Um Eu malformado terá grandes probabilidades de ser imaturo, ainda que seja um gigante na ciência; sem brilho, ainda que seja socialmente aplaudido; de viver de migalhas de prazer, ainda que tenha dinheiro para comprar o que bem desejar; rígido, ainda que tenha grande potencial criativo.
Passagens sobre Bem
3255 resultadosAmbição e Poder
Examinemo-nos no momento em que a ambição nos trabalha, em que lhe sofremos a febre; dissequemos em seguida os nossos «acessos». Verificaremos que estes são precedidos de sintomas cuirosos, de um calor especial, que não deixa nem de nos arrastar nem de nos alarmar. Intoxicados de porvir por abuso de esperança, sentimo-nos de súbito responsáveis pelo presente e pelo futuro, no núcleo da duração, carregada esta dos nossos frémitos, com a qual, agentes de uma anarquia universal, sonhamos explodir. Atentos aos acontecimentos que se passam no nosso cérebro e às vicissitudes do nosso sangue, virados para o que nos altera, espiamos-lhe e acarinhamos-lhe os sinais. Fonte de perturbações, de transtornos ímpares, a loucura política, se afoga a inteligência, favorece em contrapartida os instintos e mergulha-os num caos salutar. A ideia do bem e sobretudo do mal que imaginamos ser capazes de cumprir regozijar-nos-á e exaltar-nos-á; e o feito das nossas enfermidades, o seu prodígio, será tal que elas nos instituirão senhores de todos e de tudo.
À nossa volta, observaremos uma alteração análoga naqueles que a mesma paixão corrói. Enquanto sofrerem o seu império, serão irreconhecíves, presas de uma embriaguez diferente de todas as outras. Tudo mudará neles, até o timbre da voz.
Pequenina
Eu bem sei que te chamam pequenina
E ténue como o véu solto na dança,
Que és no juízo apenas a criança,
Pouco mais, nos vestidos, que a menina…Que és o regato de água mansa e fina,
A folhinha do til que se balança,
O peito que em correndo logo cansa,
A fronte que ao sofrer logo se inclina…Mas, filha, lá nos montes onde andei,
Tanto me enchi de angústia e de receio
Ouvindo do infinito os fundos ecos,Que não quero imperar nem já ser rei
Senão tendo meus reinos em teu seio
E súbditos, criança, em teus bonecos!
IV – Sempre O Brasil
Nunca noite dormi tão sossegado,
Quem nem mesmo sonhei com o meu Brasil,
Porém, vendo infinito mar d’anil,
Lembra-me a aurora dele nacarada.Cada dia que passa não é nada,
E os que faltam parecem mais de mil.
Se o tempo que lá vivo é um ceitil,
Aqui é para mim grande massada.E a doença porém me consentir,
Sempre pensando nele, cuidarei
De tornar-me mais digno de o servir,E, quando possa, logo voltarei;
Pois na terra só quero eu existir
Quando é para bem dele que eu o sei.
Amigo
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Triste
Vai-se extinguindo a viva labareda
Que te abrasava o coração ridente…
Passas magoada pela rua e a gente
Umas converses funerais segreda.Não tens no olhar o sangue q’embebeda,
Foram-se as rosas do viver contente…
Segues, agora, pobre flor — somente
Da sepultura a essencial vereda.E vem chegando o tenebroso inverno…
Mas nesse mal devorador e eterno,
Teu organismo já não mais resisteÀs punhaladas da estação de gelo…
E acabará como eu nem sei dizê-lo,
Triste, bem triste, pesarosa, triste!
Símbolos
Símbolos? Estou farto de símbolos…
Mas dizem-me que tudo é símbolo,
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos. —
Que o sol seja um símbolo, está bem…
Que a lua seja um símbolo, está bem…
Que a terra seja um símbolo, está bem…
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas,
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes,
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra…
Bem, vá, que tudo isso seja símbolo…
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde se demorava outrora com o namorado que a deixou?
O essencial é estar bem consigo mesmo.
O prazer e a dor e os que os produz, o saber, o bem e o mal, são os eixos em que assentam todas as nossas paixões.
Em tempo em que só vale a lisonja, não podia parecer bem quem professa só a verdade.
Se permaneceres no bem, a tristeza se afastará de ti; se persevares na justiça
Se permaneceres no bem, a tristeza se afastará de ti; se persevares na justiça, a tristeza não te assaltará. Nem a peste nem a morte causarão terror, se viveres bem e piedosamente.
Dentro ou fora de mim, todos os dias acontece algo que me surpreende, algo que me comove, desde a possibilidade do impossível a todos os sonhos e ilusões. É essa a matéria da minha escrita, por isso escrevo e por isso me sinto tão bem a escrever aquilo que sinto.
Pudesse Eu Contar as Vezes
Pudesse eu contar as vezes que ferrei os cantos da boca imaginando que eram teus os dentes que assim me amavam; que eram os teus lábios aqueles que, nessas ocasiões, eu mordia. Lembras-te de uma frase que costumavas citar, por tê-la escutado em qualquer parte, ou lido, já não sei bem? Aquela que dizia
– A minha anatomia enlouqueceu; sou toda corarão.
Pois é como me tenho sentido, mais ou menos assim, com a anatomia enlouquecida, sem saber já quais são os meus dentes ou qual a minha boca; como se cada pedaço meu não fosse mais do que saudade de ti: o desejo de te voltar a ver, de te cobrir outra vez de beijos – olhos, boca, rosto, o corpo todo de beijos -, de te abraçar e sentir o teu cheiro, de tomar nas mãos o ramo crespo dos teus cabelos e inalar a fragrância do teu pescoço. Possuo agora, em mim apenas, nos limites da minha topografia, toda a exaltação dos nossos corpos e sinto que não chego para tanto porque a soma de nós dois excedeu sempre a existência física dos nossos corpos. É como se rebentasse por dentro e tivesse de esticar a alma –
Os Limites da Amizade
Determinemos, agora, quais são os limites e, por assim dizer, os termos da amizade. Encontro aqui três opiniões diferentes, das quais não aprovo nenhuma: a primeira deseja que sejamos para os nossos amigos, assim como somos para nós mesmos; a segunda, que a nossa afeição por eles seja tal e qual à que eles têm por nós; a terceira, que estimemos os nossos amigos, assim como eles se estimam a si mesmos. Não posso concordar com nenhuma destas três máximas. Porque a primeira, que cada um tenha para com o seu amigo a mesma afeição e vontade que tem para si, é falsa. De facto, quantas coisas fazemos pelos nossos amigos, que jamais faríamos para nós! Rogar, suplicar a um homem que se despreza, tratar a outro com aspereza, persegui-lo com violência; coisas que em causa própria não seriam muito decentes, nos negócios dos amigos tornam-se muito honrosas. Quantas vezes um homem de bem abandona a defesa dos seus interesses e os sacrifica, em seu próprio detrimento, para servir os de seu amigo!
A segunda opinião é a que define a amizade por uma correspondência igual em amor e bons serviços. É fazer da amizade uma ideia bem limitada e mesquinha,
A Sabedoria do Sofrimento
O sofrimento não tem menos sabedoria do que o prazer: tal como este, faz parte em elevado grau das forças que conservam a espécie. Porque se fosse de outra maneira há muito que esta teria desaparecido; o facto de ela fazer mal não é um argumento contra ela, é muito simplesmente a sua essência. Ouço nela a ordem do capitão: «Amainem as velas». O intrépido navegador homem deve treinar-se a dispor as suas de mil maneiras; de outro modo, não tardaria a desaparecer, o oceano havia de o engolir depressa. É preciso que saibamos viver também reduzindo a nossa energia; logo que o sofrimento dá o seu sinal, é chegado o momento; prepara-se um grande perigo, uma tempestade, e faremos bem em oferecer a menor «superfície» possível.
Há homens, contudo, que, quando se aproxima o grande sofrimento, ouvem a ordem contrária e nunca têm ar mais altivo, mais belicoso, mais feliz do que quando a borrasca chega, que digo eu! E a própria tempestade que lhes dá os seus mais altos momentos! São os homens heróicos, os grandes «pescadores da dor», esses raros, esses excepcionais de que é necessário fazer a mesma apologia que se faz para a própria dor!
O convívio com um único homem inteligente é suficientemente recompensador, mas, se o que se encontra são apenas tipos ordinários, então faz bem ter uma profusão deles, para que a variedade e a actuação em conjunto produzam algum efeito: e que o céu lhe conceda paciência!
Sei perfeitamente que o destino me reserva bem duras provas. Mas, coragem! Com bom humor tudo se suporta… Com bom humor!
Senhora minha, se de pura inveja
Senhora minha, se de pura inveja
Amor me tolhe a vista delicada,
A cor, de rosa e neve semeada,
E dos olhos a luz que o Sol deseja,Não me pode tolher que vos não veja
Nesta alma, que ele mesmo vos tem dada,
Onde vos terei sempre debuxada,
Por mais cruel inimigo que me seja.Nela vos vejo, e vejo que não nasce
Em belo e fresco prado deleitoso
Senão flor que dá cheiro a toda a serra.Os lírios tendes nu~a e noutra face.
Ditoso quem vos vir, mas mais ditoso
Quem os tiver, se há tanto bem na terra!
A gratidão de quem recebe um benefício é bem menor que o prazer daquele de quem o faz.
O amor deixa-te de fora do mundo, e é tão certo que tal aconteça tanto quando está a correr bem como quando está a correr mal.