamentos. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas é exterior a mim. É diferente de mim. Ainda assim, não acredito que alguém possa ter uma voz que lê igual à minha, por isso é minha mas não é minha. Mas, claro, não posso ter a certeza absoluta. Não só porque uma voz é indescritível, mas também porque nunca ninguém me tentou descrever a voz que ouve quando lê e porque eu nunca falei com ninguém da voz que ouço quando leio.
Lindóia
Vem, vem das águas, mísera Moema,
Senta-te aqui. As vozes lastimosas
Troca pelas cantigas deleitosas,
Ao pé da doce e pálida Coema.Vós, sombras de Iguaçu e de Iracema,
Trazei nas mãos, trazei no colo as rosas
Que o amor desabrochou e fez viçosas
Nas laudas de um poema e outro poema.Chegai, folgai, cantai. É esta, é esta
De Lindóia, que a voz suave e forte
Do vate celebrou, a alegre festa.Além do amável, gracioso porte,
Vede o mimo, a ternura que lhe resta.
Tanto inda é bela no seu rosto a morte
Poema para Galileo
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… Eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar – que disparate, Galileo!
– e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação –
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Nada torna um rosto mais impenetrável do que a máscara da bondade.
Escrevemos Docemente
Escrevemos docemente. Se a figura
sobe de estar tão funda a essa mesa
é que escrever se lembra. E só da altura
de se lembrar percorre a linha acesaa ponta de escrever, que traça a pura
forma de rosto que abre na tristeza.
E a tristeza ilumina de escultura
penumbras de volumes com que pesa.Por isso é docemente que da linha
de estar ali aonde sempre esteve
aparece figura de rainhaque sempre foi e agora só se escreve.
E escrevermos é como se na vinha
o sol se iluminasse. E fosse breve.
Psicologia
Foi hoje que notei: – em nosso face a face
encontrei teu olhar, e assim como se deve
fazer em tal momento, um cumprimento leve
dos meus lábios fugiu sem que sequer notasse…Foi hoje que notei: – tu passas orgulhosa
e nem deste resposta ao meu sorriso antigo,
– voltaste o rosto até, assim como quem posa
e foste indelicada a um teu sincero amigo…Perdôo-te… É que sinto o quanto me adoraste,
do contrario, farias como eu faço, enquanto
não nego um cumprimento ao ver que tu passaste…Ainda sofres, bem sei… És tolinha demais…
– foi tanto o teu amor, e o teu amor é tanto
que ao passares por mim nem cumprimentas mais!
Plano
Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos, que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.
O efeito de um rosto pacífico, de um discurso calmo, especialmente quando realizado por uma pessoa desconhecida que ainda não observámos. A voz de Deus vinda de uma boca humana.
Extrema, toco-te o rosto. De ti me vem
À ponta dos meus dedos, o ouro da volúpia
E o encanto glabro das avencas
De te me vem. […]
Amor
Não vês como eu sigo
Teus passos, não vês?
O cão do mendigo
Não é mais amigo
Do dono talvez!Ao pé de uma fonte
No fundo de um vale,
No alto de um monte
Do vasto horizonte,
Sem ti estou mal!Sem ti, olho e canso
De olhar, e que vi?
Os olhos que lanço,
Acharem descanso,
Só acham em ti!Os ventos que empolam
A face do mar,
E as ondas que rolam
Na praia, consolam
Tamanho pesar?As formas estranhas
De nuvens que vão
Roçando as montanhas
Em ondas tamanhas
Distraem-me? Não!A pomba que abraça
No ar o seu par,
E a nuvem que passa,
Não tem essa graça
Que tens a andar!Parece o pezinho,
De lindo que é,
Ligeiro e levinho
O de um passarinho
Voando de pé!O rosto, há em torno
Da pálida oval,
Daquele contorno
Tão puro, o adorno
Da auréola imortal!Não sei que luz vaga,
Lirial
Vens com uns tons de searas,
De prados enflorescidos
E trazes os coloridos
Das frescas auroras claras.E tens as nuances raras
Dos bons prazeres servidos
Nos rostos enlourecidos
Das parisienses preclaras.Chapéu das finas elites,
De roses e clematites,
Chapéu Pierrette — entre o solPassando, esbelta e rosada,
Pareces uma encantada
Canção azul do Tirol.
Ignoto Deo
Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.Chamar-Te amante ou pai… grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja…
– Tu é que não desistirás de mim!