Textos sobre Face

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Textos de face escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Questionação do Inquestionável

Toda a pergunta implica uma interrogação a um olhar vigilante. Mas a vigília cansa. Nunca porém o soubemos como hoje, porque só hoje verdadeiramente interrogamos – só hoje sabemos ser essa a questionação do inquestionável.
Mas reconhecemo-lo precisamente por termos interrogado. Porque ao longo da História, jamais o homem de facto interrogou, por não saber que interrogava. Esboçada embora há muito a questão do fundamental, ela perturbou-se-nos no entusiasmo de lhe responder em positivo ou negativo. Porque a negação não nega, a destruição não destrói, excepto se não há mais nada para destruir: até lá constrói ainda – nem que seja o próprio acto de destruir. Fazer e desfazer, com efeito, são iguais como acto e entusiasmo desse acto. A grande diferença não é a que separa um do outro, mas a que os separa a ambos de nós. A grande diferença é a que vai da segurança do falar à perturbação do silêncio; do «sim» ou «não» como limite, ao querer ir além do limite sem mais além para ir. Mas a luz que ilumina, o que iluminou? Que a ciência te explique o que é uma simples pedra, explicou por cima do que seria interessante explicar. Há uma questão ainda,

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As Coisas Secretas da Alma

Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos – porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou – não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir – apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os «isolados» que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive – não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente – ó ideal dos amorosos! – eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.

O Caminho para o Sucesso é Incompreendido pelos Outros

Se desejas ser bem sucedido, resigna-te, caro, face às coisas exteriores, por passar por insensato ou mesmo por tolo. Mesmo que saibas, não mostres qualquer saber; e se alguns te consideram alguém, desafia-te a ti próprio e desconfia de ti. Que saibas sempre, na verdade, que não é fácil de preservar a vontade em conformidade com a natureza, pois que, simultaneamente, sempre nos inquietamos com as solicitações do exterior.
Ora que fazer? Só uma regra necessária se impõe: quando nos ocupamos da vontade tendo a natureza por fundo (e nossa íntima intenção) só a uma coisa nos podemos obrigar – evitar qualquer desvio daquele nosso primeiro propósito.

O Subjectivo é Objectivo, e o Objectivo é Subjectivo

Assaz difícil é decidir o que seja objectivamente a verdade, mas, no trato com os homens, não há que se deixar aterrorizar por isso. Existem critérios que para o primeiro são suficientes. Um dos mais seguros consiste em objectar a alguém que uma asserção sua é “demasiado subjectiva”. Se se utilizar, e com aquela indignação em que ressoa a furiosa harmonia de todas as pessoas sensatas, então há motivo para se ficar alguns instantes em paz consigo. Os conceitos do subjectivo e objectivo inverteram-se por completo. Diz-se objectiva a parte incontroversa do fenómeno a sua efígie inquestionavelmente aceite, a fachada composta de dados classificados, portanto, o subjectivo; e denomina-se subjectivo o que tal desmorona, acede à experiência específica da coisa, se livra das opiniões convencionais a seu respeito e instaura a relação com o objecto em substituição da decisão maioritária daqueles que nem sequer chegam a intuí-lo, e menos ainda a pensá-lo – logo, o objectivo.
A futilidade da objecção formal da relatividade subjectiva patenteia-se no seu próprio terreno, o dos juízos estéticos. Quem alguma vez, pela força da sua precisa reacção em face da seriedade da disciplina de uma obra artística, se submete à sua lei formal imanente,

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Máximas do Nosso Saber

O que sabemos, sabemo-lo afinal apenas para nós mesmos. Se falo com alguém daquilo que julgo saber, acontece que imediatamente ele supõe saber o assunto melhor que eu, e sou obrigado a regressar a mim mesmo com o meu saber. O que sei bem, sei-o apenas para mim. Uma palavra pronunciada por outro raramente constitui um estímulo. Na maior parte das vezes suscita contradição, paralisia ou indiferença.
Instruamo-nos primeiro a nós próprios e seremos depois capazes de receber instruções dos outros.
Em boa verdade aprendemos sempre em livros que não somos capazes de avaliar. O autor de um livro que fôssemos capazes de avaliar teria que aprender connosco.
Muitos há que têm orgulho no que sabem. Face ao que não sabem costumam ser arrogantes. No fundo só se sabe quando se sabe pouco. À medida que cresce o saber, crece igualmente a dúvida.

Náufragos que Navegam Tempestades

As tempestades são sempre períodos longos. Poucas pessoas gostam de falar destes momentos em que a vida se faz fria e anoitece, preferem histórias de praias divertidas às das profundas tragédias de tantos naufrágios que são, afinal, os verdadeiros pilares da nossa existência.

Gente vazia tende a pensar em quem sofre como fraco… quando fracos são os que evitam a qualquer custo mares revoltos, tempestades em que qualquer um se sente minúsculo, mas só os que não prestam o são verdadeiramente. Para a gente de coração pequeno, qualquer dor é grande. Os homens e mulheres que assumem o seu destino sabem que, mais cedo ou mais tarde, morrerão, mas há ainda uma decisão que lhes cabe: desviver a fugir ou morrer sofrendo para diante.
Da morte saímos, para a morte caminhamos. O que por aqui sofremos pode bem ser a forma que temos de nos aproximarmos do coração da verdade.

Haverá sempre quem seja mestre de conversas e valente piloto de naus alheias, os que sabem sempre tudo, principalmente o que é (d)a vida do outro, e mais especificamente se estiver a passar um mau bocado. Logo se apressam a dizer que depois da tempestade vem a bonança,

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Compaixão Mórbida

Todos os dias desfaço-me, por via da razão, desse sentimento pueril e inumano que faz que desejemos que os nossos males suscitem a compaixão e o pesar nos nossos amigos. Fazemos valer os nossos infortúnios desproporcionadamente para provocar as suas lágrimas. E a firmeza face à má fortuna, que louvamos em toda a gente, reprovamo-la e repudiamo-la aos nossos íntimos quando a má fortuna é a nossa. Não nos contentamos com que eles sejam sensíveis às nossas dores, precisamos que com elas se aflijam.
Deve-se espalhar a alegria, mas conter, tanto quanto possível, a tristeza. Quem quer ser compadecido sem razão é homem que não o merece ser quando houver razão para tal. Estar sempre a lamentar-se é caso para se não ser lamentado, pois quem tantas vezes faz de coitadinho não inspira dó a ninguém. Quem faz de morto estando vivo sujeita-se a ser tido por vivo em morrendo. Vi doentes abespinharem-se por os acharem de bom semblante e com o pulso normal, reprimirem o riso porque este denunciava a sua cura e odiarem a saúde por ela não suscitar compaixão.

A Cultura não se Enquadra na Totalidade Política

A cultura nunca poderá ser um factor estratégico de mudança. Se é estratégia, não é cultura. Faz-se apelo à cultura como estratégia de mudança, tentando resolver a condição perturbadora do homem culto, munido de culpabilidade inconsciente, ou simplesmente isento da culpabilidade pelo sofrimento. Isso não é possível. A cultura não se enquadra na totalidade política. Há um grave mal-entendido quanto a isso. A cultura não significa o conforto da neutralidade, a irónica graduação da expectativa, a ginástica do não-compomisso. Significa um enraizamento em si mesmo, que conserva no homem a faculdade de julgar. Não é contrária à acção, mas é condição necessária para que a acção seja serena e útil, e não impaciente e desordenada. Não se trata de racismo espiritual; não se trata da pretensão de existir à parte da história política do mundo. É a intenção absolutamente necessária de ser livre, face aos acontecimentos, qualquer que seja a lógica que os liga. A cultura é o que identifica um povo com a sua finalidade.

Só a Morte Desperta os Nossos Sentimentos

Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres.

É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo.
É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte.

A Doutrina Perfeita

Muitas vezes as pessoas dirigem-se a mim, dizendo: «você, que é independente». Não sou assim; continuamente devo ceder a pequenas fórmulas sofisticadas que corrompem, que dão um sentido inverso à nossa orientação, que fazem com que a transparência do coração se turve. Continuamente a nossa insegurança, o egoísmo, o espírito legalista, a mesquinhez, a vaidade, toda a espécie de circunstâncias que tomam o partido da vida como desfrute à sensação se sobrepõem à luz interior. Só a fé é independente. Só ela está para além do bem e do mal.

Estar para além do bem e do mal aplica-se a Cristo. «Perdoa ao teu inimigo, oferece a outra face» – disse Ele. Não é um conselho para humilhados, não é um preceito para mártires. Nisso aparece Cristo mal interpretado, a ponto de o cristianismo ter sido considerado uma religião de escravos. Mas esquecemos que Cristo, como Homem, teve a experiência-limite, uma visão do inconsciente absoluto, o que quer dizer que a sua consciência foi saturada, para além do bem e do mal. Esse homem que perdoa ao seu inimigo não o faz por contrariedade do seu instinto, por reparação dos seus pecados; mas porque não pode proceder de outra maneira.

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Qualidades de Sentimento

«Um charco», pensou, «dá-nos muitas vezes, e de forma mais intensa, a impressão de profundidade do que o oceano, pela simples razão de que a vivência dos charcos é muito mais frequente do que a dos oceanos: era, segundo ele, o que acontecia com o sentimento, e pela mesma razão os sentimentos mais banais passavam por ser os mais profundos. De facto, a preferência que se dá ao sentir, mais do que ao sentimento, que é a marca de todas as pessoas sensíveis às emoções, conduz, tal como o desejo de fazer sentir e de ser levado a sentir, comum a todas as instituições postas ao serviço do sentimento, a uma diminuição do nível e da essência do sentimento face à sua manifestação instantânea como estado de ordem pessoal, e finalmente àquela superficialidade, inibição e total insignificância para as quais não faltam exemplos. «É natural que um ponto de vista como este», pensou Ulrich, completando a sua observação, «choque todos aqueles que se sentem bem nos seus sentimentos, como o galo nas suas penas, e que ainda por cima estejam convencidos de que a eternidade recomeça com cada “personalidade”!» Tinha a nítida percepção de estar perante um erro monstruoso, à dimensão de toda a humanidade,

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Primeiramente

Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus.
E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, a solidão aberta nos dedos como um cravo.
Meu amor, amor de uma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca — e sempre a tua boca — comece de novo a nascer na minha boca.
Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu.

Os Deuses Reclinados

… Por todos os lados as estátuas de Buda, de Lorde Buda… As severas, verticais, carcomidas estátuas, com um dourado de resplendor animal, com uma dissolução como se o ar as desgastasse… Crescem-lhes nas faces, nas pregas das túnicas, nos cotovelos, nos umbigos, na boca e no sorriso pequenas máculas: fungos, porosidades, vestígios excrementícios da selva… Ou então as jacentes, as imensas jacentes, as estátuas de quarenta metros de pedra, de granito areento, pálidas, estendidas entre as sussurrantes frondes, inesperadas, surgindo de qualquer canto da selva, de qualquer plataforma circundante… Adormecidas ou não adormecidas, estão ali há cem anos, mil anos, mil vezes mil anos… Mas são suaves, com uma conhecida ambiguidade ultraterrena, aspirando a ficar e a ir-se embora… E aquele sorriso de suavíssima pedra, aquela majestade imponderável, mas feita de pedra dura, perpétua, para quem sorriem, para quem, sobre a terra sangrenta?… Passaram as camponesas que fugiam, os homens do incêndio, os guerreiros mascarados, os falsos sacerdotes, os turistas devoradores…

E manteve-se no seu lugar a estátua, a imensa pedra com joelhos, com pregas na túnica de pedra, com o olhar perdido e não obstante existente, inteiramente inumana e de alguma forma também humana, de alguma forma ou de alguma contradição estatuária,

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Segue o Teu Coração

Lembrar-me que inevitavelmente terei que morrer é a mais importante ferramenta que eu alguma vez encontrei para me ajudar a fazer as grandes escolhas na vida. Porque praticamente tudo – todas as nossas expectativas externas, todo o nosso orgulho, todo o nosso medo do embaraço ou fracasso – todas estas coisas simplesmente caem em face da morte, deixando apenas aquilo que é realmente importante. Lembrares-te que mais cedo ou mais tarde vais morrer é a melhor forma que eu conheço de evitar a armadilha de que temos alguma coisa a perder. Nós já estamos nús. Não existe nenhuma razão para não seguirmos o nosso coração.

A Ira é uma Loucura Breve

Alguns sábios afirmaram que a ira é uma loucura breve; por não se controlar a si mesma, perde a compostura, esquece as suas obrigações, persegue os seus intentos de forma obstinada e ansiosa, recusa os conselhos da razão, inquieta-se por causas vãs, incapaz de discernir o que é justo e verdadeiro, semelhante às ruínas que se abatem sobre quem as derruba. Mas, para que percebas que estão loucos aqueles que estão possuídos pela ira, observa o seu aspecto; na verdade, são claros indícios de loucura a expressão ardente e ameaçadora, a fronte sombria, o semblante feroz, o passo apressado, as mãos trementes, a mudança de cor, a respiração forte e acelerada, indícios que estão também presentes nos homens irados: os olhos incendiam-se e fulminam, a cara cobre-se totalmente de um rubor, por causa do sangue que a ela aflui do coração, os lábios tremem, os dentes comprimem-se, os cabelos arrepiam-se e eriçam-se, a respiração é ofegante e ruidosa, as articulações retorcem-se e estalam, entre suspiros e gemidos, irrompem frases praticamente incompreensíveis, as mãos entrechocam-se constantemente, os pés batem no chão e todo o corpo se agita ameaçador, a face fica inchada e deformada, horrenda e assutadora. Ficas sem saber se o que há de pior neste vício é ele ser detestável ou tão disforme.

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A Inconsistência Humana

Que todos os homens são iguais é uma proposição à qual, em tempos normais, nenhum ser humano sensato deu, alguma vez, o seu assentimento. Um homem que tem de se submeter a uma operação perigosa não age sob a presunção de que tão bom é um médico como outro qualquer. Os editores não imprimem todas as obras que lhes chegam às mãos. E quando são precisos funcionários públicos, até os governos mais democráticos fazem uma selecção cuidadosa entre os seus súbditos teoricamente iguais.
Em tempos normais, portanto, estamos perfeitamente certos de que os Homens não são iguais. Mas quando, num país democrático, pensamos ou agimos politicamente, não estamos menos certos de que os Homens são iguais. Ou, pelo menos – o que na prática vem ser a mesma coisa – procedemos como se estivéssemos certos da igualdade dos Homens.
Identicamente, o piedoso fidalgo medieval que, na igreja acreditava em perdoar aos inimigos e oferecer a outra face, estava pronto, logo que mergia novamente à luz do dia, a desembainhar a sua espada à mínima provocação. A mente humana tem uma capacidade quase infinita para ser inconsistente.

A Insustentável Leveza do Ser

Eis que ao despedir-vos, esse teu amigo te diz que ele não é esse teu amigo mas sim um seu irmão gémeo. Imediatamente uma alteração profunda se instalou nas vossas relações. Mas se te perguntares em quê, não é fácil responderes. Naturalmente dirias que esse teu amigo não era ele, que era outra pessoa. Mas outra em quê? O corpo é igual nos mínimos pormenores, igual a face e os gestos e a voz e os olhos. Iguais as ideias, os sentimentos, as recordações, o todo integral da sua vida e do que ele é. Se percorreres todos os pormenores, encontrá-los-ás em hipótese absolutamente iguais. Começa onde quiseres, examina cada minúcia que constitui o teu amigo, progride até ao mais extremo limite e verificarás que nada escapa a uma integral igualdade. Mas se isto é assim, deveria ser-te indiferente seres amigo deste como eras amigo do outro. Pois se uma pessoa é aquilo que ela nos é, se uma pessoa é aquilo que a manifesta, se aquilo que nos define é aquilo que somos e se esse alguém que encontrámos em nada difere, em hipótese, do alguém que esperávamos encontrar, nenhuma razão havia para que as relações com ele se perurbassem.

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A Vantagem do Entendimento

A carne considera os prazeres ilimitados e seria mister um tempo infinito para satisfazê-la. Mas o entendimento, que determina o fito e os limites da carne, e que nos livra do temor em face da eternidade, possibilita-nos uma vida perfeita, onde não temos necessidade de duração infinita. Ele não foge, contudo, ao prazer e, quando as circunstâncias nos obrigam a deixar a vida, não se crê privado do que a vida oferecia de melhor.
Quem conhece perfeitamente bem os limites que a vida nos traça, sabe quão fácil é obter o que suprime a dor, causada pela necessidade, e faz a vida inteira perfeita, de sorte que não tem mais necessidade de coisas cuja aquisição exija esforço.
Todos os desejos que não provoquem dor quando permanecem insatisfeitos não são necessários, e poderão ser facilmente recalcados se nos parecerem difíceis de ser satisfeitos ou capazes de nos causar danos.

A Dor e o Tédio São os Dois Maiores Inimigos da Felicidade

O panorama mais amplo mostra-nos a dor e o tédio como os dois inimigos da felicidade humana. Observe-se ainda: à medida que conseguimos afastar-nos de um, mais nos aproximamos do outro, e vice-versa; de modo que a nossa vida, na realidade, expõe uma oscilação mais forte ou mais fraca entre ambos. Isso origina-se do facto de eles se encontrarem reciprocamente num antagonismo duplo, ou seja, um antagonismo exterior ou oubjectivo, e outro interior e subjectivo. De facto, exteriormente, a necessidade e a privação geram a dor; em contrapartida, a segurança e a abundância geram o tédio. Em conformidade com isso, vemos a classe inferior do povo numa luta constante contra a necessidade, portanto contra a dor; o mundo rico e aristocrático, pelo contrário, numa luta persistente, muitas vezes realmente desesperada contra o tédio. O antagonismo interior ou subjectivo entre ambos os sofrimentos baseia-se no facto de que, em cada indivíduo, a susceptibilidade para um encontra-se em proporção inversa à susceptibilidade para o outro, já que ela é determinada pela medida das suas forças espirituais. Com efeito, a obtusidade do espírito está, em geral, associada à da sensação e à ausência da excitabilidade, qualidades que tornam o indivíduo menos susceptível às dores e aflições de qualquer tipo e intensidade.

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A Espontaneidade

O homem produz tudo o que sai da sua natureza. Concorre com a sua actividade; fornece a força bruta que produz o resultado. Mas a direcção dessa força não lhe pertence. Dá a matéria: a forma, porém, vem doutra parte. O verdadeiro autor das obras espontâneas é a natureza humana, ou, se se quiser, a causa superior da natureza. Neste ponto torna-se indiferente atribuir a causalidade a Deus ou ao Homem. O Espontâneo é à uma humano e divino. Está nisto a conciliação de opiniões, antes incompletas do que contraditórias, que, segundo dizem respeito a uma ou outra face do fenómeno, têm igualmente uma parte de verdade.