PaixĂŁo Ăšnica
Quem me dera poder ver-te!
Ai! quem me dera dizer-te,
Que pude amar-te, e perder-te,
Mas olvidar-te… isso nĂŁo!
Que no ardor de outros amores,
Através de mil dissabores,
Senti vivas sempre as dores
Duma remota paixĂŁo.Com que dorida saudade
Penso nessa mocidade,
Nessa vaga ansiedade,
Que soubeste compreender!
E tu sĂł, sĂł tu soubeste,
Que, num mundo, como este,
Qual florinha em penha agreste,
Pode a flor da alma morrer.Orvalhaste-a quando ainda,
Ao nascer, singela e linda,
Respirava a esperança infinda,
Que consigo a infância tem.
Amparaste-a, quando o norte
Das paixões, soprando forte,
Lhe quiz dar rápida morte
Como à cândida cecem!E, depois, nuvem escura
Lá no céu desta ventura
Enlutou-me a aurora pura
Dos meus anos infantis.
Houve nesta vida um espaço,
Onde nunca dei um passo,
Em que não deixasse um traço
De paixões torpes e vis !E não tenho outra memória
Que me inspire altiva gloria,
Nem outro nome na historia
De meus delĂrios fatais.
Passagens sobre Céu
1151 resultadosA Mediocridade do Talento
Quem entre nĂłs nĂŁo tem talento? Mesmo aqueles que nada tĂŞm, tĂŞm talento atĂ© os polĂticos – atĂ© os jornalistas… Fique pois dito de uma vez para sempre: quem me disser que eu tenho talento, ofende-me; quem me disser que sou um homem de talento, aflige-me.
Renego o vosso talento; despejo-o com os jornais na latrina. Falo-vos claro; para mim o talento nĂŁo Ă© senĂŁo o grau sublime da mediocridade. O talento Ă© aquela forma superior de inteligĂŞncia que todos podem compreender, apreciar e amar. O talento Ă© aquela mistura saborosa de facilidade, de espĂrito, de lugares-comuns afectados, de filiteĂsmo um tanto brilhante que agrada Ă s senhoras, aos professores, aos advogados, aos mundanos, Ă s famosas pessoas cultas, em suma, a todos os que estĂŁo meio por meio entre o cĂ©u e a terra, entre o paraĂso e o inferno, a igual distância da animalidade profunda e do gĂ©nio grande.
Camões, Grande Camões, quão Semelhante
Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’o sacrĂlego gigante;Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penĂşria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vĂŁos, que em vĂŁo desejo,
TambĂ©m carpindo estou, saudoso amante.LudĂbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que sĂł terei paz na sepultura.Modelo meu tu Ă©s, mas… oh, tristeza!…
Se te imito nos transes da Ventura,
NĂŁo te imito nos dons da Natureza.
Aspiração Suprema
Como os cegos e os nus pede um abrigo
A alma que vive a tiritar de frio.
Lembra um arbusto frágil e sombrio
Que necessita do bom sol amigo.Tem ais de dor de trĂŞmulo mendigo
Oscilante, sonâmbulo, erradio.
É como um tênue, cristalino fio
D’estrelas, como etĂ©reo e louro trigo.E a alma aspira o celestial orvalho,
Aspira o cĂ©u, o lĂmpido agasalho,
sonha, deseja e anseia a luz do Oriente…Tudo ela inflama de um estranho beijo.
E este Anseio, este Sonho, este Desejo
Enche as Esferas soluçantemente.
A Graça
Que harmonia suave
É esta, que na mente
Eu sinto murmurar,
Ora profunda e grave,
Ora meiga e cadente,
Ora que faz chorar?
Porque da morte a sombra,
Que para mim em tudo
Negra se reproduz,
Se aclara, e desassombra
Seu gesto carrancudo,
Banhada em branda luz?
Porque no coração
NĂŁo sinto pesar tanto
O férreo pé da dor,
E o hino da oração,
Em vez de irado canto,
Me pede Ăntimo ardor?És tu, meu anjo, cuja voz divina
Vem consolar a solidĂŁo do enfermo,
E a contemplar com placidez o ensina
De curta vida o derradeiro termo?Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,.
Da aurora Ă frouxa luz,
Me dizias: «Acorda, inocentinho,
Faz o sinal da Cruz.»
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos
De inda puro sonhar,
Em nuvem d’ouro e pĂşrpura descendo
Coas roupas a alvejar.
És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga,
Junto ao bosque fremente,
Me contavas mistérios, harmonias
Dos Céus,
Terra – 7
Onde ficava o mundo?
SĂł pinhais, matos, charnecas e milho
para a fome dos olhos.
Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.
E o mar? E a cidade? E os rios?
Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,
onde chiam carros de bois e há poças de chuva.
Onde ficava o mundo?
Nem a alma sabia julgar.
Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.
Em cada dia o povo abraçava um outro povo.
E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:
a estrada branca e menina Ă© uma serpente ondulada
e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.
A Bela do Bairro
Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre Ă espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quĂŞ? Quinze anos
tenho o quĂŞ uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio Ă hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo nĂŁo parece
senão o céu afinal um pechisbequeainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetĂŁo sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como entĂŁo puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miĂşda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor
A. S. Francisco Tomando O Poeta O Habito De Terceyro
Ă“ magno serafim, que a Deus voaste
Com asas de humildade, e paciĂŞncia,
E absorto já nessa divina essência
Logras o eterno bem, a que aspiraste:Pois o caminho aberto nos deixaste,
Para alcançar de Deus também clemência
Na ordem singular de penitĂŞncia
Destes Filhos Terceiros, que criaste.A Filhos, como Pai, olha queridos,
E intercede por nĂłs, Francisco Santo,
Para que te sigamos, e imitemos.E assim desse teu hábito vestidos
Na terra blasonemos de bem tanto,
E depois para o Céu juntos voemos.
Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim promete esta tarde triste que uma palavra humana salvaria.
Devo-te
Devo-te tanto como um pássaro
deve o seu voo Ă lavada
planĂcie do cĂ©u.Devo-te a forma
novĂssima de olhar
teu corpo onde Ă s vezes
desce o pudor o silĂŞncio
de uma pálpebra mais nada.Devo-te o ritmo
de peixe na palavra,
a genesĂaca, doce
violĂŞncia dos sentidos;
esta tinta de sol
sobre o papel de silĂŞncio
das coisas – estes versos
doces, curtos, de abelhas
transportando o pĂłlen
levĂssimo do dia;
estas formigas na sombra
da prĂłpria pressa e entrando
todas em fila no tempo:
com uma pergunta frágil
nas antenas, um recado invisĂvel, o peso
que as deixa ser e esquece;
e a tua voz que compunha
uma casa, uma rosa
a toda a volta – Ăł meu amor vieste
rasgar um sol das minhas mĂŁos!
O Sr. Abbade
Quando vem Junho e deixo esta cidade,
Batina, Caes, tuberculozos céus,
Vou para o Seixo, para a minha herdade:
Adeus, cavaco e luar! choupos, adeus!Tomo o regimen do Sr. Abbade,
E faço as pazes, elle o quer, com Deus.
No seu direito olhar vejo a bondade,
E ás capellinhas vou ver os judeus.Que homem sem par! Ignora o que são dores!
Para elle uma ramada Ă© o pallio verde,
Os cachos d’uvas sĂŁo as suas flores!Ao seu passal chama elle o mundo todo…
Sr. Abbade! olhe que nada perde:
Viva na paz, ahi, longe do lodo.
Coda
Inútil escapar. A presença perdura.
Desde que sinto chĂŁo
ou de verde
ou de pedraé teu rastro que encontro e encontro em ti meu chão.
E quando te pressinto
o de verde Ă© mais terno
e o de mais dura pedra
um sensĂvel durâmen.Tu que arrancas atĂ© da rocha viva o sangue,
tu que vens pela foz destes veios de eu te amo:
— Em que século, amor, nossas almas se fundem?
Em que terra?Através de que mar? Ah que céu
velho céu já chorou por nós — perdidos cúmulos —
guaiando em nosso mundo impossĂveis azuis?
E desde quando o amor se abriu aos nossos olhos?
De que abrolhos e sal de amar nos marejou?Em meu solo és madeiro
e nave
e asa que sonha.
Em todo canto te acho e onde Ă© teu canto eu sou.
O Futuro de Portugal
O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?
— O Quinto ImpĂ©rio. O futuro de Portugal — que nĂŁo calculo, mas sei — está escrito já, para quem saiba lĂŞ-lo, nas trovas do Bandarra, e tambĂ©m nas quadras de Nostradamus. Esse futuro Ă© sermos tudo. Quem, que seja portuguĂŞs, pode viver a estreiteza de uma sĂł personalidade, de uma sĂł nação, de uma sĂł fĂ©? Que portuguĂŞs verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estĂ©ril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? NĂŁo queiramos que fora de nĂłs fique um Ăşnico deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar: resta que conquistemos o CĂ©u, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que nĂŁo sĂŁo europeus porque nĂŁo sĂŁo portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade nĂŁo pode estar em faltar ainda alguma cousa! Criemos assim o Paganismo Superior, o PoliteĂsmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, sĂł os deuses todos sĂŁo verdade.
O estado mental sem apegos, livre, alegre e sereno como as brancas nuvens que pairam no cĂ©u azul – este Ă© o estado de espĂrito daqueles que despertaram para a Verdade.
LXXIX
Entre este álamo, o Lise, e essa corrente,
Que agora estĂŁo meus olhos contemplando,
Parece, que hoje o céu me vem pintando
A mágoa triste, que meu peito sente.Firmeza a nenhum deles se consente
Ao doce respirar do vento brando;
O tronco a cada instante meneando,
A fonte nunca firme, ou permanente.Na lĂquida porção, na vegetante
CĂłpia daquelas ramas se figura
Outro rosto, outra imagem semelhante:Quem nĂŁo sabe, que a tua formosura
Sempre móvel está, sempre inconstante,
Nunca fixa se viu, nunca segura?
A Felicidade Está Fora da Nossa Realidade
O amoroso apaixonado já nĂŁo vive em si, mas no que ama; quanto mais se afasta de si para se fundir no seu amor, mais feliz se sente. Assim, quando a alma sonha em fugir do corpo e renuncia a servir-se normalmente dos seus orgĂŁos, podeis dizer com razĂŁo que ele enlouquece. As expressões correntes nĂŁo querem dizer outra coisa: «NĂŁo está em si… Volta a ti… Ele voltou a si.» E quanto mais perfeito Ă© o amor, maior a loucura e mais feliz.
Quem será, pois, essa vida no CĂ©u, Ă qual aspiram tĂŁo ardentemente as almas piedosas? O espĂrito, mais forte e vitorioso, absorverá o corpo; isto será tanto mais fácil quanto mais purificado e extenuado tiver sido o corpo durante a vida. Por sua vez, o espĂrito será absorvido pela suprema InteligĂŞncia, cujos poderes sĂŁo infinitos. Assim se encontrará fora de si mesmo o homem inteiro e a Ăşnica razĂŁo da sua felicidade será de nĂŁo mais se pertencer, mas de submeter-se a este soberano inefável, que tudo atrai a si.
Uma tal felicidade, é certo, só poderá ser perfeita no momento em que as almas, dotadas de imortalidade, retomem os antigos corpos. Mas, como a vida dos piedosos não é mais do que a meditação sobre a eternidade e como que a sombra dela,
Tentara o Amor de Abril
Tentara o amor de Abril tornar mais duro,
Naquele mês de céu azul cortado
Pelas pandorgas cor do assombro, o brado
Que no meu peito armava o meu futuro;Porque de novo, a procurar, procuro,
De bruços na janela, e debruçado
Por sobre as mágoas deste amor calado,
Nas portas tenebrosas, o ar mais puro.Firmando para o Norte, o brando povo
Das andorinhas parte, e fervoroso
Consuma o seu destino. Eu tento armá-loNo céu da alma, e durmo procurando
Essa firmeza no abandono, e calo,
Por pouco tempo embora o como e o quando.
Começa a Ir Ser Dia
Começa a ir ser dia,
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A Ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.Um negro azul-cinzento
Emerge vagamente
De onde o oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.Mas eu, o mal-dormido,
NĂŁo sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidĂŁo vazia.
SĂł sinto o indefinido
Do coração vazio.Em vão o dia chega
Quem nĂŁo dorme, a quem
NĂŁo tem que ter razĂŁo
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que Ă© isto que a minha alma sente?
Nem isto, nĂŁo, nem eu,
Na noite que se perde.
Somos para NĂłs mesmos Objecto de Descontentamento
Se os outros se observassem a si prĂłprios atentamente como eu achar-se-iam, tal como eu, cheios de inanidade e tolice. NĂŁo posso livrar-me delas sem me livrar de mim mesmo. Estamos todos impregnados delas, mas os que tĂŞm consciĂŞncia de tal saem-se, tanto quanto eu sei, um pouco melhor.
A ideia e a prática comuns de olhar para outros lados que não para nós mesmos de muito nos tem valido! Somos para nós mesmos objecto de descontentamento: em nós não vemos senão miséria e vaidade. Para não nos desanimar, a natureza muito a propósito nos orientou a visão para o exterior. Avançamos facilmente ao sabor da corrente, mas inverter a nossa marcha contra a corrente, rumo a nós próprios, é um penoso movimento: assim o mar se turva e remoinha quando em refluxo é impelido contra si mesmo.
Cada qual diz: «Olhai os movimentos do céu, olhai para o público, olhai para a querela deste homem, para o puso daquele, para o testamento daqueloutro; em suma, olhai sempre para cima ou para baixo, ou para o lado, ou para a frente, ou para trás de vós.»
O mandamento que na antiguidade nos preceituava aquele deus de Delfos ia contra esta opinião comum: «Olhai para dentro de vós,
Tese e AntĂtese
I
Já não sei o que vale a nova idéia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, Ă luz da barricada,
Como bacchante apĂłs lĂşbrica ceia…Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;
Respira fumo e fogo embriagada:
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fúrias de Medeia!Um século irritado e truculento
Chama Ă epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz…Mas a idea Ă© n’um mundo inalterável,
N’um cristalino cĂ©u, que vive estável…
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!II
N’um cĂ©u intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectáculo divino.Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante:
Enche o ar da terra o seu pulmĂŁo possante…
Cá da terra blasfema ou ergue um hino…A idĂ©ia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar sĂŁo chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!Combatei pois na terra árida e bruta,